Á LISBOA DAS NÁUS CHEIA DE GLORIA
I
Lisboa á beira-mar, cheia de vistas,
Ó Lisboa das meigas Procissões!
Ó Lisboa de Irmãs e de fadistas!
Ó Lisboa dos líricos pregões...
Lisboa com o Tejo das Conquistas,
Mais os ossos prováveis de Camões!
Ó Lisboa de mármore, Lisboa!
Quem nunca te viu, não viu coisa boa...
II
És tu a mesma de que fala a Historia?
Eu quero ver-te, aonde é que estás, aonde?
Não sei quem és, perdi-te de memoria,
Dizes-me, aonde é que o teu perfil se esconde?
Ó Lisboa das Naus, cheia de gloria,
Ó Lisboa das Crónicas, responde!
E carregadas vinham almadias
Com noz, pimenta e mais especiarias...
III
Ai canta, canta ao luar, minha guitarra,
A Lisboa dos Poetas Cavaleiros!
Galeras doidas por soltar a amarra,
Cidade de morenos marinheiros,
Com navios entrando e saindo a barra
De proa para países estrangeiros!
Uns para França, acenando Adeus! Adeus!
Outros para as Índias, outros... sabe-o Deus!
IV
Ó Lisboa das ruas misteriosas!
Da Triste Feia, de João de Deus,
Beco da Índia, Rua das Fermosas,
Beco do Fala-Só (os versos meus...)
E outra rua que eu sei de duas Rosas,
Beco do Imaginário, dos Judeus,
Travessa (julgo eu) das Isabeis,
E outras mais que eu ignoro e vós sabeis.
V
Meiga Lisboa, mística cidade!
(Ao longe o sonho desse mar sem fim.)
Que pena faz morrer na mocidade!
Teus sinos, breve, dobrarão por mim.
Mandai meu corpo em grande velocidade,
Mandai meu corpo para Lisboa, sim?
Quando eu morrer (porque isto pouco dura)
Meus Irmãos, dai-me ali a sepultura!
VI
Luar de Lisboa! aonde não há igual no Mundo?
Lembra leite a escorrer de tetas nuas!
Luar assim tão meigo, tão profundo,
Como a cair dum céu cheio de luas!
Não deixo de o beber nem um segundo,
Mal o vejo apontar por essas ruas...
Pregoeiro gentil lá grita a espaços:
«Vai alta a lua!» de Soares de Passos.
VII
Formosa Sintra, onde, alto, as águias pairam,
Sintra das solidões! beijo da Terra!
Sintra dos noivos, que ao luar desvairam,
Que vão fazer o seu ninho na serra;
Sintra do Mar! Sintra de Lord Byron,
Meu nobre camarada de Inglaterra!
Sintra dos Moiros com os seus adarves,
E, ao longe, em frente, o Reino dos Algarves!
VIII
Romântica Lisboa de Garrett!
Ó Garrett adorado das mulheres,
Hei-de ir deixar-te, em breve, o meu bilhete
Á tua linda casa dos Prazeres.
Mas qual seria a melhor hora, ás sete,
Garrett, para tu me receberes?
O teu porteiro disse-me, a sorrir,
Que tu passas os dias a dormir...
IX
Pois tenho pena, amigo, tenho pena;
Levanta-te dai, meu dorminhoco!
Que falta fazes á Lisboa amena!
Anda ver Portugal! parece louco...
Que pátria grande! como está pequena!
E tu dormindo sempre ai no «choco».
Ah! como tu, dorme também a Arte...
Pois vou-me aos toiros, que o comboio parte!
X
Ó Lisboa vermelha das toiradas!
Nadam no Ar amores e alegrias.
Vêde os Capinhas, os gentis Espadas,
Cavalheiros, fazendo cortesias...
Que graça ingénua! farpas enfeitadas!
O Povo, ao Sol, cheirando ás maresias!
Vêde a alegria que lhe vai nas almas!
Vêde a branca Rainha, dando palmas!
XI
Ó suaves mulheres do meu desejo,
Com mãos tão brancas feitas para carícias!
Ondinas dos Galeões! Ninfas do Tejo!
Animaizinhos cheios de delicias...
Vosso passado quão longínquo o vejo!
Vós sois Árabes, Celtas e Fenícias!
Lisboa das Varinas e Marquesas...
Que bonitas que são as Portuguesas!
XII
Senhoras! ainda sou menino e moço,
Mas amores não tenho nem carinhos!
Vida tão triste suportar não posso:
Vós que ides á novena, aos Inglesinhos.
Senhoras, rezai por mim um Padre Nosso,
Nessa voz que tem beijos e é de arminhos.
Rezai por mim, vereis, vossos pecados,
(Se acaso os tendes), vos serão perdoados...
XIII
Rezai, rezai, Senhoras por aquele
Que no Mundo sofreu todas as dores!
Ódios, traições, torturas, que sabe ele!
Perigos de agua, e ferro e fogo, horrores!
E que, hoje, aqui está, só osso e pele,
A espera que o enterrem entre as flores...
Ouvi: estão os sinos a tocar:
Senhoras de Lisboa! ide rezar.
ÁS SENHORAS DE LISBOA
Ainda bem, Senhor! que deste a noite ao mundo.
Gosto do sol, oh certamente! mas segundo
O meu humor. Á noite, há esquecimento, há paz,
De dia, apenas tenho um ou outro rapaz
Para a palestra. Ah sim! e o mar também ás vezes.
Mas agora (há aqui uns três ou quatro meses)
Faço da noite dia. As grandes descobertas
Que eu descobri! Estou de janelas abertas
Quando os outros estão de janelas fechadas...
Ó fontes a correr como línguas de espadas,
Ó fontes a furar quais mineiros a fraga,
Ó fontes a rezar, como freirinhas de agua,
Com ladainhas na voz, de joelhos nas encostas,
E só vos falta estar, como elas de mãos postas!
Ouvi, lá rezam: sob o céu todo estrelado,
«Padre-Nosso! que estás no céu, santificado...»
Noites e dias sem parar um só momento,
Só vós me ouvis, e eu só a vós e mais o vento.
Que dor é a vossa! qual será? não sei, não sei
Chorai, fontes, chorai! Fontes correi, correi!
Aguas, só de perdão, suspiros e piedades,
Ó fontes de Belém! Ó fontes de saudades!
Contai para eu cismar, uma bonita historia
Qualquer, a que vos vier mais depressa á memoria.
Contai que eu sou ainda uma criança, gosto
Tanto de historias! pelas luas brancas de Agosto!
Ó rios a contar historias, como as criadas,
Historias de ladroes, mais historias de fadas,
A do Zé do Telhado e da triste viúva
Que só saia á rua pelas noites de chuva!
E essa (que faz chorar) de Pedro Malas Artes!
