A T...
Nosso amor começou a quando o Outono,
Quando as arvores se despem da folhagem,
Numa tristeza amarga que faz sono,
E mais fria e mais muda é a paisagem.
Começou quando avança a Sombra triste,
E foi a brisa arrepiante e agreste
Que trouxe essas palavras que proferiste
E o primeiro sorriso que me deste.
Que admira pois que o nosso amor tão largo
Seja mais infeliz que um rei sem trono,
Se o trouxe o Inverno no inicial letargo?!
E temendo-o... eu desejo-o e ambiciono-o,
Como te quero, ó lindo sonho amargo!
Como te amo, meu pobre amor do Outono!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Por isso toma estas florezinhas bravas,
Esta simples poesia humilde e agreste,
Como os versos de amor que me inspiravas!
E se quiseres saber quem é Leonor,
O perfil que tracei com singeleza,
Mas com um grande, com um profundo amor,
Não me perguntes, não, Mulher celeste;
Vai perguntar-no á voz com que falavas,
Vai perguntar-no aos beijos que me deste.
Ás almas simples, singelas,
Que têm o Amor por norma,
E amam a luz das estrelas
E têm a paixão da Forma;
Ás almas suaves, mimosas,
Docemente espirituais,
Como as grinaldas de rosas,
E as floras tropicais;
Àqueles que têm amado,
Em longas noites serenas,
Um olhar aveludado
E umas brancas mãos pequenas;
Ás que indo de fronte calma
No caminho da Ilusão,
Construam ninhos na alma
E poemas no coração;
A vós a historia, ó Formosas,
Dum grande amor infeliz,
A vós, camélias mimosas,
A vós, violetas gentis!
PROLOGO
Na época presente,
Quando a doce poesia já não mora
Nos nossos corações,
A ternura divina foi-se embora,
Já tem menos fulgor a luz da aurora
E as damas não suspiram com paixões
Na época presente
O lábio já não prende os corações
E a alma já não sente...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
É raro o amor, são raras as canções
Na época presente.
Dantes os cavaleiros medievais
Que abrigavam paixões no coração
E que iam nos ginetes sensuais
Combater por uns olhos desleais
Debaixo dum balcão,
Cheios de gloria e de fortuna e fama
Batalhavam em duelos singulares
Pela formosa e sonhadora dama
De face de veludo
E tépidos olhares...
Mas como tudo muda eternamente
E os combates de amor são só no Entrudo,
Já não é assim, contudo,
Na época presente.
Debaixo da janela, era noite alta
Ainda se via o pálido poeta
E desde Londres até Roma e Malta,
Como um suspiro que de cordas salta
Melodiosamente,
Ouvia-se a guitarra, a viola, a flauta;
Hoje... só se ama á luz duma ribalta
Na época presente.
Iam os cavaleiros valorosos
Defender a Mulher com perigo ingente,
Dar a vida por uns olhos veludos
Por um riso feiticeiro,
Por uma voz angélica e gemi ante...
Hoje o Deus da Paixão é o Deus-Dinheiro...
O amor é um banqueiro
Na época presente.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Se não amam na época presente
O Rei nem o Mendigo,
Se tudo é frio, e desolado e doente,
E não palpitam almas docemente
Sob esse terno sentimento antigo,
Ó mulheres lindas de formoso olhar,
Vinde aprender comigo,
Que eu vos ensino a amar!
E estas folhas abri com mão suave,
Lede esta narração dum grande amor,
Ó mãos macias como penas de ave,
Ó bocas lindas como rubra flor!
Lede este simples conto, que vos dá
Muito singelamente,
A historia de uns amores como não há
Na época presente.
Era um vasto mosteiro o dessa terra linda
Onde vivia a flor dos beijos sensuais,
E respirava um ar da Idade Media, ainda,
A imponente altivez das graves catedrais.
Tinha uns sinos de bronze, uns sinos clangorosos,
Que em metálicos sons deitavam para os céus
Ora o encanto febril dos beijos voluptuosos,
Ora a amarga aflição do derradeiro adeus.
