sexta-feira, 10 de julho de 2009

FRANCISCO PALHA- Musa Velha - Poesia

MUSA VELHA 35

virgem dos olhos negros, se em tua alma
memoria ainda conservas doutro tempo,
só tu entenderás porque este livro
ousa ás trevas fugir, e o sol encara;
mas como quem escreve e quem publica
não perde tempo, nem dinheiro gasta
para teus ócios entreter somente,
deixa-me ver se à força de assinantes,
de venda avulsa, exemplares de mofo,
há mais no mundo quem me entenda e leia

DONA MORTE

Deu na tonta de entrar na minha escada
à Dona Morte um dia.
A pobre anda estafada
do continuo ceifar desde que ao nada
por divinais processos da alquimia
a terra foi roubada.

*

Da comprida queixada desdentada
esta sentida genica lhe saía:
Senhor! forte estopada!
Sem poisar a caveira o mundo corro.
Em toda a parte estou. A toda a hora
prostro alguém a meus pés, e geme, e chora
por minha culpa alguém! Nenhuma aurora,
de luz nenhuma o jorro,
as orbitas vazias me alumia!...
Nunca uma esperança! nunca uma alegria!
Á dor alheia pondo um suave termo
só a minha o não tem!... Só eu não morro
enquanto o mundo não tornar um ermo!...
Á obra! Á obra!
E lépida subindo
tocou a campainha:
um lúgubre tocar que dava medo;
que não mais deixarei de estar ouvindo,
e fez com que eu então, muito em segredo,
rezasse a ladainha.

*

Era um simples aviso, pois que a porta
por si se escancarou e deu entrada
àquela feia ossada
de vermes revestida, e negra, e torta,
de mim há longo tempo enamorada.

Senhora Morte, viva!
disse ao vê-la, fingindo animo forte;
mas cá por dentro, como a sensitiva
na haste as folhas retraí que lhas não corte
quem dela se aproxima
e levemente a mão lhe põe por cima,
cá por dentro a minha alma, em pasmo estranho
por ver-se em tão cruel extremidade,
foi-se encolhendo até ser do tamanho
dum reles feijão frade!

*

Desculpe a impertinência
continuei. Como é que usam trata-la?
Por tu? Por Excelência
como é hoje tratada toda a gente?
«A mim é-me indiferente.
Não faz ninguém de tal miséria gala
no reino onde eu impero.»
Esta resposta
me deu a Dona Morte, e junto ao leito,
onde eu espreguiçava a mandrieira,
chegou; puxou cadeira;
sentou-se gravemente, sobreposta
uma rótula noutra.
Com efeito
mau é vê-la!... pior á cabeceira!
E pôr-me a fria mão aqui no peito.
«Que bons pulmões tens tu! e como pulsa
na tua idade o coração ainda
pelas paixões mundanas agitado!»
Então...volvi com voz menos convulsa
ainda tenho a viver um bom bocado?!
«Conforme. Tudo finda
quando me apraz e breve.»
Se ao teu lado
para afastar-te eu não chamar a Ciência.
«Dou-te um doce que a chames! Cai tu nessa!
descobriste a maneira, tem paciência,
de eu carregar contigo mais depressa.»

Banal! Banal! Cuidei que era outra coisa
rosnei com meus botões. Um vende bolas,
um balúrdio qualquer vindo de Lousã,
da Lourinhã, do inferno, esta sandice
acho diria qual a Morte a disse.

*

Ela no entanto, um pé bamboleando,
com as falanges dos dedos descarnados
batendo sobre a tíbia, ia soltando
uns sons de castanholas
com que soe convocar gatos pingados
ás grandes, funerárias cabriolas.
Após pequena pausa
de súbito se ergueu.
«Não há remédio!
Deixar-te vou por causa
duns ganchos que tenho aqui no prédio.
O cónego não dorme há três semanas.
Rouba-lhe o ar a sufocante angina
que o peito dilacera.
Tem esgotado as provações humanas.
Na longa vida santamente austera
fez jus, coitado! á compaixão divina.
Melhor que o da morfina,
premio á virtude, um sono lhe preparo
brando, quieto, sereno como um lago.
Apanha o padre agora! e apanha, é claro,
quem lhe abichar na Sé o lugar vago.
O cónego aviado, tenho uns planos
de ir tocar no ferrolho ao conselheiro.
Quero abater-lhe a proa!... Setenta anos
e sobe ainda lampeiro
outros tantos degraus!... Então corado!
redondo!... Uma cereja!...
E como se espaneja
quando vai pela rua engravatado,
para as moças olhando ás furtadas
como quem diz: Assim quisessem elas!
Chucha um pisco ao jantar; um pisco á ceia.
Por não dormir de tarde
nem trazer nunca a barriguinha cheia
considera-se livre do meu jugo
e disso faz alarde!
Pois tu vais ver, frade de sabugo!»

Travou da arqueada foice;
disse-me: «Adeus! Eu volto. Eu volto. Espera»:
virou a espinha, e foi-se.

*

Sim, que te espero! Aqui te aguardo, ó fera!

*

Mal passado um minuto, instantes, penso,
portas a abrir-se, gente que subia
resmungando latim, e cheiro a incenso,
o opoponax da velha liturgia.

Desci. Curvei-me. Bem-aventurado
aquele que tem fé! Como um soldado,
firme em seu posto o cónego morria.

*

Volto a casa. Corri logo á janela.
Nos amplos céus azuis esmorecia
a luz dum sol de Abril. Do flóreo seio
perfumes exalava a Primavera
falando-me por modo que a entendia.
Quanto distava, quão diversa que era
da outra cena aquela!
Então clamei: Em ti, meu Deus, eu creio!

Um mes depois alguém contar-me veio:
Lá puxou o vizinho aqui do lado!
Ontem, depois do chá e o rol escrito,
saiu da mesa, deu-lhe uma tontura,
rodopiou, caiu na sepultura
com a paz na consciência e o palito
no canto ainda da boca!

No outro dia
foi-se o bom conselheiro, encaixotado,
direito ao cemitério.
Na turba que o seguia
havia quem dissesse: Um homem sério!
E tudo era acabado.

*

Chega-me agora a vez. Pronto! Presente!
Pronto sou a marchar!... mas descontente.
Não que eu tema morrer. Quem morre inteiro?
Aquilo que me assusta, o que me aterra
é somente a lembrança de que á terra,
tal qual se semeasse fava ou trigo,
o bruto do coveiro
cantarolando, atirará comigo!

Eu, que respiro ao sol da liberdade,
fechado num segredo húmido, imenso,
frio, escuro, por toda a eternidade!
Preso... amarrado ali! Meu nome inscrito
num livro negro, em folhas cor de icterícia,
como se inscreve em notas de policia
o nome do gatuno a quem o apito
tranquilo não deixou bisar um lenço!
Numerado ainda em cima! numerado
como um grilheta!... O cento e trinta e cinco.
de cestos de cal virgem carregado
para todo o sempre num caixão de zinco!...

*

Não estou pelos autos. Não!... Protesto.
Quando a morte vier por este resto,
de homem... de coisa... nem eu sei ao certo
isso que fui, que sou, para o que presto:
quando ela pois vier, e virá cedo...
e vem... que a sinto perto,
ordeno que me estendam num penedo
da minha amada Sintra. Redivivo,
á luz serena e pura
dos puros céus, o mísero cativo
reabrirá seus olhos porventura!
Ainda lá teu amor, tua beleza,
a força me darão, três estrelinhas,
para afrontar a idade, a natureza,
e triunfar do Eterno!
Com certeza
que nem sequer, leitor, tu adivinhas,
nem eu jamais direi de quem se trata.
Bem o desejas tu, língua de prata!
Era um maná!

