domingo, 20 de setembro de 2009

António Nobre - Sonetos

Lógica 091c01c81638

Ai daqueles que, um dia, depuseram
Firmes crenças num bem que lhes voou!
Ai dos que neste mundo ainda esperam!
Terão a sorte de quem já esperou...

Ai dos pobrezinhos, dos que já tiveram
Oiro e papeis que o vento lhes levou!
Ai dos que tem, que ainda não perderam,
Que amanhã, serão pobres como eu sou.

Ai dos que, hoje, amam e não são amados,
Que, algum dia, o serão, mas sem poder!
Ai dos que sofrem! ai dos desgraçados

Que, breve, não terão mais para sofrer!
Ai dos que morrem, que lá vão levados!
Ai de nós que ainda temos de viver!

Ao Cair das Folhas After_the_Stars_Fall_Down

A MINHA IRMÃ MARIA DA GLORIA

Pudessem suas mãos cobrir meu rosto,
Fechar-me os olhos e compor-me o leito,
Quando, sequinho, as mãos em cruz no peito,
Eu me for viajar para o Sol posto.

De modo que me faça bom encosto,
O travesseiro comporá com jeito.
E eu tão feliz! por não estar afeito,
Hei-de sorrir, Senhor! quase com gosto.

Até com gosto, sim! Que faz quem vive
Órfão de mimos, viúvo de esperanças,
Solteiro de venturas, que não tive?

Assim, irei dormir com as crianças
Quase como elas, quase sem pecados...
E acabarão enfim os meus cuidados.

Á SUPERIORA DUM CONVENTO DE PARIS

Não me esqueço de si, minha Mãe, fora
Onde fora. Ao contrario, lembro ás vezes
Essa viagem nossa (de há alguns meses)
Sobre as águas do mar! Se fosse agora...

Oh o encanto da viagem sedutora!
Que bem me disse então dos Portugueses!
Que faria hoje! foram-se os revezes!
O que lá vai pela África, Senhora!

Depois, ao separarmos-nos no Tejo,
Disse-me (com que voz e com que modos!)
«Deus o faça feliz, ao seu desejo!» 091c01c81638

Mas não fez, minha Mãe! Talvez no céu...
Porque afinal os homens quase todos
Têm sido e são muito mais maus do que eu..

Nossos amores foram desgraçados,
Desgraçada paixão! tristes amores!
Se Deus me dá assim tamanhas dores,
É porque grandes são os meus pecados.

Quando virão os dias desejados?
Quando virá Maio para eu ver flores?
Nunca mais! ainda bem, santos horrores!
Que os pobres dias meus estão contados.

Passo os dias metido no meu moinho,
E mói que mói saudades e tristezas,
Moleiro que no mundo está sónico.

Os lavradores destas redondezas
Queixam-se até de que a farinha á data
Tanta é que «está de rastos de barata...»

Placidamente, bate-me no peito
Meu coração que tanto tem batido!
E para mim, ainda este mundo é estreito
Para conter tudo, quanto eu hei sofrido.

Meus dias vão passando como as águas
Que o vento leva em ondas, ao mar alto,
E se de noite eu oiço aquelas mágoas
Já não descanso mais, em sobressalto.

Placidamente, bate-me no peito
Meu coração em lutas tão desfeito,
Que com a Vida, a Dor hei confundido.

E se se ganha a Paz com o sofrimento,
Deixai-me entrar enfim nesse Convento...
Pois há quem tenha, assim como eu, sofrido!

Aparição091c01c81638

Á VIRGEM SANTISSIMA

Pelas espadas que tu tens no peito,
Pelos teus olhos roxos de chorar,
Pelo manto que trazes de astros feito,
Por esse modo tão lindo de andar;

Por essa graça e esse suave jeito,
Pelo sorriso (que é de sol e luar)
Por te ouvir assim sobre o meu leito,
Por essa voz, baixinho: «Há-de sarar...»

Por tantas bênçãos que eu sinto na alma,
Quando chegando vens, assim tão calma,
Pela cinta que trazes, cor dos céus:

Adivinhei teu nome, Aparição!
Pois consultando manso o coração
Senti dizer em mim «A Mãe de Deus!»