Os tristes ventos a assoprar das quatro partes:
São os ventos do sul: (cegos pedindo esmolas,
Sofrem tanto com ele!) mais o vento das Rolas;
Mais o que vem do oeste, que abre e fecha as portas
E geme nos pinheirais, pelas noites mortas
Erguendo as folhas secas, caídas pela terra.
Mais o vento do norte, o vento da Inglaterra
Que azula o céu e o rio, e deu ao mar a gloria
De levar as Naus do Gama á Índia da vitoria.
E o mar, Senhor! o mar, ai! como chora ás Luas!
Pelos seus golfos e canais (as suas ruas)
Sonetos de ais que só compreende quem ama:
E de noivos a quem deu o lençol e a cama.
As descobertas dos meus Pais, dos Portugueses:
(Pois quando está para isso também conta ás vezes)
O mar! como ele conta ás noites tanta historia,
Contos de cavalheiros sublimes de vitoria;
Contos de espadas nuas, em mãos desses guerreiros,
E contos de segredo que ouviu aos marinheiros
Lá pelas noites calmas, á luz da lua branca,
Quando choram seus males, que só a lua estanca.
O mar! O mar, oh sim! O mar é meu amigo.
Quantas vezes a rir, vem conversar comigo
Nessas noites tão longas de infinda solidão
Em que vela no mundo, tão só meu coração!
Quantas vezes na hora em que dormem crianças
E as flores dormem também, e dormem as esperanças
Para embalar o peito de quem no mundo as tem;
Á hora em que há mais treva nas sombras desta terra,
(Que tantas sombras, ai! de dia mesmo encerra.)
Á hora em que há mais luz no céu todo estrelado,
Eu fico só e cismo, nas dores do meu passado.
E quando enfim eu choro, pensando nessas magoas
Lá oiço a voz sublime daquelas grandes aguas
Que querem vir chorar comigo e conversar.
Historia é uma dele, esta que vou contar;
Ouvi-a em alta noite escura de Janeiro
E para ma vir contar, o Mar chorou primeiro.
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Senhoras escutai-a! se tendes coração,
Se dais esmola ao pobre, com vossa própria mão:
Lembrai-vos que ouvir a voz duma desgraça
Também é caridade, Senhoras cheias de graça!
Dai-me um pranto vosso a este sofrimento,
Senhoras! uma lágrima. Com ela me contento.
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Senhora minha, perdão
Anjo do meu coração
Pois a escrever eu me afoito?
Estamos no Julho, a oito
Dia de Vasco da Gama
(Doravante assim se chama)
Ai as saudades que eu tenho!
Pois olha escrevo-te e venho
Dar-te noticias do teu
Apaixonado. Sou eu.
Henrique, pastor de ovelhas.
Tenho-as brancas e vermelhas,
Pretas, de todo o tamanho.
Tivesse-te eu no rebanho
Porém como tu ainda
Não vi nenhuma mais linda.
Eu pensei que tu amavas
O teu pastor, mas brincavas.
Mas amo-te eu, muito embora.
Não sou amado, Senhora?
Não o és, nem nunca o hás-de ser!
Pois seja o que Deus quiser!
Vou pelas serras mais altas
Mas vejo que tu me faltas
E logo fico a pensar
Que bom e triste é amar!
Um amor sem esperança
É um bem que não se alcança.
Nasci debaixo dum signo
Que em nada me é benigno;
Já não pôde ser desfeito
O que está feito, está feito.
Ai de mim! não sou amado!
Ai de mim, triste e coitado!
Fumo saindo dos casais
Que aspirações vós levais!
As minhas não vão tão alto:
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São bem simples e modestas:
Bons dias e boas sestas!
Com muito pouco me sustento:
O amor é meu alimento.
O meu pão de cada dia,
Lágrimas, minha agua fria,
Quem me dera andar contigo
No mar cheio de perigo!
Ir á África numa Nau
Na São Rafael de pau,
Como os nossos Portugueses!
E andar por lá sete meses,
Sete anos, ou mesmo mais
Sem medo dos temporais!
Outros há pior de passar...
Já tantos tive no mar
Já tantos tive na terra
Que já nenhum me faz guerra.
Nós dois sós, e porque não?
Sem maior tripulação.
Eu seria o comandante
Daquela nau almirante!
Oh que formosa serias
Queimada das maresias!
Vestida de marinheiro
Ai sobe! sobe! gajeiro
Aquele topo real,
Diz adeus a Portugal,
Que lá nos vamos, Adeus!
E partiríamos com Deus!
Oh que viagem venturosa!
Pela Azia religiosa
Mais pelas terras do sul
Com mar e céu sempre azul!
Ver no céu planetas novos
Ver pela terra outros povos,
Outras leis, novos costumes,
Capelas cheias de lumes,
Á Califórnia do Oiro
E lá achar um tesoiro.
Ver (que isso nunca se perde)
O celebre «raio verde»
Do sol-pôr no mar da América!
Oh! a viagem quimérica!
De gatas, como as gatinhas,
...........................
Tu subirias aos mastros
(Tão altos que vão aos astros)
Sem receios das procelas!
E dobrarias as velas
A bujarrona, a latina.
Com tuas mãos de menina!
Oh! vem dai comigo! eu parto!
Quando estivesses de quarto
A mão no leme segura
A nau iria á ventura
Ó suspiro das aragens!
Ó fantásticas miragens!
Não tenhas medo. Morrer
Não custa nada, é viver.
Custa menos que se pensa.
O principal é ter crença.
Morre o corpo, a alma abre asa
E vai: é mudar de casa...
Mas nem sempre há mares grossos
E que houvesse! Os padres nossos
Fazem muito em tua boca.
Voz doce acalma voz rouca!
Tu não temes temporal
És filha de Portugal!
Se morrêssemos, que importa!
Que bela serias morta!
Minha Senhora da Esperança
Já na Bem-aventurança!
Ir contigo para o outro mundo,
E juntos para o profundo
Para esses mares salgados,
Num abraço amortalhados!
Meu pensamento flutua
Perdoa (lá vem a Lua)
Esta carta tão comprida!
Mas eu amo nesta vida
Duas coisas, tu primeiro
Depois o mar, sou poveiro!
Mas hoje, Senhora minha,
Sou pastor sem pastorinha,
Ainda ontem era estudante
Porque não sou navegante!
Foi sempre a minha paixão;
Era a minha vocação.
Mas a minha Mãe não quis
Talvez fosse mais feliz.
Ah, Senhora! vou deixar-te!
Minha Mãe por toda a parte
Henrique! Henrique, onde estás?
A pregação que ela faz
Tudo por amor de ti
(E já lhe oiço a voz daqui)
E as ovelhas? Ai, Senhor!
Não sirvo para pastor.