*

Ó sombra que fugiste,
que sem cessar procuro em toda a parte
e não encontro nunca,
porque é que tu não voltas, e desta arte
de saudades a Dor, teimosa, junca
o meu caminho triste?!
Agora ao menos, anjo expatriado,
em que eu por ti resumo
numa lágrima só as que hei chorado
dês que te dei minha alma até esta hora,
porque é que tu não vens mostrar-me o rumo
do ninho teu de outrora?!
Vem! e guia-me tu neste momento
á doce paz do suspirado porto!
Foste na vida o meu maior tormento...
Ai! Sê na morte o meu maior conforto!

POR FIM... 180px-FallingwaterWright

Tu queres, Dorinda, queres
que eu tome os banhos da igreja?!
Não será melhor que esteja
de noite a fazer colheres,
de dia a apanhar carqueja?!

Pelo céu! que o matrimónio
não é mais que pelourinho,
donde as barbas do vizinho
vemos ardendo! demónio
disfarçado em Cupidinho.

O Outono com seu cortejo
de folhas secas no chão!
O eterno adeus á ilusão!
O ultimo som do harpejo
que Amor tira ao coração!

O susto! a agonia! o transe
de ir vivendo sempre á espreita
se há quem tornar-nos alcance,
pois tal historia deleita,
altos heróis dum romance.

E queres, Dorinda, queres
que eu tome os banhos da igreja?!
Para quê? Para que veja
que entre todas as mulheres
uma existe que sobeja?!

Não! e não! Viva o solteiro!
Águia voando no espaço
sem ter certo o paradeiro,
e cravando as garras de aço
nas pombas que vê primeiro!

Sai, e entra, e torna fora
sem que ninguém lhe interrogue
onde foi, qual é a hora,
nem picuinhas lhe jogue
sobre a provável demora;

Sem que a esposa ciumenta,
Fúria, Medusa, tormenta
de más caras, más respostas,
invente o que o diabo inventa:
dormir-se costas com costas.

E, depois, Madame Aline
roa as unhas! Que se fine
entre rendas de Alençon!
que o meu dinheiro não tine
para que tu andes no tom!

Já vês que debalde queres
que eu tome os banhos da igreja.
Iça o pau da caranguejo!
Nos turcos os escaleres,
e para o largo veleja!

Mas também... viver sozinho!
Sem fé... perdido... sem ninho...
Sem se erguer uma só voz
na aridez deste caminho
a Deus orando por nós!!

Retornando ao lar deserto
achar tudo a trochemoche!...
O baú sem chave e aberto
dizendo ao larapio: Entrouxe,
que você é que é o esperto!

Sempre mal fervida a sopa!
Sempre o café mal torrado!
Feita a passagem na roupa
deixando o dono enleado
se foi a agulha se a choupa!

Se ainda, Dorinda, queres
que eu tome os banhos da igreja,
não descanses na peleja,
que eu sou como os malmequeres:
não e sim. Louvado seja!

Ai! que é bom durante os ócios,
na fortuna e na miséria,
achar ao lado uma Egeria
que, em se falando em negócios,
não tuja sobre a matéria;

Que seja como a romana,
meio amor e meio roca;
não saía nunca da toca
mais que uma vez por semana,
nem tinja o cabelo de oca;

Nem, quando a afiada foice
da vida o fio nos corte,
de rijo invective a Sorte,
e diga baixinho: Foi-se!
Quanto és minha amiga, ó morte!

E daqui outro consolo
melhor que maracujá
e que o doce de tijolo:
ter quem, a rilhar num bolo,
nos julgue e chame papá!

Loura criancinha meiga,
para o pai mimo celeste,
e para o estranho uma peste
que emporcalha de manteiga
as calças que a gente veste.

Ainda agora é que eu reparo
nos teus olhos, criatura!
São negros... dum negro raro!
Negros como a noite escura
com seus quês dum sol bem claro!

Alto o seio e pura neve
que mil desejos excita!
O pé delgadinho e breve;
e quanto a mão... Deus permita
que a não tenhas muito leve.

Dá-me o teu braço, Dorinda.
Vamos aos banhos da igreja.
Certo é que não graceja
quem diz que os refrescos, linda,
curam toda a brotoeja.

CARTA 1566_38

ao Conde DAlmedina, Inspector da Academia Real de Belas-Artes,
que no estrangeiro solicitou uma comenda para o autor

Tratante do inspector, cuidei-te amigo
e sacas-te a mangar assim comigo!
Traição! insidia! roubo! Eu, um pelintra
que nem posso comprar um burro em Sintra,
onde a comenda magna em chamas brilha
sobre o manto azulado de escumilha
que Deus usa no verão, e a natureza
irónica sorri da pequeneza
desta baixa comedia, eu velho! eu calvo!
á publica irrisão a servir de alvo?!...
Qual foi meu crime? Qual? Era deveras
menos duro entregar-me inteiro ás feras.
Ridículo não há na gente morta.
Fora uma vez um Palha!... A questão corta
e não se fala mais.
Por não ter guines,
tratante do inspector, não me apepines.

Eu amo a sombra fria. Odeio a moda.
No bulício dum baile anda-me á roda
a caixa do miolo; um labirinto
onde, perdido, entontecer-me sinto.
Moem-me as praxes; pesam-me etiquetas,
e tudo sei rasgar... menos baetas.
Por mais que mire uns outros enfeitados,
tão contentes de si, e tão coitados
que julgam ser alguém!, não sei... não acho
nem honra nem razão no berbicacho
dourado, reluzente, sol de esmalte,
do qual em cada raio não ressalte,
ante luz de gloriosa eternidade,
um feito ilustre a bem da humanidade.

Doutro modo o que é? Um mau bocado
de pão de rala a cães famintos dado:
dum relés charlatão a tabuleta,
na qual, quem passa, lê: Dom Paparrêta!
ou lê ainda pior!
Mete-me á bulha,
terás aqui o rol de quanto pulha
grande se fez tal qual se torna grande
o bácoro a fossar e a comer lande.
Ai! no me pique usted! Sob o arminho
busca, e talvez encontres pergaminho
lavrado a ferro e sangue, fresco ainda,
nos coiros foscos de infeliz cabinda.
Nem títulos pomposos nem veneras
valem dez reis furados nestas eras.
Hoje o premio a heróis dá-se ao dinheiro.
Importa lá se é falso ou verdadeiro?!
Comprou? Correu? O mais é tudo historia.
Nem o nome vilão fica em memoria.
Uma coisa é escalracho, outra papoila.
Onde era a nódoa pôs-se a lentejoila.

Há excepções, bem sei. Dou-lhes apreço.
Morro de amor por essas que eu conheço;
mas como a estes raros não pertenço,
e menos ainda aos outros, o bom senso
manda que eu te agradeça os teus favores
e ria da mercê.
Quando tu fores,
saudade ao peito, encasacado, sério,
despedir-te de mim no cemitério,
verás que desço á terra, oh! vista horrenda!
nuzinho tal qual vim; e por comenda
inerte o coração, gasto da vida
na rude, pertinaz, obscura lida.

Tu mesmo então, artista de olho fino,
dirás á turba:
«Enfim o peregrino
na paz eterna vai dormir agora!
Andou mentido a vida inteira á nora
deste poço sem fundo de misérias.
Abusava do riso, das pilhérias,
e doutras coisas mais em que não falo.
Foi Job em vez de ser Sardanapálo.
Uma raia da Sorte. Ela faz disto:
dá impérios ao demo, a cruz ao Cristo.
Mas resta-nos, amigos, um consolo:
tudo seria... excepto um grande tolo.»