Todas as tardes, vou Léman acima
(E leve o tempo passa nessas tardes)
A pensar em Coimbra. Que saudades!
Diogo Bernardes deste meigo Lima. 198710

Na solidão, pensar em ti, anima,
Oh Coimbra sem par, flor das Cidades!
Os rapazes tão bons nessas idades
(Antes que a Vida ponha a mão em cima...)

Alegres cantam nos teus arrabaldes.
Por mais que tire vêm cheios os baldes,
Mar de recordações, poço sem fundo!

Freirinhas de Tentúgal, passos lentos!
E o chá com bolos, dentro dos conventos!
Meu Deus! meu Deus! e eu sempre a errar no Mundo!

A MEU IRMÃO AUGUSTO 202478

Léman azul, que, mudo e morto, jazes.
Quanto és feliz! assim pudesse eu sê-lo!
Nem a sombra dos montes, nem seu gelo,
De turvar tuas águas são capazes.

Minhas cartas inúteis de doutor
Eu rasgaria, é certo, com prazer,
Se eu pudesse um dia vir a ser
Dessas ondas, um simples pescador.

Léman azul, nas águas sossegadas,
Quantas vidas tu levas confiadas!
Pareces ver meu mal, e escarnece-lo!

Só do meu coração, ao alto-mar,
Ninguém se quis ainda sujeitar.
Quanto és feliz! assim pudesse eu sê-lo!

A JUSTINO DE MONTALVÃO FiratLeuphrates

Em St. Maurice (aqui perto) há um convento
De Franciscanos. Fui-me lá há dias.
Quando eu entrei, tocava a Ave-marias.
Iam cear. Fora mugia o vento.

Um pálido Cristo, ao fundo da sala,
Espalha em redor seu alvo clarão;
E, quando se reflecte a Cruz pelo chão,
Os frades ingénuos não ousam pisa-la.

«Meu irmão...» disseram, ao verem-me á porta.
Vontade, Senhor, tive eu de chorar!
Tão só me sentia, pela noite morta...

E quando na volta, á luz das estrelas,
Meu doido passado me vim a evocar,
Pensei no perdão duma alma daquelas.

Senhora! a todas as novenas ides,
E porque vós lá ides, vou também.
É um descanso sem par ás minhas lides,
Aos meus males, e em suma faz-me bem.

Essas graças que tendes (vós sorrides?)
Só nas flores as vejo, em mais ninguém.
Se o vosso corpo é magro como as vides,
Os cachos de uvas que o cabelo tem!

Fazeis-me andar numa continua roda,
Pelas igrejas da cidade toda,
S. Luiz de França, Encarnação e mais.

Senhora! assim comigo em beato dais,
Faço-me frade e vou para um convento...
E adeus! que lá se vai o casamento!

Há já duzentos sóis, há quatro luas,
Que te pedi que a Igreja abandonasses.
Tu és cruel, Senhora! contínuas,
Como se agora apenas começasses.

Á sexta-feira e ao sábado jejuas,
E tanto te pedi que não jejuasses.
E o que dói mais, Senhora, é que insinuas
Em voz que tanto dói: «Se me imitasses...»

Nenhuns pecados tens. És anjo e santa.
Boa como o céu, simples como a planta,
Cozes para os pobres, fazes boas obras!

Quais são os teus pecados? pecadores
Senhora! são os vossos confessores.
Homens e basta: são maus como as cobras!

Monologo de Outubro4249bd838-bb9f-4580-8e58-ddc548fa5490

A MEU IRMÃO AUGUSTO

Outono, meu Outono, ah! não te vás embora!
Ás minhas, eu comparo as tuas estranhezas.
Ah! nos teus dias não há Julhos nem aurora,
E só crepúsculos... Crepúsculos são tristezas!

E tu que já passaste o Outono só comigo
Não pensas ao cair de tantas agonias
Nas minhas, que tu sabes, ó meu melhor amigo?
Cai, folhas, cai! tombai melancolias!

Ides morrer, folhas! mas morrer que importa?
Lá vai mais uma... mal nasceu e já vai morta.
Levais saudades? Coitadinha, sois tão nova!

Tendes razão? Nem sei a falar a verdade.
Tombar quisera eu, só para esquecer. Saudade,
Irmão, não a terei também, lá pela cova?...