Cada uma para seu lado
Não dou conta do recado.
Minha Mãe ralha que ralha
Ai, Senhor! Jesus me valha.
E adeus que me vou embora
Pois, boas noites, Senhora!
Ah! eu estou, aqui, tão bem...
E lá torna a minha Mãe
Henrique, Henrique, onde estás?
Onde te somes, rapaz!
Tem razão, é já tão tarde!
Na lareira o lume arde
E fuma, acesa a candeia:
Minha Mãe que faz a ceia!
Há que tempo ela passou
Com a lenha que encontrou!
Desprezada nos caminhos...
Nós somos muito pobrezinhos!
E eu, aqui, á lua, á farta.
Pronto. Acabo, aqui, a carta.
Adeus! são horas de eu me ir
Cear, rezar... e dormir.
Nossa Senhora me ajude!
A minha Mãe não se ilude
Com toda esta demora
Ela bem sabe, Senhora!
E lá torna a Mãe: Henrique
Queres que eu me mortifique?
Anda cear, não tens fome?
Jesus! Jesus! Santo Nome!
Eu bem sei e bem no entendo.
O que são Mães! Em me vendo
Quando todo me concentro
Que trago paixão cá dentro.
Isto já há muitos meses.
Mas nada diz. Só ás vezes
Quando não como e me deito
Assim... a tossir do peito,
Também não quer ela comer
E aventura-se a dizer:
«Amores filho, paixões
Só trazem consumições»
E assim é, assim, Mãezinha!
Pois adeus, Senhora minha!
..........................
Vai alta a Lua branca, serena, silenciosa
Da luz dos Boulevards, fugindo desdenhosa.
É a hora em que Paris começa a louca vida
Na trágica cidade ao sol adormecida.
O Paris de Baudelaire! Paris da minha pena
Que em tempos já molhei nas aguas do teu Sena
Que mistérios eu leio, Paris, no teu folgar!
Que mistérios eu vejo, passando os Boulevards!
Ó vêde a palidez da luz daquele gás,
Vêde a cor mortuária, que aos rostos ele traz!
Olhai para as criancinhas que passam sob a chuva;
Olhai para o pranto fácil dos olhos da viúva
Que pede aqui cantando, e canta ali chorando,
E assim de pranto e riso seu pão vai amassando;
Ó Paris de Verlaine e poetas sonhadores!
Mais de mendigos ricos, de fidalgos salteadores;
Paris que me acolheste na agreste mocidade
Eu não te amo não, mas dou-te uma saudade.
Senhoras, como o Sena vai triste, amarelento,
Turvado pelas rugas sulcadas pelo vento.
Não vejo aqui, Senhoras, a luz do vosso Tejo
Nem vejo o céu azul, Senhoras!... mas eu vejo
Uns olhos fitos na agua... uns olhos lusitanos,
Que pela luz que tem não contam muitos anos.
E a lua que anda fugida, lá pelo céu profundo
Deixou cair no rio, o seu retrato, ao fundo.
.............................................
Senhoras, Henrique ouvira a voz duma das freiras
E quando no adro branco, as notas derradeiras
Perderam-se voando, julgou num som dorido
Reconhecer a voz do seu amor perdido!
São sonhos de poeta; mas sonhos como lírios
Tão brancos como eles... vermelhos nos martírios!
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Vinde dai, Senhoras, comigo quereis ouvir?
Ingénuo é o seu cantar... talvez vos faça rir!
«Vi-te há pouco rezando nas novenas
Ai tão linda, tão pálida, meu Deus!
Quais são as tuas dores, as tuas penas,
Por quem levantas tuas mãos aos céus!
«Cantai, ó freiras Beneditinas,
Cantai, cantai,
Cantai novenas, cantai matinas,
Cantai, cantai.
«No Boul'Mich, os castanheiros da Índia
Começam a despir as folhagens, ao luar,
Que belas armações, para galeras da Índia
Se ainda houvesse Índias, neste mundo, a conquistar!
«Tudo tão triste! todos tão tristes!
Olhai, são poucas todas cautelas
Doentes do peito, cuidado, ouvistes?
Tirai do armário vossas flanelas!
«Cantai o canto Gregoriano
Para eu chorar!...
Cantai ó freiras! durante um ano
Para eu... chorar!...
«Andam meus olhos lusitanos
A procurar-te,
Minha quimera! tenho vinte anos!
Eu quero amar-te!
«Ó sinos de toda a França
Cantai, cantai o meu mal,
Tão alto, essa voz não cansa,
Que ela os oiça em Portugal!
«Cantai o canto Gregoriano
Para eu chorar!...
Cantai ó freiras durante um ano
Para eu... chorar!...»
...................................
Morrera já o Sol; os altos castanheiros
Choravam á voz do vento, quais lúgubres troveiros,
Os choupos retorciam os troncos já despidos,
Parecendo erguer ao céu seus braços ressequidos,
Ao darem as «Trindades» no claustro, de mansinho,
Fugiu um bando de aves pousadas no caminho.
A cruz meio inclinada parecia desmaiar
Perdida na cor pálida da luz crepuscular;
Eram mistérios da hora nervosa da tardinha
Em que se adianta a morte, e treme a alma minha!
A hora em que perdido do Lar, dos meus Irmãos,
Cismando no meu Lar, eu junto as frias mãos;
A hora em que o traidor por mais que faça esforços
Não pôde em si calar o susto dos remorsos;
A hora em que se acende o lume nas lareiras
E ladram cães ao longe, em vela pelas eiras;
A hora em que entristece na rua o caminhante,
E pára vendo o Sol cair agonizante;
E as raparigas trémulas se vão fechar as portas,
Ouvindo ao longe as rãs, gritar em aguas-mortas!
Ó Senhora de altas Esferas!
Castelã das minhas quimeras!
Ó meu amor!
Amor místico, amor celeste
Que tu pelo Natal me deste,
Senhor! Senhor!
Sou forte agora, e temeroso,
Sou um rei Todo Poderoso
Senão olhai!
Só diante de ti me humilho
Senhor! Senhor! Sou teu filho
E tu meu Pai!
Venham armadas de Inglaterra
Venham as naus de toda a terra,
De todo o mar!
Que eu só por entre elas e o Oceano,
Na minha nau a todo o pano,
Hei-de passar!
Venha o exercito da Alemanha,
Mais seus aliados, mais a Espanha,
Hei-de vencer!
Tu és grande, és forte, Guilherme!
Tu és um mundo, eu sou um verme...
Vamos a ver!
Venha uma imensa tempestade,
Caiam raios sobre a cidade,
Venham trovões!
Que eu irei só para as janelas,
Sem Santa-Barbara, sem velas,
Sem orações!
Soldados de Alsácia e Lorena!
(A bela França assim mo ordena)
Vamos! Então?