REQUERIMENTO

Meu Couto Monteiro,
senhor da Justiça
que nunca, que eu saiba, saiu do tinteiro,
e pai dos famintos que engolem á missa
o corpo sem mancha do santo Cordeiro.
Não rondo as arcadas
fazendo-te esperas.
Não subo as escadas
que ascendem aos átrios das altas esferas,
levando no bolso memoria sebenta
que há mais de mil anos requer um despacho,
nem ponho o toutiço, já calvo aos cinquenta,
em ar de tapete,
em ar de capacho,
no teu gabinete.
Só quero dizer-te que tenho defronte
da casa onde habito
um sino maldito.
Não sei se to conte...
De dia, de noite, ao sol, ao luar,
não faz outra coisa
senão badalar!
Nem ele repousa
nem deixa na rua ninguém repousar!...

Há quem me assevere que o demo mofino
montado no sino
se foi baloiçar!...
Baloiça-te, perro! Engendra um badalo
do vil pé caprino
e dá-lhe um estalo!
e dá-lhe a matar!
Não tremas, sabujo! que o sino foi bento;
mas sabes que as bênçãos são cruzes no ar;
levou-lhas o vento.

Entrasse em teus ossos o meu reumatismo;
roesse a medula; por noites e dias
chumbasse-te o corpo num duro colchão;
então saberias,
ó filho do abismo,
verias então
se assim te mexias!

O caso é que tu
comigo caçoas e ris dos doutores,
pois nunca tens dores,
e nem te constipas! e, mais, andas nu!

Parece impossível! Dá volta á cabeça!
Eu cá, homem sério, que gema e padeça;
que em vindo Janeiro
me rape um catarro!... E haver um brejeiro
que passa o Inverno
sem chuvas nem lamas!
quentinho nas chamas
do provido inferno!
rival do Eterno!
eterno ele mesmo! Sagaz Providencia,
e és da justiça, do amor és a essência!

Bem sei que o tal sino foi feito, fundido
na terra dos círios, da Carta, do hino,
daqueles quarenta
de pêlo na venta
que ao reino oprimido
quebraram algemas dum jugo ferino;
e a Carta era um mito, são presas do olvido
os nomes e as glorias de heróis legendários
se os sinos dormirem nos seus campanários
qual dorme a memoria
dos feitos ilustres nas sombras da Historia.
Ó Couto Monteiro, se a Carta está morta,
o que é que lhe importa,
que importa aos guerreiros em pó transformados,
que toque ou não toque
nas torres da Graça, da Sé, de S. Roque,
o sino importuno mazurcas e fados?!
Nem isso os aquece, nem há desaforo
qual este que os templos agora profana
passando dos palcos aos órgãos do coro,
aos sinos de igrejas, a cúpula mundana.

Nem tu me perguntes: «Quem é que armaríeis
com mais alegria
que o meigo inocente, do sono letal
que á treva o prendia,
nos braços do Cristo ressurge imortal?
Qual voz, como aquela, dos vivos implora
por alma dos mortos a prece final?»
Por isso!... por isso, meu Couto Monteiro!
O vil não repica, nem geme, nem chora,
senão por aqueles que têm dinheiro!

Que nasça, que viva, que durma na vala
quem é pobrezinho, sem festas nem dobres!
O sino só tange conforme a tabela,
só diz: Baptizou-se, dos mortos só fala
se o manda o soberano
do reino dos cobres,
a libra amarela!
No céu, felizmente, vigora outra escala
na qual os primeiros são eles os pobres,
e poucos ricaços, que vão por engano.

Se és, qual eu julgo, cristão verdadeiro.
Meu Couto Monteiro,
é justo que ponhas no prego o sineiro
que á pátria com fome
propines uns nacos
de sino em patacos:
verás como os come.

PREFACIO DE UM LIVRO INEDITO 1566_42

Mamãzinha impertinente,
não te ponhas com tolices.
Fazes como se não visses
se vires a filha inocente
lendo as minhas criancices.

Deixa vãs proibições
se este meu livro não queres
escondido entre colchões,
que é onde escondem mulheres
livros, cartas, e... orações.

Depois, o livro que ensina?
Muita coisa boa e má
que há de fazer a menina
porque tu, que és menos fina,
as fizeste ao seu papá.

E sendo condão fatal
que a filhinha, que tu crias
com pretensões a Vestal,
siga o exemplo das tias
pela influencia carnal;

Ao ver servir de palito
neste meu livro erudito
tanta gente, há de hesitar;
e á cova irá de palmito...
se a morte cedo a levar.

Deixa-te pois de tolices,
mamãzinha impertinente.
Fazes como se não visses
se vires a filha inocente
lendo as minhas criancices.

MAL POR MAL...

Eu trago em minha alma aflita
revolto mar de agonias.
Tédio da vida os meus dias,
as minhas noites, agita.

Ó minhas crenças de outrora,
doces amigas da infância,
a que longínqua distancia
do meu peito andais agora!

Nesta serração escura
assim me deixais sozinho!
e sem que volteis ao ninho
baixarei á sepultura!

De mim te acerca bem perto,
ó morte! No estreito abraço
voa comigo no espaço,
leva-me deste deserto!

Mas se na mansão infinda,
onde liberar-me tencionas,
nos dão as mesmas taponas
com que a sorte aqui nos brinda;

Se esguio velhote avaro
nessas alturas se encontra,
com seu barrete de lontra,
olhar e sorriso ignaro;

De falas mansas, beato
para ver se os santos pobres,
saudosos dos magros cobres,
lhe vão empenhar o fato;

Se o operário, se o povo
crê também que o mundo em ruína
há de sair da oficina
corrigido e mundo novo.

E em lutas, que são eternas
por lhe ser eterna a peia,
quebrar pretende a cadeia
e quebra a si próprio as pernas;

Se nesse lugar bendito
pisamos a mesma lama
que sobre a terra se chama
O Asmodeu, O Mosquito;

Se é Mercurio almiscarado
o filho de Compostela;
se por ventura um Alviela
tem lá de ser encanado;

Se o Milhão é quem impera;
se se fez Deus o egoísmo;
se há dores de reumatismo,
e nas vinhas filoxera:

Fecha, ó anjo, as negras asas!
que em tal apuro, olha o rente!
tanto faz morrer a gente
como mudar-se de casas!

A UMA CREATURA

Que tens tu a dizer do teu destino?
Que mal... que mal te fez, ingrata, a sorte?
Desunhas-te a comer queijo londrino;
na polca és a mais forte;
essa fulva cabeça de leoa
não passa de avelã; por isso és gozo
do bravo rapazio de Lisboa.
Preludias na banza um rigoroso
que os mortos ergue, as campas despovoa.
Desmamadinho já, em salto airoso,
balando, os longos ecos atordoa
o teu futuro esposo.
Calçando o largo pé na estreita bota
encaixaste o Rocio na Betesga.
Capaz és tu de entrar, sendo janota,
no céu... por uma nesga.

Trazes um dogue ao colo... Tens na tia
chaperon e banqueiro. Anda estafada
a velha e mais a burra. A ortografia
contigo, ao ver as duas, não quer nada.
Quem de molho as barbas não poria
vendo a barba vizinha incendiada?!
Dás á língua durante o santo dia,
e bates na criada!

A coisa mais feliz de quanto existe
és tu portanto. E dás então cavaco,
maldizes, blasfemando, o mundo triste!
e chamas-lhe velhaco!

O mundo?! O mundo o que é? Por mim suponho
ser apenas irónica pilhéria
que Jeová soltou quando, risonho,
pretendeu descansar de empresa séria.
Há nele o encanto espiritual do sonho.
Há nele o encanto vil da vil matéria.
Faz rir e faz chorar, o Triboulet medonho!
a divinal miséria!