Pedi-te a fé, Senhor! pedi-te a graça,
Mas não te curvas nunca, para me ouvir.
Tudo acaba no mundo... tudo passa,
Mas só meu mal se foi e torna a vir.161227

Não busco a morte com arma ou veneno,
Mas enfim pode vir quando quiser.
Eu estarei de pé, firme e sereno,
Sorrir-lhe-ei até, quando vier.

Tristes vaidades deste pobre mundo!
Já me parecem tais como elas são:
Tristes misérias deste mar sem fundo.

Se tive algumas eu, na mocidade,
Não foram elas mais que uma ilusão.
E um dia eu ri da minha ingenuidade!.

O mar que embala, ás noites, o teu sono
É o mesmo, flor! que á noite embala o meu.
Mas em vão canta a minha ama do Outono,
Pois pouco dorme quem muito sofreu.

Mas tu feliz qual rainha sobre o trono,
Dormes e sonhas... no que, bem sei eu!
O teu cabelo solto ao abandono,
As mãos erguidas de falar ao céu...

Feliz! feliz de ti, doce Constança!
Reza por mim, na tua voz quimérica,
Uma Ave Maria de Esperança!

Por minha saúde e gloria (Deus ma dê)
Por essa viagem que vou dar a América...
Quando, um dia, voltar, dir-te-ei porquê!

Mamã 179605

Toda a Paz, todo o Amor, toda a Bondade,
Toda a Ternura que de ti me vêm,
Amparam-me esta triste mocidade
Como nos tempos em que tinha Mãe.

Quanto eu te devo! Ódios, impiedade,
Indignações e raivas contra alguém,
Loucuras de rapaz, tédios, vaidade,
Tudo isso perdi e ainda bem!

Salvaste-me! Trouxeste-me a Esperança!
Nunca me a tires não, linda criança,
(Linda e tão boa não o farás, talvez!)

Pois que perder-te, meu amor, agora,
Ai que desgraça horrível! isso fora
Perder a minha Mãe, segunda vez.

Há vinte anos já, que andas na Terra,
Há vinte dias só, que te conheço!
Eu andava perdido pela serra,
E o que eu era então, já não pareço.

Há vinte dias só que te conheço,
Ó meu beijo de Luz! minha Quimera!
És a Graça de Deus (com que estremeço)
Talvez, o que no mundo, ainda me espera.

Sonho da minha alma! Ó meu céu de estio!
Pois não tens piedade deste frio
Que sinto em mim, na minha solidão!

Minha bênção de Cristo, prometida,
Não serás tu a Paz da minha vida?
Oh! não me digas não, que és Ilusão!

Riquinha 186962

Sofrer calada as suas próprias dores
E chorar como suas as dos mais,
Tal a Rainha do seu nome, em flores
Transforma pedras e em sorrisos ais.

A toda a parte leva o sol e amores,
É a Saúde dos Enfermos nos Casais;
E, no mar alto, os velhos pescadores
Invocam-na entre espuma e temporais!

Quem será ela, tão piedosa e doce!
Com uns tais olhos que não tinha visto
Será a Virgem? Oxalá que fosse!

Oh! flor mais bela do jardim desta Ilha!
Fora outrora, talvez, filha de Cristo,
Se Cristo houvesse tido alguma filha!

O Teu Retrato nouveautes32

Deus fez a noite com o teu olhar,
Deus fez as ondas com os teus cabelos;
Com a tua coragem fez castelos
Que pôs, como defesa, á beira-mar.

Com um sorriso teu, fez o luar
(Que é sorriso de noite, ao viandante)
E eu que andava pelo mundo, errante,
Já não ando perdido em alto-mar!

Do céu de Portugal fez a tua alma!
E ao ver-te sempre assim, tão pura e calma,
Da minha Noite, eu fiz a Claridade!

Ó meu anjo de luz e de esperança,
Será em ti afinal que descansa
O triste fim da minha mocidade!

Sestança 4589d5f3d-bd42-40b3-8041-df9d70e38bac

Ia em meio da minha Mocidade,
Perdido de afeições, ao vento agreste,
Quando na Vida tu me apareceste,
Sestança, minha Irmã da Caridade!

Ninguém de mim dó teve, nem piedade,
Ninguém não a tinha, só tu a tiveste:
Quantas velas á Virgem acendeste!
Quantas rezas nos templos da cidade!

Que te fiz eu, Espelho das Mulheres!
Para assim merecer um tal cuidado
E tudo quanto ainda me fizeres?