Atirai balas aos meus peitos,
Que eu apanho-as, como confeitos,
Na minha mão!
Venham Filósofos, Doutores,
Venha Espinosa, outros maiores,
Gregos, Judeus;
Venham Estóicos, Pessimistas,
Cínicos, os Positivistas...
Eu creio em Deus!
Ó morte, minha amiga de outrora
Que fazes ai, há mais duma hora!
Queres-me? Ah sim?
Cortei as relações contigo
Ó vai-te! já não sou teu amigo,
Nem tu de mim!
Ó Luís de Camões e da Esperança!
Ao pé de ti sou uma criança,
Mas ouve cá.
Vamos cantar ao desafio,
Á sua janela, sobre o rio,
Ver qual mais dá...
Ó troveiros de toda a parte
D. Pedro!, D. Diniz!, D. Duarte!
O que sois vós?
Minha lira é do seu cabelo,
E os meus versos, quereis sabe-lo?
São a sua voz!
Ó vento cantante do Norte!
Minha lira agreste é mais forte
Do que a tua!
Vinde todos, troveiros do ar,
Em desafio comigo a cantar
Por essa rua!
....................................
Vem entrando a barra a galera «Maria»
Que vem de tão longe e tão linda que vem!
Toca em terra o sino para missa do dia
Em frente, em Santa Maria de Belém!
Mareantes trigueiros no alto dos mastros,
Aí dobram as velas não são mais precisas!
Ai que lindas eram, ás luas e aos astros!
Que doidas, aos ventos! que meigas, ás brisas!
Desdobra as amarras! apresta a fateixa!
Pois todos em breve a nau vão deixar;
Ó terra! Que saudade a de quem te deixa
Ó terra! pela aventura do alto mar!
Entra o piloto e abraçam-se estes e aqueles.
Abraçam-se e riem tanto á vontade...
Abraços que levam almas dentro deles,
Sorrisos de bocas que falam verdade!
Só as entende (capitães, não as sentis)
Quem, algum dia, passou as aguas salgadas
Quem, um dia, as passou numa hora infeliz
Quem, um dia, as passou, com as frontes curvadas.
E «Maria» vai indo pelo Tejo acima,
E cisma Henrique: «Que lindo Portugal!»
Vem as ninfas, vai uma dá-lhe uma rima,
Vai outra (gostam dele) e vai faz-lhe um sinal.
E Henrique cisma: «Quem não te viu ainda!
Ó minha Lisboa de mármore! Lisboa
De ruínas e de glorias! Tu és linda
Entre as cidades mais lindas, ó Lisboa!»
Ó minha Lisboa! com oiros tão constantes
Pelas serras e céus e pelo rio! Com seus
Jerónimos dos Poetas e Mareantes!
Lisboa branca de João de Deus!
I
Ó Lisboa! num século bem perto
Quando a África e as Ásias se mostrarem
Civilizadas, sem um só deserto,
E as esquadras do mundo inteiro entrarem
Naquele Tejo sobre o mundo aberto,
Para dos grandes ventos descansarem,
Ó Lisboa (não são glorias quiméricas)
Voltada sobre as Ásias e as Américas!
II
Porque é que Deus aqui te pôs á entrada
Senão para destinos imperiais?
Do mar da Índia a viração salgada
Respira-la tu, antes dos mais.
A ver és tu, primeira, a alvorada
E a ultima o sol nos fins ocidentais.
Lisboa! quando eras pequenina
Houve uma fada que te leu a sina?
III
O que já foste tu, noutras idades
Grande e famosa acima das Nações,
Tu de novo o serás, porque as cidades
Têm varias mortes e ressurreições,
Outras infâncias, novas mocidades,
Novas conquistas, outros galeões...
Ó coragens, ó cóleras, tormentos,
Trovões, Índias, relâmpagos e ventos!
IV
Velha Lisboa, minha mãe-madrinha!
Tu voltarás a ser o que já foste,
E não, não cuides que é ilusão minha,
Pois nenhuma já tenho a que me encoste!
Não sei quê dentro em mim mo adivinha
Não sei que voz mo diz de que eu mais goste.
E bem no sabes de bem longe: os Poetas
Não se enganam são bruxos, são Profetas!
V
Lá onde escoa o Tejo, os Escultores
De entre a agua erguerão altos heróis
Poetas, Santos e Navegadores:
Nuno Alvares sorrindo aos seus dois-dois,
Feridas de Astros! admiráveis flores!
(Com auroras e poentes como os soes...)
Luís de Sousa, cismático, e Frei Gil,
Pedro Alvares, a mão para o Brasil!...
VI
Vasco da Gama a apontar lá para onde
Nasce o sol, terra da sua Índia amada,
Outro a olhar lá, onde o sol se esconde,
Camões olhando triste a onda salgada;
Mas a onda passa, passa e não responde...
Que a leva o fado, vai muito apressada...
Todos tão vivos, os heróis colossos,
Que dir-se-ia que têm sangue e ossos.
VII
E do seu forte, S. Julião, em suma,
Sobre toda esta gloria e esta magoa,
Luas conta a desfiar uma por uma,
(Ondas do mar) Salve Rainhas da agua
E Ave Marias, de doirada espuma...
E os outros, no deserto dessa fraga
Pela noite o acompanham; e assim
Rezam todos por séculos sem fim.
VIII
Eu confio em ti reza dos Heróis,
E confiar em ti, não é vaidade.
Vossos nomes de bronze são faróis
Que luz darão, á nossa tempestade.
O nosso Rei... (cabelo em caracóis!)
Já não dorme no Paço... Piedade!
Deixareis a Pátria engrandecida
Por vossas mãos para sempre ser vencida?
IX
Cor do céu a bandeira e cor de neve
Não a vejo na torre a flutuar!
Senhor! Vós bem sabeis que o Rei não deve
Outras armas que a vossa apresentar.
Se assim deixais que outro povo a leve,
Porque a deste ao nosso para guardar?
Não é ele o mesmo que em Ourique
A aclamou nas mãos do teu Henrique?
X
Anda tudo tão triste em Portugal!
Que é dos sonhos de gloria e de ambição?
Quantas flores do nosso laranjal
Eu irei ver caídas pelo chão!
Meus irmãos Portugueses, fazeis mal
De ter ainda no peito um coração.
Talvez só eu! (Amor ai tu me entendes!)
Possa ainda ter a paz que já não tendes.
XI
Talvez só eu irmãos! mas é que a mim
Deve o Senhor as flores com que se enfeita
A mocidade!... que é dele o meu jardim!
Dizei-me vós irmãos, na vida estreita
Toda a desgraça não terá um fim?
Se a ventura não pôde ser perfeita
Tenho agora a Pátria em sepultura!
Que mais quereis na taça da amargura?