A graça toda está nestas nuances;
nas sombras e na luz com que prepara
da dor e do prazer os vários lances
o velho Dulcamára;

Nunca viste Neptuno carrancudo
pendurar-se nas asas da procella,
roçar as cãs no céu e em silvo agudo
dar por mortalha ao barco a solta vela?
Agora não o vês sereno e mudo
como a brincar na praia se enovela?
Pois semelhante ao mar no mundo é tudo.
Resigna-te, donzela.

E tudo há de acabar, o mar e o mundo.
Até do meu amor a intensidade
sumir-se irá no pelago profundo
da fria eternidade!

Eu escrevi amor?! Fiz mal. É grego;
é grego para ti: pior, sânscrito;
e tu nas línguas mortas não dás rego.
Se um dia, por acaso, o pequenito
traquinas e cruel, alado e cego,
tentasse dar-te um golpe... era bonito!
Fugiria a gritar: Armas que emprego
não entram no granito!

Tu partilha não tens na doce herança
dos anjos que voaram! Antro escuro
a tua alma será! Nenhuma esperança!
nenhum extasie puro!

Como quando ao romper da roxa aurora
deslizando na valsa doidejante
soltas da trança a rosa que descora,
de si te apartará num só instante
o louco turbilhão que te enamora.
Pálido o rosto, o seio palpitante,
ao céu perguntarás na dor dessa hora
se a morte vem distante!

O vácuo! a saciedade! o horror das trevas!
Ninguém ao pé da cruz no teu calvário!
Por só cortejo ao cemitério levas
um padre mercenário!

Nem esse volta lá. Rezou, e a prece,
em mau latim, por bons tostões foi paga.
O fardo que largou mais não merece.
Recebe por adeus grosseira praga
dum coveiro que o some, e breve esquece.
Grão de areia que foste ao mar com a vaga,
quem te busca depois? Quem te conhece?
Teu fim quem é que indaga?

Se é tempo, ó transviada, atrás teus passos!
Abre o teu coração. A fé te anime.
Não há na vida mais estreitos laços.
Amor tudo redime.

Vê-lo hás dissipar a névoa densa
que o teu dia transforma em noite escura.
Respeitada serás. Trarás, suspensa
de teus vermelhos lábios, a ventura;
que eu não sei de ninguém a quem não vença
puro amor abraçado á formosura.
Serás mulher, é essa a recompensa,
em vez de criatura.

Se mover-te consegue esta palestra
manda morrer o cão no Instituto;
compra cartilha e pedra, e prova á mestra
que vales mais que o bruto.

Depois reforma a tia. Irá na Graça
ascender ao Senhor trezentos lumes
por tirar-lhe do lombo essa carraça.
Vê-se livre da espada de dois gumes
que a burra lhe sangrava, e na carcaça
vasto caminho abria a vãos queixumes.
Menina, já que estás com a mão na massa,
reforma os teus costumes.

E como incerto é sempre o bem futuro
e pode arrepender-se o arrependido,
vai lá pondo, á cautela, no seguro
o nome do marido.

ALÉM DA CAMPA 050313%20108

(Imitação do espanhol)

Num povo, perto de Sintra,
foi o reverendo prior
em fria cova depor
o cadáver dum pelintra
mesmo ao pé dum seu credor.

Apenas se viram juntos
por toda a vida sem fim
romperam num tal chinfrim
que, dizem velhos defuntos,
ser virgem um caso assim.

«Você pague! ai que vai torta!»
gritava o credor. Com quê?
gemia o outro. Não vê
que entrei nu aquela porta
porque nu me pôs você?!

E neste rosnar eterno,
neste diz tu direi eu,
o credor, que era judeu,
enreda o outro num inferno
como o inferno em que viveu.

Se em meu derradeiro instante
eu tiver credor voraz,
permite, ó Deus, se te apraz,
que por cá fique o tratante
para que eu, morto, viva em paz.

A JULIO CESAR MACHADO

Ó Júlio, ó meu amigo, o que disseste?
Falar em nós?! Falar em mim?! Na peste
desse Parnaso ignóbil de há trinta anos?
Fui um asno sem tom, nem som, nem furo;
uma coisa para ai entre os humanos
como entre o trigo o joio; um insensato
cuidando toda a vida que o futuro
se faz somente como o faz o gato
por noites janeirinhas, e o menino
donde há de vir ridente, e róseo, e puro,
é da raiz... do verso alexandrino!
Tu verás, se viveres. O destino
se condoa de ti a tempo e a horas,
que eu já não temo nada. Nesta idade
quanto mais o doutor me põe escoras
mais depressa galopo á Eternidade.
No dia em que florir a ideia nova
nem restos há de mim na escura cova.
Depois...
Pensando bem, ás vezes julgo
que não deve ser mau ver estes numes
na faina redentora! E, mais, o vulgo
já não crê noutro Deus! Os bons costumes
vão apanhar por fim um São Martinho
qual nunca lhes foi dado... excepto em vinho
que embrutece a razão! Pois com certeza
leva uma razia o Torres e o Cartaxo!
Ou bem que a gente é gente ou que é um cacho!
Do amor, que é velho, temos conversado!
Rua com ele! Amor é uma fraqueza.
É velho e cego, e não espera luas,
e quando lhe apetece faz das suas,
e são as suas dele o vil pecado!
Basta cortar-lhe bem a ponta da asa
e triunfa a moral. Rapaziada,
nunca mais andarás no mundo em brasa
atrás da tua amada!

Mudei de metro como de alimária
muda Tinoco, o bravo, na tourada,
pois quanto em verso a forma for mais vária
menor é a maçada.

Calcule-se o porvir pelo presente.
Nós somos democratas;
e fique o ponto assente.
Noventa e três é tudo quanto, em datas,
a Historia nos tem dado
mais nobre, e santo, e digno de imitado.

Amor... e guilhotina!
Luz duma aurora, dum incêndio chama!
Maionese de sangue e de doutrina!
Quanto o homem sublima e quanto o infama!
Noventa e três e a França!
Eis o lema, eis o exemplo, a viva esperança.

Anda tu cá, ó lema, que te quero!
Dom Bertoldinho a dar-se um ar de Nero!
Somos, sim, democratas... á capucha;
Marats de seda frouxa; uma chalaça
com Marselhesa indígena, a Cachucha.
Palavra! que tem graça!

Que o bom senso, tão raro! nos acuda;
nos tome um dia a sério!
Não há Sebastião nenhum da Arruda,
suando palansterio,
que não mande estampar nos seus bilhetes
armas ducais, brasões de pataratas!
Morremos por trincar a monarquia;
mas trincamos-lhe a ceia e os sorvetes
enquanto lá do céu Deus não envia
novo maná... de instituições baratas!...
Uns tipos! Bons, pacatos, sem ter ódios
nem bombas... a não ser de Santo António,
bombas de luxo, bombas só de estrondo;
indo buscar pretextos para brodios
a casa do demónio,
e quando os não achamos
nem dentro em nossa casa nem na estranha,
calçado a polimento o pé redondo,
vazio o coração, repleta a entranha,
ver desfilar a procissão de Ramos.
E neste ambiente, em pleno Rilhafoles,
no ardor da Saturnal, sonhaste, ó Júlio,
que um velho gordo, com as carnes moles,
sem ter outro pecúlio
além do reumatismo, sertanejo,
viria em petit-maitre dar aos foles
do outrora enamorado realejo?

Desde que o maganão do deus Cupido
não tem na aljava seta que me fira,
passou-me do sentido
tudo quanto em rapaz tanto sentira.
Rabisaltona musa é hoje em dia
quem me ampara e conforta, e quem me inspira.
Quando fugir, morri. Outra alegria
qual te foi dada a ti, sol na velhice,
conceder-mo não quis quem bem podia.
E fez uma tolice.
Eu sei se a fez, ou não; modéstia á parte.