Bendito seja Deus que me escutou!
Bendito seja o Pai que te há procriado!
Bendita seja a Mãe que te gerou!

Emílias ThoenenWalo1

(A UMA SENHORA QUE NÃO QUER SER EMÍLIA)

Emília és, quer queiras, ou não queiras:
Que lindo nome o teu, soante de brisas!
É um nome de pastoras e moleiras,
Loira morgada do solar dos Nisas!

Muitas Emílias há, entre ceifeiras,
Há Emílias nos serões das descamizas...
Se tu, Senhor! dás nome ás Amendoeiras
Com o nome de Emília é que as baptizas!

Que Santa Emília te acompanhe, Rainha!
E com a tua Mãe seja madrinha,
Quando ela, um dia, te levar á Igreja!

E, ó pura Gloria, que em teus olhos brilha!
Doces presságios meus, que a tua filha
Seja loira também e Emília seja!

O coração dos homens com a idade,
A pouco e pouco, vai arrefecendo...
Quão diversos me vão aparecendo
Do que eram ao abrir da mocidade!

O sorriso não tem já lealdade,
Lágrimas são difíceis... não as tendo.
Palavras não vos faltam, estou vendo
Mostrar o que sentis só por vaidade.

Já não me ilude, a Gloria que sonhei.
Perdi a fé em tudo quanto amei.
Mas só agora, eu sei o que é viver!

Não fazes bem, assim, em rir de mim!
Tenho tido na vida horrores sem fim,
Mas só agora, eu sei o que é sofrer!

O Senhor, cuja Lei é sempre justa,
Deu-me uma infortunada mocidade,
Talvez para eu saber (o que é verdade)
Quanto é bom ser feliz, mas quanto custa!

Feliz de quem no mundo sem piedade,
Encontrou alma que lhe entenda a sua,
Que o mesmo é que ter na mão a Lua
Tão longe nessa triste Eternidade!

Os meus dias passavam tristemente
Quando encontrei o teu olhar ridente:
Foi a bênção de luz da Mãe de Deus!

Vais deixar-me de novo, só na vida!
Ao cabo de viagem tão comprida
Talvez sintas mais perto os olhos meus!

Adeus a Constança 0223-9-10

Vai o teu Pai andar ao sol de verão,
E mais á chuva e ao vento; e só depois
Poderá ter a colheita desse pão
Que semeou cantando ao pé dos bois.

Feliz que eu fui em te encontrar na vida,
Minha doce Constança desejada!
Antes de ver-te a ti não via nada,
Nem para mim a lua era nascida.

Tu vais partir em breve com teu Pai
Por esse mar que tão piedoso está.
Não sede amargas, ondas, mas chorai!

Vais ver campos em flor que te conhecem...
E se a colheita se fizesse já,
Talvez na volta as ondas te trouxessem!

Antes de partir brande nichole roderick

Vários Poetas vieram á Madeira
(Pela fama que tem) a ares do Mar:
Uns para, breve, voltarem á lareira,
Outros, ai deles! para aqui ficar.

Esta ilha é Portugal, mesma é a bandeira,
Morrer nesta ilha não deve custar,
Mas para mim sempre é terra estrangeira,
Á minha pátria quero, enfim, voltar.

Ilhas amadas! Céu cheio de luas!
Ah como é triste andar por essas ruas,
Pálido, de olhos grandes, a tossir!

Eu vou-me embora, adeus! mas volto a vê-las,
Vou com as ondas, voltarei com elas,
Mas como elas para tornar a ir!

Meu pobre amigo! Sempre silencioso!
Assim eu fui. Cismava, lia, lia...
Mudei no entanto de Filosofia.
Não creio em nada! e fui tão religioso!

Tomei parte no Exercito glorioso
Que foi bater-se por Israel, um dia!
Cri no Amor, no Bem, na Virgem Maria,
Não creio em nada! tudo é mentiroso!

Não vale a pena amar e ser amado,
Nem ter filhos dum seio de mulher
Que ainda nos vêm fazer mais desgraçado!

Não vale a pena um grande poeta ser,
Não vale a pena ser rei nem soldado
E venha a Morte, quando Deus quiser!