XII
Virá, um dia, carregado de oiros,
Marfins e pratas que do céu herdou,
O rei menino que se foi aos moiros
Que foi aos moiros e ainda não voltou.
Tem olhos verdes e cabelos loiros,
Ah não se enganem, (ainda não chegou)
Virá El-Rei-Menino do Estrangeiro,
Numa certa manhã de nevoeiro...
XIII
Tem loiros os cabelos, e é criança,
Tem olhos verdes de luar nocturno:
Olhos verdes, são olhos de esperança!
Olhos verdes, são Luas de Saturno!
Veio da Africa mais a sua lança
Vai para o mundo, rezando taciturno.
Tão pobrezinho, olhai! estende a mão:
«Quem dá esmola a D. Sebastião?»
XIV
Esperai, esperai, ó Portugueses!
Que ele há-de vir, um dia! Esperai.
Para os mortos os séculos são meses,
Ou menos que isso, nem um dia, um ai.
Tende paciência! finarão revezes;
E até lá, Portugueses! trabalhai.
Que El-Rei-Menino não tarda a surgir,
Que ele há-de vir, há-de vir, há-de vir!
Lá vem, lá vem minha Amada,
Rainha de Portugal.
Vem com a capa estrelada,
Debaixo dum palio real
Todo de seda vermelha,
Com saias de oiro e coral.
Vê o povo que ajoelha
E faz o «pelo sinal!»
Que linda é! que formosa!
Que graça ela tem a andar!
Pajens vestidos de rosa
Vão á frente a encaminhar,
Tirando as pedras da rua
Não vá ela tropeçar,
Tão leve, parece a Lua,
Tão leve que vai no ar!
Vinde ver, vinde ás janelas,
Meninas de Portugal!
Deixai o bordado, as telas,
Deixai a agulha e dedal.
Não temais a feia inveja
Vinde vê-la cada qual.
E que em honra dela seja
Esta noite o arraial.
Sua beleza é tamanha
Que pertence a Portugal.
Como obra de arte, estranha,
É um poema, é uma catedral.
Aos Lusíadas semelhante,
Aos Jerónimos igual,
Onde os poetas e o mareante
Dormem o sono final!
Nem Mafra com seu convento
Tem maior a altivez
..............................
Não se esquece, visto uma vez!
Seu corpo é uma obra de graça
E de que suave palidez!
A minha amada é a Alcobaça
Onde jaz a linda Inês!
É fidalga de nascença,
Mais do que os Reis, do que vós.
Já poetas na Renascença
Cantaram seus bisavós.
Mas mais fidalga é ela ainda
Por sua alma (sem Avós).
Ah! lá vem ela tão linda
E vem rezando por nós!
A minha Amada é fidalga
Que tem no mar seus brasões.
Tem na boca aromas de alga
Brisas da Índia e outras regiões,
O que prova donde vejo
Já no tempo de Camões
Era sobrinha do Tejo
E prima dos Galeões!
É toda de casos belos
A tua nobreza fina,
Toda torres e castelos
Com legendas de menina.
Excedes Reis e Profetas
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Menos os Santos e Poetas
Que têm costela divina!
Catorze luas já foram passadas,
Desde que eu a perdi e ao seu amor;
Meu coração tem ainda as janelas fechadas,
Ainda vestem de luto os meus criados, Senhor.
O POVO
Quimeras tombadas! Quimeras tombadas!
A sorte deu-me já cabelos pretos
Ai não preciso de os enlutar.
«Mas olhe as brancas... meu senhor»
O branco é luto, podes, Ama, descansar!
O COVEIRO
O branco é luto: são brancos os esqueletos!
Ó ilusões que em ti pus tão amigas!
Oh! a esperança que em minha alma é morta!
Antes eu te visse cobertinha de bexigas
Ou em farrapos, a pedir, de porta em porta...
TODOS
Antes a visses morta!
Antes a visses morta!
Dei-te o meu coração a ti, bela entre todas,
Coração, que a ninguém ainda se dobrara,
Chego do mar, venho assistir ás tuas bodas,
Ah! no mar salgado, porque não ficara.
UM PASTOR
Toca a noivado em Santa Clara
Dobra a defuntos três léguas em roda!
Fugiu-me a minha amada e com ela a fortuna,
Meu Lar por terra! sem ninguém na multidão.
Fiquei na vida só, como o Conde de Luna,
Mais sua espada. Ai do meu pobre coração!
(Meu coração cala-te ou fala baixo: massa
Os mais a nossa dor. Sim cala-te é melhor)
A procissão das Dores em mim sinto que passa
E passa... e passa... e cada vez será pior.
TERESA
Não que o fim duma desgraça
É o começo doutra maior!
Parti um dia, numa romagem,
Levando a Esponja, o Fel, a Cruz!
Regresso altivo dessa viagem
Feliz, ansioso. (E nunca o supus)
TERESA.
Senhor Doutor, tenha coragem
Olhe que mais sofreu Jesus.
E que vejo eu, Senhor! O meu prato sem sopa,
Meu Lar em pó, o amor dela já não é o meu.
Minhas camisas, hoje, são de estopa,
Foram de seda... Que vejo eu!
OS VIZINHOS
Foste á pândega por essa Europa,
Ai tens o pago que o Senhor te deu!
O mundo deu-me cabelos pretos
Ai não preciso de os enlutar!
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E mais em breve porque vou cegar...
UM CEGO
A Henrique ceguinho dirão
Olhe não vá tropeçar...
Amar a ela e dela ser amado,
Ir em breve pedir a sua mão!
E de repente tudo escangalhado!
Ai que desgraça! como os outros são!
TERESA
E que menino tão estimado!
E tudo nele é perfeição!
«Henrique meu amor, filho de Porto-Calle!»
Me dizia ela... Ai do meu coração!
Amor já me não tem, não há já Portugal...
E que vejo, Senhor! de ruínas pelo chão!
OS MENDIGOS
Tantos vadios sem nada na mão
Sempre á espera de D. Sebastião.
Ó D. Sebastião a ti comparo,
El-Rei de Portugal, a minha sorte,
Se te encontrasse na vida, serias meu amparo,
Ser-mo-ás talvez depois da morte.
D. Sebastião, rei dos desgraçados,
D. Sebastião, rei dos vencidos,
El-Rei dos que amam sem ser amados
El-Rei dos génios incompreendidos.
Sai, um dia, a barra á procura da gloria,
Entre soluços e orações, cuja memoria
Me faz tremer. (Ah foi numa tarde de Outono,
Que linda! O mar espreguiçava-se com sono...)
Por essa barra saem, cheios de pecados,
Bandidos com seus crimes e mais os degredados,
Traidores á Pátria e ao Rei, infelizes e ladrões.
Por lá saiu, também, numa noite, Camões.