E só para dizer-te uma palavra
de afecto e gratidão moí desta arte
a tua paciência! Antes do Lavra
subisses a calçada,
ou lesses uma peça premiada.
Era muito, bem sei; mas era menos.

Obrigado, meu Júlio. Isto, em resumo,
devera ter escrito. O mais é fumo.
Deixa-o seguir no espaço o ignoto rumo,
e dá saudades minhas aos pequenos.

DIES IRAE

É Novembro, e faz um frio!
Eu então é que ando em brasa!
Pudera! se o senhorio
me pede a renda da casa!

Reles cobre em vão recruto
no lidar da vida insano.
Desertam num só minuto
as vis poupanças dum ano.

Embora á carne dê tratos,
á velha carne exigente,
deixando passar os pratos
sem pôr nos pitéus o dente;

Embora esguia quinzena
traga já no extremo fio,
e corte a rara melena
só pelas calmas, no estio:

Não coalha esta formiga
nem grão, nem sequer paveia!
Sempre na mesma fadiga,
enche... vasa... o pé da meia!

Sob o teimoso aguaceiro
de tanta renda de casas,
depenado, em meu poleiro,
meto a cabeça nas asas.

Cansa o sorrir da ventura;
o rigor da sorte cansa;
só por entre o que não dura
vai sempre durando a esperança.

Eu espero a moradia,
onde de graça me acoite,
no seio da terra fria;
nas sombras da infinda noite!

Ao menos no eterno gelo,
nos fundos antros escuros,
não terei por pesadelo
meus senhorios futuros!

Um é Deus: a esse um amigo
satisfaça em padre nossos.
Outro é o verme: eu cá o espigo
dando-lhe em paga os meus ossos.

O MEU TINTEIRO 19529079gjOAKWTfdZ_ph

Era em Agosto. O norte, desabrido,
mugindo como um toiro, sacudia
os troncos do arvoredo. Ia-se o dia:
um dia de amarguras tão comprido
que eu cheguei a pensar que a Eternidade
nas chamas infernais já me envolvia!
Por meu mal terminou! que um outro veio
depois daquele, e foi pior mil vezes!
A minha irmã, á doce companheira
da longínqua, saudosa mocidade,
coubera, nova ainda, a feliz sorte
de ter, após três longos, tristes meses
dum filho haver perdido, achado a morte.

Antes dela expirar, á cabeceira,
em torno do seu leito, se agrupara
tudo quanto durante a vida inteira
fora por ela amado, e tanto a amara.
Eu, fingindo sorrir, assim dizia:

«Agora estás melhor. No rosto as rosas
da antiga primavera! Olhos em fogo!
Uns olhos como dantes! Vês, Maria,
que estás melhor agora?! Em desafogo
respira o peito já! Estas nervosas
dão vontade de rir! Que espalhafato!
Um cortejo de coisas! Raça estranha!
Por isso o outro fez com que a montanha
desse, aturdindo a terra, á luz um rato!
Vai a galope a enferma que melhora.
Amanhã, ou depois, saltarás fora
dessa importuna cama. O que te cansa
é ter o corpo ai. Vamos a Piza
passar o Inverno todo. Ali serenos
são sempre os céus. Ali tépida a brisa
dá vida a um velho! Então a uma criança!

«Tontinha é o que tu és! que estás chorando!
sem que saibas porquê, aposto, ao menos!
Iremos todos, grandes e pequenos!
Quase uma romaria, um círio, um bando
de alegres passarinhos chilreando
por essa Europa além! Tu, pregoando:
Quem quer saúde? Quem? Vende-se e dá-se!
irás distribuindo, com a mão cheia
dessas papoilas, um bouquet vermelho
que pouco e pouco a desbotada face
há de tingir-te e... até fazer-te feia!»

Iremos todos, sim! fraca, tossindo,
a pobre interrompeu: Sim!... Vamos indo.
É então amanhã que eu daqui saio?
Depressa amanhã vem! Dá-me esse espelho.
Se tu não mentes devo estar um Maio!
Mirando-se, volveu: A minha pena
é que... elas... me não vejam neste instante
em que finda a comedia e deixo a cena!
Se eu não soubesse que este mundo é um sonho;
se trouxesse o meu Deus de mim distante;
como este despertar fora medonho!

Depois foi repartindo as suas prendas
por quantos eram lá.

A ti... primeiro.
Lego-te... dou-te... aquele meu tinteiro.
Tu fazes versos. Sei que não te emendas;
sempre te serve aquilo!

Desde essa hora,
e já lá vão cumpridos bons trinta anos,
quando me engano a mim nesses enganos
da musa brincalhona, raro molho
a pena folgazã que me não traga
nos bicos uma lágrima.

Ai!... Eu olho...
aos abismos do mar pergunto: «A vaga,
que eu vi sumir-se, onde é?»

E o mar afaga
a praia em que a deixei, e vai se embora,
e volta, e vai! mas não responde; chora.

A VENUS NOVA

Não, Raquel, não desvario.
Vénus, o estilo é antigo,
os seus dotes repartiu
bem largamente contigo.

Deu-te esse corpo divino!
esses seios palpitantes!
Fosse eu ainda pequenino
e tu minha ama! Que instantes!

Por ser branca e por ser loira
tem o loiro em menos preço;
por isso te deu da moira
o negro cabelo espesso.

Chega aos olhos... De repente
vê que não tem na palheta
cor nenhuma refulgente
para imitar um planeta.

Corre logo á fonte limpa;
e procedeu com acerto
que em ócios não se repimpa
quem se encontra em duro aperto.

«Ó doce noite», ela exclama.
«Tu tens estrelas a esmo.
Duas quero em rubra chama,
quase sois; dois sois. É o mesmo.»

A Noite, que é velha fina,
e foi sempre a Vénus dada,
responde: Minha menina,
só para a outra fornada.

«Pois ao forno! e já! que eu pago!»
A Noite, ouvindo-a, lampeira.
A estrada de São Tiago
deitou logo na caldeira.

Fogo ao lado, e fogo ao centro!
Quando a fervura era viva
o sete estrelo para dentro!
e folhas de sensitiva!

Ao cabo de poucas horas
em duas orbitas fundas
despejou duas auroras
com que esta alma em luz inundas.

Vénus pulou de contente;
mas depois... (que são mulheres!)
disse á outra em tom plangente:
«Adeus!... O que tu quiseres!...

«Fizeste-a fresca! Eu reinava.
Era no Olimpo a mais bela.
Passei de rainha a escrava.
A Vénus agora... é ela!»

O LOBO E O CÃO

Tradução da fabula de Lafontaine - Le Loup et le Chien

Não tinha um lobo mais que a pele e o osso.
Sinal é que de orelha arrebitada
bem vigilante andava a canzoada.
Encontra o lobo um dogue forte, grosso,
nutrido, luzidio, uma beleza!
que distraído abandonara a estrada.
Sorri-lhe a nédia preza!
Saltar-lhe logo ali, fazê-la em postas
o seu desejo fora. Dura empresa!
A luta era infalível. Voltar costas
não usam perros quando são valentes,
e, mais, os brutos! dão ás vezes cabo
do fero contendor! Diabo!... Diabo!
Então aquele, com aqueles dentes!

*

Humilde o lobo, pois, encolhe a cauda;
chega-se ao cão; abaixa-lhe a cabeça;
puxa conversa; diz que folga em vê-lo,
que deixe que ele admire, que ele aplauda
topa-lo assim... e com tão bom cabelo!...
e rijo! e gordo! Um frade! Uma abadessa!