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

RAUL PROENÇA - OS SINOS

A T... michelangelo ghg

Nosso amor começou a quando o Outono,
Quando as arvores se despem da folhagem,
Numa tristeza amarga que faz sono,
E mais fria e mais muda é a paisagem.

Começou quando avança a Sombra triste,
E foi a brisa arrepiante e agreste
Que trouxe essas palavras que proferiste
E o primeiro sorriso que me deste.

Que admira pois que o nosso amor tão largo
Seja mais infeliz que um rei sem trono,
Se o trouxe o Inverno no inicial letargo?!

E temendo-o... eu desejo-o e ambiciono-o,
Como te quero, ó lindo sonho amargo!
Como te amo, meu pobre amor do Outono!

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .michelangelo ydr

Por isso toma estas florezinhas bravas,
Esta simples poesia humilde e agreste,
Como os versos de amor que michelangelo hdrme inspiravas!

E se quiseres saber quem é Leonor,
michelangelo xklO perfil que tracei com singeleza,
Mas com um grande, com um profundo amor,

Não me perguntes, não, Mulher celeste;
Vai perguntar-no á voz com que falavas,
Vai perguntar-no aos beijos que me deste.

Ás almas simples, singelas,
Que têm o Amor por norma,
E amam a luz das estrelas
E têm a paixão da Forma;

Ás almas suaves, mimosas,
Docemente espirituais,
Como as grinaldas de rosas,
E as floras tropicais;

Àqueles que têm amado,
Em longas noites serenas,
Um olhar aveludado
E umas brancas mãos pequenas;

Ás que indo de fronte calma
No caminho da Ilusão,
Construam ninhos na alma
E poemas no coração;

A vós a historia, ó Formosas,
Dum grande amor infeliz,
A vós, camélias mimosas,
A vós, violetas gentis!

PROLOGO Pietro_Perugino_034

Na época presente,
Quando a doce poesia já não mora
Nos nossos corações,
A ternura divina foi-se embora,
Já tem menos fulgor a luz da aurora
E as damas não suspiram com paixões
Na época presente
O lábio já não prende os corações
E a alma já não sente...

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . michelangelo gddg

É raro o amor, são raras as canções
Na época presente.

Dantes os cavaleiros medievais
Que abrigavam paixões no coração
E que iam nos ginetes sensuais
Combater por uns olhos desleais
Debaixo dum balcão,
Cheios de gloria e de fortuna e fama
Batalhavam em duelos singulares
Pela formosa e sonhadora dama
De face de veludo
E tépidos olhares...
Mas como tudo muda eternamente
E os combates de amor são só no Entrudo,
Já não é assim, contudo,
Na época presente.

Debaixo da janela, era noite alta
Ainda se via o pálido poeta
E desde Londres até Roma e Malta,
Como um suspiro que de cordas salta
Melodiosamente,
Ouvia-se a guitarra, a viola, a flauta;
Hoje... só se ama á luz duma ribalta
Na época presente.

Iam os cavaleiros valorosos
Defender a Mulher com perigo ingente,
Dar a vida por uns olhos veludos
Por um riso feiticeiro,
Por uma voz angélica e gemi ante...
Hoje o Deus da Paixão é o Deus-Dinheiro...
O amor é um banqueiro
Na época presente.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Adao

Se não amam na época presente
O Rei nem o Mendigo,
Se tudo é frio, e desolado e doente,
E não palpitam almas docemente
Sob esse terno sentimento antigo,
Ó mulheres lindas de formoso olhar,
Vinde aprender comigo,
Que eu vos ensino a amar!

E estas folhas abri com mão suave,
Lede esta narração dum grande amor,
Ó mãos macias como penas de ave,
Ó bocas lindas como rubra flor!

Lede este simples conto, que vos dá
Muito singelamente,
A historia de uns amores como não há
Na época presente.

Era um vasto mosteiro o dessa terra linda
Onde vivia a flor dos beijos sensuais,
E respirava um ar da Idade Media, ainda,
A imponente altivez das graves catedrais.

Tinha uns sinos de bronze, uns sinos clangorosos,
Que em metálicos sons deitavam para os céus
Ora o encanto febril dos beijos voluptuosos,
Ora a amarga aflição do derradeiro adeus.