No barco em que segui viagem nessa agua,
Levava aos ombros um baú cheio de Magoa
E mais um saco de Dor que por lá me ficou.
De volta trago três, que aquele não chegou.
Os Homens conheci nessa jornada pelo mundo.
Não lhes quero mal, seu erro é tão profundo!
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Todos partiram, todos fugiram.
Os ladrões assaltaram-me á estrada
Quiseram-me matar. Não conseguiram.
Ninguém me resta, não me resta nada!
Fui enganado nos meus leais amores.
Já tive de salvar a minha vida á espada.
No meu jardim semeai lilases,
Passado tempo vi nascer ortigas;
Cada dia que nova dor me trazes?
Lavrei canduras e colhi intrigas,
Nasceram ódios onde pus perdões.
Não digas mais meu coração! não digas
Procriei gigantes vi nascer anões,
Plantei nesta alma vinhas da piedade
E vindimei, Senhor! Ingratidões!
Nunca se deve ter tanta bondade,
Quando é excessiva e tanto dó inspira
E uma falta até de dignidade.
Ora eu assim cercado de mentira,
Longe de tudo e todos, e enganado
(Quando se foi tão criança o que admira!)
Vi-me sem Deus, só, triste e em tal estado
Que se o contasse choraríeis... Não!
Não falta em que empregar pranto salgado.
Que infortúnio, meu Deus! que decepção!
Minha crença católica perdi-a,
Já não sei persignar-me com a mão.
Durante meses, sempre, dia a dia,
Ainda fui, por habito, á Igreja:
Não sabia rezar a Ave-Maria!
Chegava ainda até «bendita sejas...»
E ao ver a Virgem de olhos sobre mim
Corava de pudor como as cerejas.
Nunca na Terra se viu nada assim!
Minha vida mudou-se de repente.
A tosse veio... vós sabeis o fim.
Foi a queda do Império do Ocidente!
Foi o desastre de Alcácer-Quibir!
A Espanha veio com Filipe á frente!
Que mais viria e estava para vir?
E fui a França consultar um Bruxo
Que eu já de há muito desejava ouvir.
Á porta havia uma cruz de hera e buxo
E ao centro, no jardim, dentre uma fraga,
Erguia-se em girândola um repuxo.
Bolas de sabugueiro á mercê da agua
Iam e vinham, graças de meninos,
Ascensões de prazer quedas de mágoa!
Era a sorte a brincar com os destinos...
Não deixava de ter engenho o dianho
Do Bruxo! Mas que símbolos tão finos!
Entrei. E vi um Velho alto, tamanho,
De barbas brancas a tocar-lhe os joelhos.
Sois vós o Bruxo? «Sim! esse é o meu ganho!»
Tinha um sorriso que só têm os velhos.
E os lábios brancos (de quem já não ama)
Que contrastavam com os meus, vermelhos.
Venho de longe, aqui, por vossa fama.
Vosso nome chegou ao meu pais.
O teu pais, Senhor! como se chama?
Não: dá-me a mão, ela melhor mo diz:
«Oh vens de Portugal? Oh se o conheço!
Manda-me para cá muito infeliz...»
Ouvindo tais palavras, estremeço.
Nele fixo os meus olhos de admirado
E que me diga os fados eu lhe peço.
Sombrio, o Bruxo assenta-se, calado,
Numa cadeira antiga, ao pé do lume.
Eu assentei-me tímido, ao seu lado.
Ó momento que um século resume!
O São Paulo do Amor! Mártir cristão,
Que ao ver a espada já lhe sente o gume!
Na sua mão tomou a minha mão.
Seus olhos frios crava-mos na palma,
Mas de repente muda de expressão.
Que passado, Senhor! tem dó desta alma!
Catástrofes! Naufrágios! tantos perigos!...
Mas eu logo acudi, com grande calma:
Basta. Deixai-me em paz o tempo antigo.
Eu conhecia-o já antes de vós.
Para que lembrar-mo? Sêde meu amigo!
Numa sala contigua, etérea voz
Rezava a ladainha, eram mulheres.
«Estrela da manhã! ora por nós!»
«Nada te digo, pois que assim o queres!
Ouves? Lá dentro, rezam minhas filhas.
E rezarão o tempo que quiseres.»
E continuou a ler: «Que maravilhas!
Que mão estranha! mão de tempestade!
Mares, golfos, canais, cabos e ilhas!
Vais em meio da tua mocidade.
Tens vindo em tua nau, desde criança,
Por um sombrio mar da antiguidade.
Agora, aqui, o temporal descansa
E vê: segundo a altura do quadrante
Dobras o Cabo da Boa-Esperança!
Coragem! meu sombrio navegante!
Paciência! mais um pouco e aportarás
Á Índia! mais tua esquadra de almirante!
Ali, te aguardam Bens te espera a Paz
A boa Gloria e mais do que isso, até,
Um grande amor, e ali te coroarás!»
O Velho disse. E, logo, pus-me em pé.
Muito feliz, não querendo ouvir o resto,
Que eu sei o vazio que este mundo é.
Adeus! disse eu aquele sábio honesto,
Formoso e de olhos grandes como céus!
Adeus! e parti logo, altivo e presto.
Caía o sol no oceano. Orei a Deus.
Uma nau me esperava... Erguemos ferro
E abalamo-nos de França. Adeus! Adeus!
Que pecado Senhor! ou grande erro
No mundo cometi que me dás tantos
Trabalhos, como na África em desterro?
Não posso ser bem sabes como os Santos.
Mas quantos homens neste mundo avisto
Tão felizes (e maus!) quantos e quantos!
E se não fui eu que pequei, ó Cristo!
Pecariam os meus antepassados?
Quem foram eles? Vem contar-me isto!
Religiosos, marítimos, soldados?
E justas são as leis com que me aterras
Sendo eles os únicos culpados?
Na Arábia, na Fenícia ou outras terras
Causaram, vai em séculos, paixões
Fomes e sedes, ou atearam guerras?
Comeu a terra os ossos desses leões,
As suas cinzas foram-se nos ventos
E eu sofro, apôs quinhentas gerações?
Que injusta coisa! que desleais tormentos!
Que faz rezar, á noite, de mãos postas,
De que serve cumprir teus mandamentos?!
Quem sabe se não foram meus avós,
Senhor! Que tanto e tanto te ofenderam,
Mas meus arqui-primeiros bisavós?
Quando os vulcões da terra arrefeceram,
E lentamente, aos poucos, e as primeiras
Aflorações da vida apareceram;
Talvez, que um tigre eu fosse, que nas carreiras
E uivando, á lua, e destruísse as matas
Que levaste a criar noites inteiras!
Talvez, no dia em que baixaste
Á terra, para ver a tua obra
Vestido de alvas vestes como pratas,
Fosse eu, cobarde! a pequenina cobra
Oculta entre jasmins que te mordeu...