«Esplêndido senhor», o cão responde;
«de vós depende o ter igual gordura.
Fugi dos bosques, onde
por teima da desgraça
de fome e frio só achais fartura,
vós, senhor lobo, e a vossa pífia raça.
Dias e dias sem comerem nada!
e lá por festas, raras, esquecidas,
um petisquinho conquistado á espada,
tragado ás escondidas!
Ai é certa a morte!
Furtai-vos a seus braços!
Segui... segui meus passos;
tereis outro destino e melhor sorte.»
Mas como? volve o lobo.
Fazer então que devo?
«Bagatela:
nem morte do homem nem de igreja roubo;
simplesmente estas coisas: não dar trégua
á santa gente rota, mendicante,
bordão numa das mãos, noutra a tigela,
que vem ainda a distancia duma légua
e já tresanda a essência de tratante.
Lamber as mãos ao dono; ser submisso...
dar coça, é o termo próprio, ao dono e a todo
quanto bicho careta houver em casa.
Salário apanhareis que vos apraza:
ossos das aves, rodas de chouriço,
restos vindos da mesa, e tudo a rodo!
Até uns tagatés em cima disso!»

*

Tendo prestado ao cão atento ouvido
o lobo, coitadinho!
com perspectiva tal enternecido
não tugiu nem mugiu, mas fez beicinho.

*

Iam caminho já do povoado
quando o lobo notou que no pescoço
o cão era pelado.
Que tens ai? pergunta em alvoroço.
«Nada, que eu saiba.»
Nada?!
«Frioleira.»
Mas afinal o que é?
«Ora!... A coleira
com que á noite me prendem junto á porta...»
Prender-te?! o lobo exclama. Não sais fora,
não corres livre pela terra inteira
quando te dá na gana, e a toda a hora?
«Nem sempre. Isso que importa?!»
Tanto importa que toda a trincadeira
com que me acenas, um tesouro embora,
por tal preço não quero.
O lobo finda;
põe-se logo na perna, e corre ainda.

DEUS E O AMOR 69005331YRjLRi_ph

No céu, cabisbaixo, o Amor
um destes dias entrava.
O pobrezito levava
impressa no rosto a dor
e as setas todas na aljava.

Ao vê-lo o Eterno exclama:
«Que vens tu fazer aqui?!»
De Lisboa, meu Deus, fugi
porque lá vivo da fama;
os meus fregueses perdi.

Busca a moça um noivo rico
sem lhe importar nada mais.
São fumo as paixões e os ais;
pintos, nina. Apanha o mico!
lhe bradam os próprios pais.

Por isso, feito o consorcio,
sai da igreja o par fiel,
e o noivo compra papel
para requerer o divorcio,
passada a lua de mel.

Torto já, e á vara larga,
o fino dandy seduz.
O mais que faz o lapas
quando em finezas se alarga
é roncar: Que tal te eu pus!

Do pátrio amor todo o fogo
traduz-se no venha a mim.
Quem faz dum jornal pasquim,
sem trunfos entra no jogo
e sai-se trunfo por fim.

Bellini foi-se!... não presta.
Da harmonia a nata, a flor,
veio encontrar sucessor
no Fado, que é o rei da festa,
o canto que faz furor!

A virgem mártir Cecilia,
ao ouvir blasfémia tal,
ataca o si natural,
e, pedindo um chá de tília,
cai em delinquiu mortal.

Sem reparar no que passa
soluça o Amor e diz:
Murcha pende a flor de lis.
Jaz prostrada na desgraça
a pátria de São Luís!

O Krupp a morte semeia
de Sarbruck até Sedan,
e Paris, a cortesã,
nas garras da fome anseia!
Que serás, França, amanhã?!

Pois nestes dias sombrios
a velha Europa sagaz,
cuidando ter um antraz,
fez ataduras e fios
em vez de fazer a paz!

Lisboa, toda vergonhas,
e orgulhosa, e esmoler,
atrás ficar-lhe não quer
e desata a fazer monhas;
mas fios, nem um, sequer!

Acima da humanidade
há nesse bom Portugal
o novilho e o boi real.
A doce fraternidade
anda nos paus do animal.

De meu seio a pura chama
deixa, ó Deus, arder aqui.
De Lisboa a correr fugi
porque lá já ninguém ama
nem mesmo, Senhor, a ti!

Nem mesmo! que sem respeito
tonsurado ferrador
troveja em voz de Mentor,
batendo murros no peito,
que o teu braço é vingador;

Que ao reino teu infinito,
á mansão da eterna luz,
tua mão, Senhor, não conduz
quem fez o enorme delito
de ignorar que houve Jesus;

Que tu, meu Deus, que és o forte
que destruiu Jericó,
que és a Justiça... tu só,
habitas naquela corte;
encarnas no imundo pó!

E para acabar o quadro,
para lhe dar mais unção,
afoga o ímpio sermão
junto á cruz que está no adro
em ondas de carrascão!

No templo teu, Pai divino,
aparato teatral!
Em redoma de cristal
vestido Jesus Menino
de chéché do Carnaval;

E o alvo lírio, Maria,
a pura depois de mãe,
caracóis e rolos tem
como usava a minha tia
quando ia ao Paço em Belém!

No altar-mor o cenário
que efeito fazendo está!
Pálida a lua... acolá!...
Além a cruz... o Calvário...
Fora, autor! Bravo, Rambois!

Na nave central cavaco;
e no coro, ai! pobre fé!
latagões cor de café
uivando dentro dum saco:
Sou o Barba Azul! Olé!

A católica Judia,
o cristianismo pagão,
ousa mais! Põe em acção
do Homem Deus a epopeia
na sensual procissão!

Ás enfeitadas janelas
corre a curiosa avidez.
Fazem cauda. Esperam vez
como se eles e elas
fossem ver um entremez!

Depois começa o serviço.
Olho aqui... e olho lá...
no seu tudo, e no papá
que embirra com o tal derriço
por andar no b-a-ba.

Namorando as carnes nuas
do que vai no floriu andor,
outras dizem: «Salvador,
se todas são como as tuas
quem não será pecador?!»

Enquanto se eleva o incenso
na caprichosa espiral,
o garoto, essa vestal
dos vates de hoje, no lenço
faz mão baixa e no metal.

E, manso, por entre o grupo
da ondulante multidão,
serpenteia a procissão.
Rumoreja em torno o apupo.
Consternam-se alma e razão.

Que brutos cepos são esses?
Vai Deus ali? Cristo nu
posto a par do manitú,
homens dos torpes interesses,
filhos glutões de Esaú?!...

Tartufo os impetos doma.
Vive agachado o chacal
a espreitar se o olhar fatal
de Filipe á voz de Roma
lampeja no Escorial!

Fiar nelas!... O incêndio lavra
oculto. Na escuridão
forja de novo o grilhão
á consciência, á palavra,
a satânica legião.

Em teu nome o lar deserto!...
O pranto manando a flux!...
Morta a esperança! Extinta a luz!
e da cruz contra o liberto
mudada em punhal a cruz!

Largamente aqui respira
seca a língua e falto de ar,
que o terno Amor, a falar,
não é como os de Tavira:
dá-lhe... dá-lhe até estoirar!

Mas, depois, como o Vesúvio
irrompe. Ao rosto gentil
assoma a raiva, e febril
bate o pé; grita; um dilúvio
manda ao infame covil!

Outro dilúvio! incessante
a subir... subir... até
que não fique nada em pé!
nem possa nenhum farsante
fazer arca e ser Noé!

Deus, que os seus ouvidos presta
ás queixas que Amor lhe faz,
sorri e diz: «Ó rapaz,
um T escrito na testa
porventura me verás?

Eu dei-lhes a lei sublime
nas alturas do Sinai.
Se contra a lei, contra o pai,
conspira Lisboa no crime
do crime o castigo vai.

Triunfa o Milhão, e Hero
não houve mais que uma só?
O Creso do oiro em pó
a flauta fará de Nero,
e da flauta um bom cipó.

E se os maridos, tontinho,
fugindo ás esposas vão,
deixa-os lá. Por fim terão,
em vez do calor do ninho,
os gelos da solidão.