E em sua solidão soberana, ingente, estóica,
Levantando-se ao céu e dominando o vale,
Os sinos tinham sons duma doçura heróica,
Com soluços de bronze e risos de cristal.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Creation_of_Adam

E mesmo em frente dele, do lado donde nasce
O Sol, na sua diurna e rápida carreira,
Habitava Leonor, flor misteriosa e rara,
Das belas a primeira.

Para poder descrever o oval da sua face,
O jaspe acetinado e macio da cara,
O brilho desse olhar, para poder defini-lo,
Seria necessário o maior génio humano
A luz que coloriu as Vénus de Ticiano,
O pincel que pintou as virgens de Murillo.

Para poder pintar o seu cabelo farto,
Seria necessária a arte soberana,
A divina expressão artística d'el Sarto
E a magia de cor da escola veneziana.

A boca era vermelha, ardente, sensual,
O beijo desafiando ao mínimo trejeito.
Quanta paixão não fez o seu olhar leal!
Quanto amor não bateu, sem resposta, ao seu peito!

Tinha um olhar azul, envolvente, magnético,
Cheio de embriaguez, de eléctricas carícias;
Olhá-la era ficar para sempre apopléctico,
Absorvido para sempre em dois mares de delicias.

Causava uma magia o seu azul olhar,
Parecia do haschich o sonho voluptuoso.
Era feito da renda etérea do luar...
Que renda transparente a desse olhar formoso!

Deviam ser assim os olhos de Julieta,
Quebrado o doce olhar em morna languidez,
Quando vinha ao balcão falar ao meigo poeta,
Ao clássico Romeu do grande poeta inglês.

E os seus olhos azuis, dois sonhos siderais,
Eram na bela face de alabastro, as puras
Emanações da luz astral dos Ideais,
Eram dois mares vaporosos de tonturas.

O sorrir provocava um lânguido desmaio,
Era o sorriso bom de Glycéra ou de Leda,
Tinha o calor fecundo e são do sol de Maio
E a doce suavidade tépida da seda.

Tinha a regia altivez, um porte de rainha
E a graça virginal duma criança pura,
E sentia-se o mimo alado da andorinha
Na graça flexora e leve da cintura.

E que direi então da voz harmoniosa,
Dessa voz penetrante, angélica e magoada?!
Ouvi-la, era sentir uma pétala de rosa
A roçar o ouvido, em voz cristalizada.

E tudo era um contraste excêntrico, distinto,
Tinha o poder do Inferno e o enlevo dos arcanjos,
Olhá-la era sentir a embriaguez do absinto,
Ouvi-la era escutar a própria voz dos anjos.

E em frente da janela o mosteiro vetusto
Vibrava de onde em onde os seus toques divinos.
Então vinha á janela, e o delicado busto
Mergulhava na onda eléctrica dos sinos.

* * * * * God2-Sistine_Chapel

Passava a Mocidade altiva para vê-la,
Da terra a fina flor lhe vinha confessar
O seu ardente amor, debaixo da janela,
Á luz inebriante e meiga do luar.

A guitarra gemia. As damas espanholas
Não tinham mais cântaros debaixo do balcão.
Ouvia-se o lamento estranho das violas...
O riso do prazer e o choro da Paixão.

Serenatas gentis passavam, quase a medo,
Com a ternura ideal dos fados portugueses,
E dizia-se até, em voz baixa, em segredo,
Que ali, mortos de amor, vinham também marqueses.

Ouviam-se nascer suspiros maviosos
Das cordas musicais, ternas, inebriantes,
Brotavam do luar afagos silenciosos,
Dimanavam do céu ondas de diamantes.

E ante tais expressões e cantos peregrinos,
A linda dama então, sem ouvir nem olhar,
Absorvia-se mais no cântico dos sinos,
E deixava a viola, a cantar e a chorar...

--*-- Rome_Sistine_Chapel_01

Mas uma vez... A noite era eléctrica, etérea,
Luminosa, esplendente,
Adquirira voz e sonhos a Matéria...
O aroma era mais suave... o luar era mais quente...

Sentiam-se sonhar embriagantemente
Lírios, como D. Juans, rosas, como as Ofélias,
E até o próprio ar tinha uma voz geme ante
Ao beijar, soluçante, as rosas e as camélias.

Sob a janela um Poeta altivo e orgulhoso
Acertou de passar, cantando meiga trova...
E então Leonor sentiu o frémito do gozo,
A estranha sensação duma volúpia nova.