E em sua solidão soberana, ingente, estóica,
Levantando-se ao céu e dominando o vale,
Os sinos tinham sons duma doçura heróica,
Com soluços de bronze e risos de cristal.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
E mesmo em frente dele, do lado donde nasce
O Sol, na sua diurna e rápida carreira,
Habitava Leonor, flor misteriosa e rara,
Das belas a primeira.
Para poder descrever o oval da sua face,
O jaspe acetinado e macio da cara,
O brilho desse olhar, para poder defini-lo,
Seria necessário o maior génio humano
A luz que coloriu as Vénus de Ticiano,
O pincel que pintou as virgens de Murillo.
Para poder pintar o seu cabelo farto,
Seria necessária a arte soberana,
A divina expressão artística d'el Sarto
E a magia de cor da escola veneziana.
A boca era vermelha, ardente, sensual,
O beijo desafiando ao mínimo trejeito.
Quanta paixão não fez o seu olhar leal!
Quanto amor não bateu, sem resposta, ao seu peito!
Tinha um olhar azul, envolvente, magnético,
Cheio de embriaguez, de eléctricas carícias;
Olhá-la era ficar para sempre apopléctico,
Absorvido para sempre em dois mares de delicias.
Causava uma magia o seu azul olhar,
Parecia do haschich o sonho voluptuoso.
Era feito da renda etérea do luar...
Que renda transparente a desse olhar formoso!
Deviam ser assim os olhos de Julieta,
Quebrado o doce olhar em morna languidez,
Quando vinha ao balcão falar ao meigo poeta,
Ao clássico Romeu do grande poeta inglês.
E os seus olhos azuis, dois sonhos siderais,
Eram na bela face de alabastro, as puras
Emanações da luz astral dos Ideais,
Eram dois mares vaporosos de tonturas.
O sorrir provocava um lânguido desmaio,
Era o sorriso bom de Glycéra ou de Leda,
Tinha o calor fecundo e são do sol de Maio
E a doce suavidade tépida da seda.
Tinha a regia altivez, um porte de rainha
E a graça virginal duma criança pura,
E sentia-se o mimo alado da andorinha
Na graça flexora e leve da cintura.
E que direi então da voz harmoniosa,
Dessa voz penetrante, angélica e magoada?!
Ouvi-la, era sentir uma pétala de rosa
A roçar o ouvido, em voz cristalizada.
E tudo era um contraste excêntrico, distinto,
Tinha o poder do Inferno e o enlevo dos arcanjos,
Olhá-la era sentir a embriaguez do absinto,
Ouvi-la era escutar a própria voz dos anjos.
E em frente da janela o mosteiro vetusto
Vibrava de onde em onde os seus toques divinos.
Então vinha á janela, e o delicado busto
Mergulhava na onda eléctrica dos sinos.
Passava a Mocidade altiva para vê-la,
Da terra a fina flor lhe vinha confessar
O seu ardente amor, debaixo da janela,
Á luz inebriante e meiga do luar.
A guitarra gemia. As damas espanholas
Não tinham mais cântaros debaixo do balcão.
Ouvia-se o lamento estranho das violas...
O riso do prazer e o choro da Paixão.
Serenatas gentis passavam, quase a medo,
Com a ternura ideal dos fados portugueses,
E dizia-se até, em voz baixa, em segredo,
Que ali, mortos de amor, vinham também marqueses.
Ouviam-se nascer suspiros maviosos
Das cordas musicais, ternas, inebriantes,
Brotavam do luar afagos silenciosos,
Dimanavam do céu ondas de diamantes.
E ante tais expressões e cantos peregrinos,
A linda dama então, sem ouvir nem olhar,
Absorvia-se mais no cântico dos sinos,
E deixava a viola, a cantar e a chorar...
Mas uma vez... A noite era eléctrica, etérea,
Luminosa, esplendente,
Adquirira voz e sonhos a Matéria...
O aroma era mais suave... o luar era mais quente...
Sentiam-se sonhar embriagantemente
Lírios, como D. Juans, rosas, como as Ofélias,
E até o próprio ar tinha uma voz geme ante
Ao beijar, soluçante, as rosas e as camélias.
Sob a janela um Poeta altivo e orgulhoso
Acertou de passar, cantando meiga trova...
E então Leonor sentiu o frémito do gozo,
A estranha sensação duma volúpia nova.