A vida passa ligeira;
e, quando a morte vier,
qual deles é que não quer
doce oração derradeira
entre beijos de mulher?!

Ai!... Acabar longe disto!...
sem perdão!... sem paz!... e meu
sem ser nenhum!... Galileu,
tu que fizeste?... Ó Cristo,
teu sangue que frutos deu?!...

Fiz de ti a rósea aurora
da universal redenção;
ainda após o teu clarão
o Deus cepo é o Deus que adora
a proteja multidão!

Pois para amar-me é preciso
mais que os olhos alongar
pelos céus, por terra, e mar?
mais que o calor indeciso
duma noite de luar?!

Pois nesses milhões de mundos,
que girar no espaço fiz,
não fala tudo? não diz
em seus cânticos jucundos:
Senhor! Senhor, existis?!

Enriça o leão a coma?
Nas sombras do Escorial
ergue a pedra sepulcral
de Filipe a astuta Roma?...
Erga!... e surja o rei fatal!...

Antro, e fera, e vil Tibério,
tudo no pó sumirei!...
que dos reis eu sou o rei,
e as chaves do meu império
a mão nenhuma entreguei!

Perdes o tempo, criança!
Se o perdes, meu doido Amor!
Sei quanto és enganador!
quanto és feroz na vingança
e folgas da alheia dor!

És vendado, és cego, e ousas
como se visses falar?!
Pois hás de á terra voltar.»
E o pai de todas as coisas
foi-lhe os olhos desvendar.

Então o doce fedelho,
tão doce como caju,
repara em si... vê-se nu...
faz-se azul... faz-se vermelho
como um monco de peru.

Depois a fugir desata
pelas etéreas regiões.
Atrás dele as maldições
de quanta velha beata
foi ao céu... por alçapões.

Que o céu que estamos mirando
ocultas entradas tem,
e sem fiscal! Ainda bem.
A não ser por contrabando
já lá não entra ninguém.

Voa... voa... É mesmo um raio
rápido o espaço a rasgar.
Voa... Á força de voar
perde o alento, e num desmaio
vem no chão com as asas dar!

Nessa noite a autoridade
meteu, zelosa qual é,
o menino em São José;
mas ninguém crê na cidade
que a ciência o ponha em pé.

Quem tem os dias contados
mais viver não pode, não.
É do amor finda a missão
dês que os fundos, bem cotados,
valem mais que o coração.

ENTEADA 1566_41

Casou segunda vez certo sujeito
que sempre á viuvez torceu a cara.
Deixara-lhe uma filha o velho leito,
e mimo igual o novo lhe ofertara.

Quando eu as conheci, uma era forte,
corada, alegre, brincalhona, viva;
pálida a outra, triste, pensativa,
como quem traz em si a dor e a morte.

Das duas a mais nova, a que é sadia,
a lápis, num papel, graciosos traços
dum corpo de mulher ontem fazia.
No fim as palmas bate, e, erguendo os braços,

«Olha a mamã!» gritou, «De longe basta...
basta vê-la dai!... Não será ela?»
Volve-lhe a outra em voz que o sangue gela:
Agora pinta lá uma madrasta!

Misérrimos poetas que nós somos!
Por mais inspiração que nos abrase,
por mais fantasiar tomos e tomos
não valem juntos, não, aquela frase.

NUM ALBUM

Por essa existência fora
nosso caminho é diferente.
Eu vou por onde se chora;
tu por onde canta a gente.
Tu chegas; tu vens agora;
tu sobes qual sobe a aurora;
eu, tal qual o sol poente,
desço... desço!... Vou-me embora.

RAFAELA

I

Era em Março, e a Folia,
dando o braço ao Carnaval,
entrava em Dona Maria.
Não sei que ideia fatal
me levou também á festa.

Sei que fui. Sei que vestia
dominó cor de giesta,
e que a mascara, que ao rosto
trago presa todo o dia,
eu trocara, ébrio de gosto,
por outra que não mentia.

II

Ia a noite em mais de meio
quando os pés na sala pus.
Os gritos, a dança, a luz
que os novos encanta, e creio
que mais os velhos seduz,
tocaram-me o coração
por tão estranha maneira,
que a não ter ali á mão
as costas duma cadeira,
dava com as minhas no chão.
Persuadiam-me que a Sorte
quer que o homem seja igual
somente perante a morte,
e vi eu que o Carnaval
tinha o mesmo poder forte!

Junto a mim o Sr. Sovela,
disfarçado em lorde inglês,
trata por tu o freguês,
que noutro tu se nivela
com quem as botas lhe fez.
Ao longe o sujo vadio
que, para impingir á gente
um bilhete do Pão quente,
corre a Baixa e o Rossio
dando Excelências a rodo,
agora vestido á turca,
turca por dentro ele todo,
grunhindo sem tom nem som
paga depois da mazurca
ponche ardente a quem tem Dom.
Naquele canto escondido
o calvo e gordo marido
ás moças fala de amor;
e como deve o traidor
pela traição ser punido,
noutro canto anda a mulher
a brincar com o deus Cupido...
dê o brinquedo o que der!
Cada flor, rosa ou jasmim,
com seu cálix entreaberto
embalsama este jardim,
e ás abelhas que andam perto
como que as oiço dizer:
Oh! Bebei doce prazer
que rendida vos oferto!

Isto é vida! Isto aqui, sim!
que a humilde e santa igualdade
o mundo mergulha enfim
no sol da eterna verdade!...

III

«Boas noites, dominó.»
Só isso me dizes?
«Só.
Pois desde já te requeiro
que amanhã fiques na cama,
e manda o teu travesseiro
dar umas voltas por cá.
Na chalaça, no epigrama,
as lampas te levará.
«Quem de espírito é tão fino
devera ser mais cortês.»
Vestiu-se de peregrino
a cortesia...
«Talvez
dessa longa romaria
a que foi não voltaria!»
Assim parece. Não vês?!

IV

Quem me descobre a razão
desta infame grosseria?...
Consultando minha tia,
disse-me ela: És um ratão!
Coisas tuas!...
«Coisas minhas?!
Ora essa!»
De quem são?
Se teu pai sem ter galinhas
te deu boa criação?!
Mais ainda me condena
ser a mulher que ofendi
segunda Vénus de Milo!
Que remorso o que eu senti,
e que nó no gorgomilo,
quando, absorto, o que era vi!...
Que ao falar olhei... Por Cristo!
juro que olhei sem ter visto.

V

Como usa a formosa filha
da formosa Andaluzia,
sob a elegante mantilha
pelos ombros lhe caía
de negro e farto cabelo
a madeixa ondeada e crespa.
Na cinturinha de vespa...
Alto lá! De vespa, não;
que é corriqueira a figura
e tola a comparação.
A cintura... Se lhe chamo
só delgada aqui del-rei!
porque é prosa. Ah! Já sei.
Delgadinha como um ramo
que sustém duas laranjas...
E da voz os sons tão finos
com que os hei de comparar?
Com voz de anjos pequeninos,
travessos, loiros, meninos
que andam no céu a cantar,
aos quais não tira o chapéu
este pobre filho de Eva
enquanto Deus o não leva
a conhece-los no céu?!...
Impossível!... Pois com quê?...

Deixe-se lá desses franjas,
ruim poeta! Você
não sabe que a natureza
faz coisas de tal beleza
que um homem, se logra vê-las,
há de pasmado ficar,
e pasmar... pasmar... pasmar;
mas não tentar descrevê-las?!

VI

Qual a tímida gazela
que no prado anda brincando
estremece e foge quando
sente rumor perto dela,
assim Dona Rafaela...
Podia chamar-lhe Jónia,
Matilde, Elisa ou Antónia.
Era o mesmo. Á mulher bela
todo o nome fica bem.
Toma-lhe a graça, a frescura:
participa da candura
de sua alma... se é que a tem.