Quando ias a colher algum... de sobra!
Outrora o sol ardia no alto céu,
Pediste sombra á arvore num monte
Que ergueu a rama e essa arvore... era eu!
Quando o sol caía, á tarde, no horizonte,
Todo vermelho como agora, vede!
Sequioso, ias beber a agua da fonte,
E eu (que era agua) não quis matar-te a sede!
Quem sabe se uma vez, pela noitinha,
Foste ensaiar o mar, deitando a rede,
E cobiçou o peixe que lá vinha
E ta furtou, (brinquedos de criança!)
Alguma onda do mar, minha avozinha?
Mas mesmo assim, Senhor! Senhor da esperança!
Como devo sofrer perseguições?
(Eu concordo) é legitima vingança?
Ah não! eu não descendo de leões
Nem da vil cobra que se vai de rastros,
Que só concebe e dá á luz traições!
Nem dos pinheiros altos como mastros
Nem das aguas que vão regando os milhos:
Nós os poetas descendemos de astros,
Nós os poetas, Senhor! somos teus filhos!
... Assim cismava eu pelo mar alto
Sob o luar partindo-se em vidrilhos...
Quando numa manhã de azul cobalto,
Ao acordar, me vi no claro Tejo
Orei a Deus. E logo sai dum salto.
Meses passaram, longos! que nem vejo
Que diferença em séculos, ou meses:
O tempo marca-o a ânsia do Desejo!
Que fazia eu? Nada. Cismava, ás vezes,
Errante, ao «Deus-dará» da vida:
Sempre assim fomos nós, os Portugueses!
Ora em dia de Santa Aparecida
(Mais uns minutos, esperai, Senhores,
Que eu acabo esta historia tão comprida),
Errava num montado entre pastores
Quando, súbito, vi uma Donzela
Tão linda! num Solar, colhendo flores.
Oh doçura de carne ou de estrela!
Que esvelteza e que graça de alfenim!
Meu coração disse-me baixo: «É ela!»
Qual de vós, Homens! Já não teve assim
Uma visão, vendo erguer-se entre
Nuvens, a vossa torre de marfim?
Deixai que a minha alma se concentre.
Deixai! que esse dia é maior que quando
Minha Mãezinha me pariu do ventre.
Quedei-me, ao vê-la, em extasies olhando.
Dobraram-se-me os joelhos e ajoelhei;
Meus lábios moviam-se... rezando!
Quem será ela? a filha de algum Rei?
Atrás seguiam-na duas aias velhas:
Quem será ela, quem será? Não sei.
Era em Agosto. O sol ardia. Abelhas
Voavam, ao sol, enquanto ela lia
Um livro de horas com folhas vermelhas.
Que paz! nem uma arvore bulia!
E calavam-se as fontes! Que doçura!
Mas de repente uma voz chamou: «Maria!»
Maria se chamava! Oh que ventura!
Partiu. Eu quis segui-la, mas não pude!
Que torpor esse que ainda hoje dura!
A virgem me proteja e Deus me ajude!
Vai alta a noite, eu caio de fadiga,
Bambas as cordas do meu velho alaúde!
Ó Génio, não te partas sem que eu diga
O encanto, mais a graça encantadora
De aquela virgem Castelã antiga.
Minha fronte vergou-se, cismadora:
Quem será ela, mística visão!
Parece com seu Ar Nossa Senhora!
Mas eu já tive tanta decepção
(Lede, lede, o principio desta historia)
Que contive essa súbita paixão.
Tudo na Vida engana, até a Gloria.
Para deixar de o crer fora preciso
Lavar no Lentes minha fiel memoria.
Assim pensava eu, meio indeciso,
Quando na estrada junto a mim passava
Um velhinho a rezar ao Paraíso.
Num cajado de lodo se apoiava.
E detinha-se, ás vezes, um momento,
Erguia ao céu o olhar, e suspirava.
As barbas brancas, flutuando ao vento;
Devia ter um século de idade
E talvez vinte ou mais de sofrimento!
Parou ao ver-me e olhou-me com bondade:
Depois na sua voz meiga de brisa:
Uma esmola, Senhor, por caridade!
Uma lembrança dentro em mim se enraíza.
Dou-te, bom velho! tudo que quiseres,
Se em troca me dás vestes e camisa.
O velhinho sorriu como as mulheres.
A quinzena me deu, e eu dei-lhe a minha,
Que na botoeira tinha malmequeres...
Ninguém a essa hora pela estrada vinha.
Tudo despiu, me deu: fiquei perfeito.
E eu dei-lhe em troca tudo quanto tinha.
Mas não estava ainda satisfeito,
As suas barbas brancas eu queria,
Comprar-lhas era falta de respeito!
Comprar-lhas nunca eu me atreveria!
Mas o bom velho o pensamento ouviu,
Que aquele olhar excepcional ouvia.
Ó grandes barbas! que ainda ninguém viu!
Ó grandes barbas! como eram belas!
Tal como outrora as de D. João, em Diu!
Não lhas vendo, Senhor! mas dou-lhas, quê-las?
Ó povo português! quanto és simpático!
Ó povo português das caravelas!
Cortou-as. Deu-mas. Eu fiquei extático.
Beijei-lhe as mãos curvado... E o bom velhinho
Lá se foi, a cismar... tossindo... asmático...
O sol caia ao longe no caminho!
Não tarda a noite, já lhe sinto os passos,
Mas há tempo: ela anda devagarinho.
Enfarpelei sem grandes embaraços;
A toillete tem poucos elementos,
Muitos remendos sim, rotos os braços...
Perdia-se o velho, ao longe, em passos lentos;
«Que nome tens, amigo?» lhe gritei.
«Manuel». E digo eu, «dos Sofrimentos».
Caia a noite: com pressa caminhava.
Segui os passos deixados por Maria
Que flores na mão, andando, desfolhava.
Não era aviso que assim daria?
O meu olhar teria percebido?
Que luz de esperança a minha alma via!
Entrei no pátio, Senhores! Mas que atrevido
Irão achar o pobre esfarrapado!
Um mendigo velho... e tão mal vestido!
Pedi esmola e parei sobressaltado.
Enquanto alguns me enchiam a sacola
Um olhar lindo em mim era fixado.
E que olhar para mim! tanta doçura evola!
Senhores, eu não me tinha enganado...
(Assim julguei então... a Vida foi-me escola!...)
Ela passou, de manso, para o meu lado
E murmurou o meu nome, assim, baixinho...
Disse-me depois que o houvera sonhado!
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TERESA
«E depois, menino, sabemos já o resto...
Para que mortifica assim o coração?»
Ai minha Teresa! tu tens talvez razão:
Esse amor primeiro foi-me tão funesto!