Naquele ardente olhar tinha ela conhecido
O filtro da Paixão, enervante e sereno...
Quantas de vós, também, não tendes já bebido
No vosso negro olhar esse fatal veneno!
O amor, ele que iguala as raças e as nobrezas
E que possui as forças das paixões daninhas
Que faz curvar os réis ao pé das camponesas
E faz deitar plebeus nos leitos das rainhas;
O amor, ele que faz dormir as violetas
Junto aos cravos gentis, junto aos lírios suaves,
Transpusera a cantar suas pupilas pretas,
Como ninhos de sonho onde adormecem aves.
A viola gemia...
E pela primeira vez
Leonor se pôs a ouvir a lânguida harmonia,
Em louca embriaguez.
E ao deitar-se... sentindo a voz eclesiástica
Do sino do convento, o sino feiticeiro,
Julgou ser a viola, inefável, fantástica,
Que estivesse a vibrar na torre do mosteiro.
Foi uma paixão louca, ardente, doentia,
E o nosso triste poeta, a sorrir e a cantar,
A cantar e a sorrir, todas as noites ia
Envolver Leonor num manto de luar.
Quantos beijos de amor, húmidos, vagarosos,
Pondo ás vezes no lábio um lenço de Bretanha!
Eram beijos sensuais, vermelhos, capciosos,
Como o estrupidos audaz do vinho de Champanhe!
Fundiam-se em abraços, trémulos, nervosos,
Com trepidar carícias,
Mudas contemplações, extasies silenciosos,
Profundos, vagarosos,
Em estranhas sensações de celestiais delicias.
Depois aconteceu o que com tais assuntos
Costuma acontecer, de Londres a Istambul;
Os nossos dois amores adormeceram juntos
Sob a cúpula do céu profundamente azul.
Fugi das noites calmas, mornas lua risadas,
Em que o encanto nos vence e o espasmo em nós actua!
Loucas de muito amor, fugi ás guitarradas,
Escravas da Paixão, tende medo da Lua!
De manhã, quando o Sol clareava o horizonte
E o rouxinol findava a amena cava tina,
Despediam-se então com um beijo na fronte,
Extenuados de amor dessa noite divina.
Mas Leonor ficava ainda por instantes,
Espalhados ao vento os seus cabelos finos,
E mergulhava a alma em sonhos delirantes,
Na doce vibração harmónica dos sinos.
Durou pouco o Amor, porém, assim feliz!
O Amor, o eterno Amor! que inconsistente liga!
Ninguém como ela o quis! ninguém como ele a quis!
Separou-os, porém, o cru punhal da Intriga.
A Intriga é essa mulher que ao cisne que descreve
Um sulco encantador
No lago, branco e leve,
Tenta com mancha escura inundar-lhe a cor,
E transformada em neve
É a geada que queima a delicada flor.
Leonor endoideceu, então, cheia de magoa,
Na janela, a sonhar... a cantar... a chorar...
E vinham-lhe ao olhar pérolas de sangue e de agua
Quando ouvia na torre os sinos a tocar.
E empalidecia a incomparável face,
Essa ideal beleza,
Como uma ave azul que se afogasse
Em ondas de loucura e de tristeza.
Dizia então:
«Lá vão nos coches os casados,
Cheios de luz na fronte e resplendendo o olhar...
Vejo-os... Vejo-os unir os lábios orvalhados,
Como lindos rubis, mimosas pérolas
Num único colar!
Virgem, tu que sofreste a trágica Paixão,
Com os peitos golpeados,
Tirai-me o coração,
Arrancai-mo aos bocados!
Viste o heróico Jesus, o Profeta incansável
Nos braços duma Cruz, Olímpica Rainha,
E apesar dessa dor enorme e incomparável
Não sei qual foi maior, se a tua dor, se a minha!
Perdi o noivo! e eu quis que nunca mais bradasses
Na tua bronzeia voz! ó Sino, que irrisão!
Para que os Sinos ouvir, a anunciar enlaces,
Se para mim não tocam...
Nem nunca tocarão!»
Tinha acabado a doida de falar,
Doida gentil de olhos azuis e vagos,
Tendo na fixidez macia do olhar
A imobilidade terna e mística dos lagos.