Naquele ardente olhar tinha ela conhecido
O filtro da Paixão, enervante e sereno...
Quantas de vós, também, não tendes já bebido
No vosso negro olhar esse fatal veneno!

O amor, ele que iguala as raças e as nobrezas
E que possui as forças das paixões daninhas
Que faz curvar os réis ao pé das camponesas
E faz deitar plebeus nos leitos das rainhas;

O amor, ele que faz dormir as violetas
Junto aos cravos gentis, junto aos lírios suaves,
Transpusera a cantar suas pupilas pretas,
Como ninhos de sonho onde adormecem aves.

A viola gemia...
E pela primeira vez
Leonor se pôs a ouvir a lânguida harmonia,
Em louca embriaguez.

E ao deitar-se... sentindo a voz eclesiástica
Do sino do convento, o sino feiticeiro,
Julgou ser a viola, inefável, fantástica,
Que estivesse a vibrar na torre do mosteiro.

--*-- Sistine_chapel_ceiling_diagram_of_areasLightmatter_Sistine_Chapel_ceiling

Foi uma paixão louca, ardente, doentia,
E o nosso triste poeta, a sorrir e a cantar,
A cantar e a sorrir, todas as noites ia
Envolver Leonor num manto de luar.

Quantos beijos de amor, húmidos, vagarosos,
Pondo ás vezes no lábio um lenço de Bretanha!
Eram beijos sensuais, vermelhos, capciosos,
Como o estrupidos audaz do vinho de Champanhe!

Fundiam-se em abraços, trémulos, nervosos,
Com trepidar carícias,
Mudas contemplações, extasies silenciosos,
Profundos, vagarosos,
Em estranhas sensações de celestiais delicias.

Depois aconteceu o que com tais assuntos
Costuma acontecer, de Londres a Istambul;
Os nossos dois amores adormeceram juntos
Sob a cúpula do céu profundamente azul.

Fugi das noites calmas, mornas lua risadas,
Em que o encanto nos vence e o espasmo em nós actua!
Loucas de muito amor, fugi ás guitarradas,
Escravas da Paixão, tende medo da Lua!

De manhã, quando o Sol clareava o horizonte
E o rouxinol findava a amena cava tina,
Despediam-se então com um beijo na fronte,
Extenuados de amor dessa noite divina.

Mas Leonor ficava ainda por instantes,
Espalhados ao vento os seus cabelos finos,
E mergulhava a alma em sonhos delirantes,
Na doce vibração harmónica dos sinos.

--*-- Sixtina

Durou pouco o Amor, porém, assim feliz!
O Amor, o eterno Amor! que inconsistente liga!
Ninguém como ela o quis! ninguém como ele a quis!
Separou-os, porém, o cru punhal da Intriga.

A Intriga é essa mulher que ao cisne que descreve
Um sulco encantador
No lago, branco e leve,
Tenta com mancha escura inundar-lhe a cor,
E transformada em neve
É a geada que queima a delicada flor.

Leonor endoideceu, então, cheia de magoa,
Na janela, a sonhar... a cantar... a chorar...
E vinham-lhe ao olhar pérolas de sangue e de agua
Quando ouvia na torre os sinos a tocar.

E empalidecia a incomparável face,
Essa ideal beleza,
Como uma ave azul que se afogasse
Em ondas de loucura e de tristeza.

Dizia então:
«Lá vão nos coches os casados,
Cheios de luz na fronte e resplendendo o olhar...
Vejo-os... Vejo-os unir os lábios orvalhados,
Como lindos rubis, mimosas pérolas
Num único colar!
Virgem, tu que sofreste a trágica Paixão,
Com os peitos golpeados,
Tirai-me o coração,
Arrancai-mo aos bocados!
Viste o heróico Jesus, o Profeta incansável
Nos braços duma Cruz, Olímpica Rainha,
E apesar dessa dor enorme e incomparável
Não sei qual foi maior, se a tua dor, se a minha!
Perdi o noivo! e eu quis que nunca mais bradasses
Na tua bronzeia voz! ó Sino, que irrisão!
Para que os Sinos ouvir, a anunciar enlaces,
Se para mim não tocam...
Nem nunca tocarão!»

Tinha acabado a doida de falar,
Doida gentil de olhos azuis e vagos,
Tendo na fixidez macia do olhar
A imobilidade terna e mística dos lagos.