O os meus dias idos em contemplação!
O os meus loucos sonhos que dai eu trouxe!
Falava eu ás flores, como se ela fosse:
«Maria» eu lhes chamava, cego de paixão.
Hei-de gravar-te em bronze e tornar-te imortal!
Eu hei-de lançar o teu nome aos quatro ventos!
Eu, o humilde Sr. Manuel dos Sofrimentos,
Eu, por graça de Deus, poeta de Portugal.
Quem é, Teresa, que bate á porta
Quem vem a esta hora quebrar meu sono?
Ninguém é, meu Senhor, a noite é morta,
São folhas a cair, que é já outorgo...
«Quando eu era moça e menina,
A-i-ó-ái!
Um velho, um dia, leu-me a sina.
Há que tempos que isso lá vai!
A-i-ó-ái!»
(O vento continua uivando).
Quem é, Teresa, que oiço clamores,
Vai ver á porta, vai num instante!
Sossegue, durma, são os lavradores,
Que passam para a feira de Amarante...
E vá de roda! e vá de roda!
Olé!
E vira e vira e já virou!
E na tarde da minha boda
Houve baile, houve baile, olé!
Tomou parte a aldeia toda,
E vá de roda! e vá de roda!
Olé!
(O vento uiva sempre).
Quem é, Teresa? quem é, Teresa?
Quem é, Teresa, que bate á porta?
Olhe a Fortuna não é com certeza,
Por isso... durma, durma, que lhe importa?
(O vento uiva, uiva).
Não ouves, Teresa, três pancadinhas?
Vai ver: é a D. Felicidade.
Mas as senhoras não saem sozinhas
Numa aldeia, nem mesmo na cidade...
Durma menino, a dormir
Não sofre tanta paixão,
Os sonhos que lhe hão de vir
Afasto-os eu, com a mão.
Durma menino, a dormir
Não ouve o seu coração,
E para o ajudar a dormir
Eu canto-lhe uma canção:
Era uma vez, num paço sobre o Tejo,
Um moço Rei... de lindos olhos verdes;
(Senhor! se a luz dos vossos, perderdes,
Tereis os dele que sempre abertos vejo.)
Andava o moço Rei com seu gibão
De prata branca, reluzente de oiros.
Tinha em anéis os seus cabelos loiros,
No céu era anjo e cá... Sebastião.
(O vento geme, geme sempre).
Quem é, Teresa? quem é, Teresa?
Não ouves passos, que vão pela serra
Não ouves gritos, quem é, Teresa?
É D. Sebastião que vai para a guerra.
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Por uma tarde de chuvinha miúda e vento,
Destas tardes, meu Deus! que fogem os paquetes,
E a chuva tomba sem parar um só momento,
A chuva que parece de pontas de alfinetes,
Por uma tarde triste assim, é que Henrique
Partiu. De novo abandonou o seu solar.
Da sua aldeia os pobres pedem-lhe que fique,
E Teresa bem faz também pelo guardar.
Por uma tarde de chuvinha miúda e vento,
Henrique foi bater á porta dum convento.
Bateu á porta, um Frade veio-lhe falar.
«Que desejais, Irmão»? e respondeu: «Entrar».
Frades! meus Frades! ai abri-me a porta!
Abri-me a porta, que eu pretendo entrar.
Eu trago a alma toda ferida, morta,
Só vós, Fradinhos, ma podeis curar!
Há quantos anos vós estais fechados
Nestas muralhas de granito e cal!
Ah se soubésseis, Frades corcovados!
O que vai lá por fora, em Portugal!
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Henrique, até que enfim cedes ás magoas!
Até que enfim eu vejo-te chorar!
Chorai, chorai, ó longos fios de aguas!
Ó olhos grandes como os globos do Ar!
Ah chora Henrique, chora nos meus braços
O moço Poeta que te está a cantar!
Choremos entre beijos, entre abraços,
Também eu choro por te ver chorar!
Ah chora Henrique, chora, não te escondas!
Tens pudor que te venham encontrar?
Choram os canaviais, choram as ondas,
Só os cínicos não podem chorar!...
Ah chora, Henrique, chora no meu peito,
Assim baixinho, lento, devagar!
Custa-te muito? não estás afeito!
Chora, meu filho, que é tão bom chorar!
Henrique ouve-me bem, minha criança!
Nem tudo se perdeu com o teu Lar.
Ainda tens na vida uma esperança...
Meu pobre Henrique, és tão lindo a chorar!
Teu coração está morto, bem morto.
Nada no mundo o poderá salvar.
Ah! moço que tu és, que desconforto!
Tens razão, oh se tens! para chorar!
Tens razão, Henrique; mas no entanto,
Quem sofreu como tu sem descansar,
Henrique, ou dá num cínico, ou num santo:
Não és cínico, não, sabes chorar.
Ouve-me, Henrique: nesses céus existe
Um homem, Pai da Terra e mais do Mar,
Que fez o Mundo (por sinal tão triste)
E os olhos, não para o ver, mas para chorar.
Vá! oferece-lhe a tua mocidade.
Vá! vai sofrer por ele e trabalhar.
Ah bem sei que custa tanto, nessa idade...
Mas que hás-de tu fazer? Chorar? Chorar?
Não tens na vida uma alma amiga
(Tu bem no sabes) para te amparar.
Só eu, embora curvo de fadiga,
Tenho paciência para te ouvir chorar!
Todos os mais, malvados e egoístas,
(Que tudo a Deus, um dia, hão de pagar)
Não te poriam nem sequer a vista,
Fugiriam, ao verem-te chorar!
A adversidade é uma maravilha
Que certas almas sabem respeitar,
Mas aos olhos dos mais a dor humilha...
Ah quanto é grande ver um rei chorar!
Ah pensa, pensa bem na tua sorte,
Cautela, Henrique, nada de brincar.
Há outros males piores do que a morte,
Cautela, Henrique, vamos trabalhar.
Vai trabalhar por Deus. «Mas como e aonde?
Não vos disse que morto é Portugal?
Para o trabalho quem antes era conde!»
Ai meu Henrique, não te fica mal!
Não me dizes que lá por Portugal
Andam as almas todas quebrantadas?
Vai, meu filho, vai para Portugal
Vai levantar as flores, já tão quebradas.
Anda, meu filho: vai dizer baixinho
A esse povo do Mar, que é teu irmão,
Que não fraqueje nunca no caminho,
Que espere em pé o seu D. Sebastião.
Henrique, vai gritar por essa rua
Virá um dia o «Sempre-Desejado»!
Deu a vida por vós, Tu, dá-lhe a tua,
Esquece nele todo o teu passado.
Procura bem Henrique, em Portugal;
Procura-o na flor das primaveras,
Procura-o na sombra do olival;
Procura á luz de todas as quimeras...
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