E os sinos do mosteiro, alem, fortes, vibrantes,
Espalhavam no ar notas bruscas, ligeiras,
Claras como cristais, vivas como diamantes,
E como o desfraldar de sonoras bandeiras.
Tudo se agita em espanto e a vila inteira corre,
Os homens, as mulheres, os rotos pequeninos
Ao sentirem cair, cristalina, da torre,
A chuva torrencial do repique dos sinos.
Leonor ouvia, ouvia, a chorar e a tremer,
Aqueles sons joviais dos sinos a tocar.
Era a primeira vez que alegres os viu ser,
E era a primeira vez que os ouvia a chorar!
E enquanto o sino ria esses risos saudáveis
Das crianças gentis, dos anjos pequeninos,
A agua viu cair dos olhos adoráveis
Na alacridade vaga e mística dos sinos.
De repente, saiu da igreja uma donzela,
Vestida a seda azul, numa expansão inteira,
E Leonor estendia o corpo na janela,
Ao ver-lhe no cabelo a flor de laranjeira.
E era uma mulher que deixava confusas
Todas as atenções, em muda admiração,
Tinha o cabelo negro e a cor das andaluzas,
Tinha no olhar do Sonho a magica atracção.
Do seu corpo harmonioso, elástico, flexível,
Emanava uma essência etérea, imponderável,
Como emana, em fragor penetrante, invencível,
Um perfume subtil duma seda impalpável:
Tinha a ardente magia
Das sereias gentis da Andaluzia,
Que têm gestos sublimes,
E meneios risonhos
Tinha a flexibilidade elástica dos vimes
E a estrutura diáfana dos sonhos.
Nos grandes olhos doces,
Lindos como dois céus, negros como dois crimes,
Relampejantes, húmidos, quebrados,
Guadalquivires dormentes, sossegados,
Vastos como horizontes,
Tinha da Andaluzia a Alhambra, os eirados,
Os famosos jardins embalsamados,
Onde amavam mulheres e murmuravam fontes.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Depois saiu o noivo, e ó Crueldade ignara,
Irradiara a razão nos olhos de Leonor,
E a grande flor divina, a flor mimosa e rara
Reconheceu no noivo o seu primeiro amor.
Caminhavam os dois, gloriosos, triunfais,
Rodeados duma aureola etérea, luminosa,
Entre os alegres sons dos sinos festivais,
Numa expansão de amor profunda e vitoriosa.
Pelo braço um do outro, altivos, orgulhosos,
Iam cheios de gloria e cheios de esplendores,
Inundava-os o sol em beijos luminosos
E as crianças, sorrindo, atiravam-lhes flores.
E no trágico assombro, a triste doida então,
A pobre bela e Santa, a tímida Leonor,
Sentiu despedaçar-se o terno coração
No convulso der ruir titânico da Dor.
No olhar lhe fuzilou uma cólera santa,
Recuperara a Razão para perder a Vida,
Saiu-lhe uma blasfémia ardente da garganta,
Cambaleou afinal, como se fosse ferida,
Deu três ou quatro passos,
Estendeu em convulsões galvânicas os braços,
E abrindo, sufocada, a baixa porta,
Sem um ai nem um beijo,
Veio cair exânime, já morta,
No meio do cortejo.
Ouviram-se então sons plangentes e divinos
De dobres, de sinais de luto e de viuvez.
Era a toada melancólica dos sinos
Por Leonor a tocar pela primeira vez.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Quantas de vós também, lindas crianças,
Que arquitectais angélicas esperanças
No vosso coração,
Não ides perfumar as sepulturas,
Com as frontes virginais, as formas puras,
No pequenino leito dum caixão!
Pensai: quantas de vós ouvis os sinos
Em desejos divinos,
Em ilusões celestes,
Para num dia puro, luminoso,
Cingindo as alvas vestes,
Serdes levadas pelos sons dos sinos
Para os canteiros dum jardim frondoso
De rosas e ciprestes!
E vós ides, extáticas, inermes,
Contrair os funéreos esponsais:
Sugar-vos-ao o peito os frios vermes,
Terão convosco amores os vegetais.
Sem comentários:
Enviar um comentário