E os sinos do mosteiro, alem, fortes, vibrantes,
Espalhavam no ar notas bruscas, ligeiras,
Claras como cristais, vivas como diamantes,
E como o desfraldar de sonoras bandeiras.

Tudo se agita em espanto e a vila inteira corre,
Os homens, as mulheres, os rotos pequeninos
Ao sentirem cair, cristalina, da torre,
A chuva torrencial do repique dos sinos.

Leonor ouvia, ouvia, a chorar e a tremer,
Aqueles sons joviais dos sinos a tocar.
Era a primeira vez que alegres os viu ser,
E era a primeira vez que os ouvia a chorar!

E enquanto o sino ria esses risos saudáveis
Das crianças gentis, dos anjos pequeninos,
A agua viu cair dos olhos adoráveis
Na alacridade vaga e mística dos sinos.

--*--180px-Michelangelo_-_Fresco_of_the_Last_Judgement

De repente, saiu da igreja uma donzela,
Vestida a seda azul, numa expansão inteira,
E Leonor estendia o corpo na janela,
Ao ver-lhe no cabelo a flor de laranjeira.

E era uma mulher que deixava confusas
Todas as atenções, em muda admiração,
Tinha o cabelo negro e a cor das andaluzas,
Tinha no olhar do Sonho a magica atracção.

Do seu corpo harmonioso, elástico, flexível,
Emanava uma essência etérea, imponderável,
Como emana, em fragor penetrante, invencível,
Um perfume subtil duma seda impalpável:
Tinha a ardente magia
Das sereias gentis da Andaluzia,
Que têm gestos sublimes,
E meneios risonhos
Tinha a flexibilidade elástica dos vimes
E a estrutura diáfana dos sonhos.
Nos grandes olhos doces,
Lindos como dois céus, negros como dois crimes,
Relampejantes, húmidos, quebrados,
Guadalquivires dormentes, sossegados,
Vastos como horizontes,
Tinha da Andaluzia a Alhambra, os eirados,
Os famosos jardins embalsamados,
Onde amavam mulheres e murmuravam fontes.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Depois saiu o noivo, e ó Crueldade ignara,
Irradiara a razão nos olhos de Leonor,
E a grande flor divina, a flor mimosa e rara
Reconheceu no noivo o seu primeiro amor.

Caminhavam os dois, gloriosos, triunfais,
Rodeados duma aureola etérea, luminosa,
Entre os alegres sons dos sinos festivais,
Numa expansão de amor profunda e vitoriosa.

Pelo braço um do outro, altivos, orgulhosos,
Iam cheios de gloria e cheios de esplendores,
Inundava-os o sol em beijos luminosos
E as crianças, sorrindo, atiravam-lhes flores.

E no trágico assombro, a triste doida então,
A pobre bela e Santa, a tímida Leonor,
Sentiu despedaçar-se o terno coração
No convulso der ruir titânico da Dor.

No olhar lhe fuzilou uma cólera santa,
Recuperara a Razão para perder a Vida,
Saiu-lhe uma blasfémia ardente da garganta,
Cambaleou afinal, como se fosse ferida,
Deu três ou quatro passos,
Estendeu em convulsões galvânicas os braços,
E abrindo, sufocada, a baixa porta,
Sem um ai nem um beijo,
Veio cair exânime, já morta,
No meio do cortejo.

--*-- 230px-Adora%C3%A7%C3%A3o_da_Sant%C3%ADssima_Trindade

Ouviram-se então sons plangentes e divinos
De dobres, de sinais de luto e de viuvez.
Era a toada melancólica dos sinos
Por Leonor a tocar pela primeira vez.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Quantas de vós também, lindas crianças,
Que arquitectais angélicas esperanças
No vosso coração,
Não ides perfumar as sepulturas,
Com as frontes virginais, as formas puras,
No pequenino leito dum caixão!

Pensai: quantas de vós ouvis os sinos
Em desejos divinos,
Em ilusões celestes,
Para num dia puro, luminoso,
Cingindo as alvas vestes,
Serdes levadas pelos sons dos sinos
Para os canteiros dum jardim frondoso
De rosas e ciprestes!

E vós ides, extáticas, inermes,
Contrair os funéreos esponsais:
Sugar-vos-ao o peito os frios vermes,
Terão convosco amores os vegetais.