Que a minha airosa andaluza
como a gazela fugiu,
se o não disse a casta musa
que me inspira, o leitor pio
(não ha calemburgo aqui)
certo de si para si
a crê-lo não se recusa;
mas o que o leitor ignora
é que eu próprio, eu que ainda agora
lhe dissera: Vai-te embora,
ao vê-la fugir fiquei
triste, só, desamparado
como o valido dum rei
quando cai em desagrado!...

Ai! se o pensamento é vário
mais varia o coração.
Coração Contradição
afirma-me o dicionário
que dois sinonimas são.

VII

Amar depois que trinta anos
nos pesam sobre o cachaço;
quando os frios desenganos
guias são do incerto passo
que nos vai levando á campa;
quando a idade a correr vem
e nas faces nos estampa
oitenta rugas, ou cem!
amar sem crenças; amar
sem possuir atractivos;
é padecer, é penar
dores do inferno entre os vivos.

Sabia-o; mas se fadado
fora eu já para essa dor!
e diz Garrett, o doutor
em tais matérias versado,
que ninguém foge ao seu fado!
Funesto foi sempre o meu!
Esta alma, que Deus me deu,
em quantos afectos nutre
que devorou Prometeu!.

VIII

Da rósea estancia em que mora
com seu límpido clarão,
sorrindo, ao céu vinha a aurora
soltar do prego as aselhas
donde pende a escuridão
sobre chaminés e telhas.

A festival harmonia
pouco e pouco esmorecera;
e com a luz do novo dia
doutro orquestra a afinação
mais altos cantos rompera,
pois que entre os rocios do orvalho
levantara escopro, e malho,
um hino de gratidão
ao Deus, autor do trabalho.

Este aranzel, espremido
numa frase clara e chã,
quer dizer: era manhã,
e a solfa dos caldeireiros
matava o bicho do ouvido
na rua Augusta aos parceiros.

IX

Cheguei a casa. Quem ama
também dorme o seu bocado;
nem há nada como a cama
para amor ser bem tratado.
Vede as ratices do mundo!
Sentados no mesmo trono
amor, que é vida; e o sono,
que da morte é irmão segundo!...

Em tão doloroso transe
é praxe no bom romance
surgir a pálida insónia
beliscando a cachimónia
do que ás paixões não se poupa;
mas eu, que sigo outra lei,
fui-me enroscando na roupa,
e dormi. Fiz mais: sonhei.

Sonhei, sim. O que é sonhar?
É fugir do cativeiro
desta bola sublunar.
A nossa alma, que gemia
entre os ferros, encontrar
a paz, o amor, a alegria,
vivo, real, verdadeiro,
o mundo da fantasia.
É num divinal momento
conquistar, possuir, haver
o que nunca o pensamento,
por mais audaz, ousou crer
que um dia á mão nos viria.
Sonhar é ver palpitante
a toda a luz da existência
o pai, os filhos, a amante
que a morte apartou de nós!

Ouvir-lhes a doce voz...
interromper essa ausência
eterna, a eterna saudade
que nos deixara o perdê-los!
Sonhar é esta piedade
do céu pelas nossas dores;
esta mão cheia de flores
que Deus esparge nos gelos!
Tudo mais são pesadelos.

Pois eu sonhei, e não digo
o sonho que tive então.
Não por ser segredo, não,
que á terra desça comigo;
mas quem tem, como eu, vergonha,
mesmo ao leitor seu amigo
nem sempre diz o que sonha.

X

No outro dia ao almoço,
frugal almoço invejado
ao pobre e triste empregado
a quem aos meses o Estado
permite rilhar um osso,
muitas vezes esbrugado;
no outro dia a Gertrudes,
velha magra, feia, tesa,
ainda cheia, á portuguesa,
de calvas e de virtudes,
as quentes papas de milho
veio pôr-me sobre a mesa.

A mim a quem nada escapa
logo ali me deu no goto
O vê-la andar num sarilho
a peneirar-se, e á socapa
sorrindo com ar garoto.

Gertrudes, que historia é esta?
E ela a rir.
De que ri?!...
A rir-se mais.
Temos festa!
Vai grande baralha aqui
se me não diz, como quero,
porque essa boca escancara,
e se desengonça, e rebola...
Ela, atalhando:
«Salero!
Soy, señorito, española!»

Figurem-se a minha cara!!
A visão, a Rafaela
com quem há pouco sonhara,
o belo tipo andaluz,
a flor de um dia... era ela
saída das mãos do Cruz!

XI

A moral deste meu conto
implica artigos de fé:

1.º

Quem vê mascara não vê rosto.

2.º

Beleza vista de dia
dê-se-lhe sempre o desconto
de trinta por cento em cré.

3.º

Depois do sol se haver posto
até a Virgem Maria
precisa ser vista ao pé.

4.º

Mesmo assim, ainda que perto,
não se diga nunca ao certo
que se está longe da Sé.

AS MINHAS MEMORIAS 1566_39

Á Exc.ma Snr.ª D. A. F. Pinto

Nasci. Vivi. Foi meu cruel destino
ser inútil, vulgar, enquanto moço.
De dor em dor, cansado peregrino,
chego á triste velhice sem conforto.
Nunca pude saber o que era tino,
como a bolsa não soube o que é caroço.

Quando voltares hei de ser um morto.

ESTRELA CADENTE

Ela não tinha ainda os seus vinte anos.
Eu já cinquenta, ou mais. Poucos enganos
podia haver na conta. Trouxe-a ao colo!
Não fora um pólo em frente do outro pólo;
mas, ainda assim, contando-se este caso,
dir-se-ia ao certo: Era uma vez o Ocaso,
e era uma vez a Aurora...
Não sei como
num belo dia, por ser vedado o pomo,
por ser apetitoso, finalmente
não sei porquê!... por eu ser um demente...
por ser ela o retrato da que é morta...
fosse lá porque fosse! Isso o que importa
num belo dia amei-a!... Uma doença
que a gente apanha quando menos pensa.

*

Sorriam de piedade os meus amigos
todos á uma, e os novos e os antigos.
Nas salas bichanava-se em cochichos:
«Ora, o ginja! aparando ainda os esguichos
com que o bisnaga amor! Atrás da pomba,
o pérfido lacrau!»
Deitavam tromba
os outros pretendentes. Um barulho
por nada. Então porquê?! Por um arrulho?...
Um simples suspirar?... Pois que mau era
brotar-me em pleno Inverno a primavera?...
Durava pouco?... Tanto quanto dura
em toda a terra tudo o que é ventura.
Enjeita-se por isso?...
A minha idade?!
Fui de Matusalem sócio e confrade.
Adão dizia ao ver-me: Olá, compadre!
Contemporâneo eu sou do eterno Padre.
Não há mais nada acima. Querem isto?...
O Padre, o velho, foi mais tarde o Cristo.
Ondas de amor jorrou daquele peito.
Remiu. Salvou. Pôs termo ao longo pleito
entre as trevas e a luz, e, porque vinha
em nome só do amor, anos que tinha
ninguém lho perguntou.
Sinceramente:
há rugas dentro da alma?!...

*

Impenitente
morrera nesta fé; sobre o Evangelho
jurara que mais ama o que é mais velho;
se o ponto da questão, o delicado,
outro não fora; um velho ser amado!
Aqui é que me dói!
É necessário
primeiro formular um questionário.
Menos se quer á flor, menos se trata,
por ser de argila o vaso e não de prata?
Aqui... além... embora onde estiveres...
não és, ó flor, a mesma?... e das mulheres,
não digo já de todas; mas de algumas
igualmente o boudoir tu não perfumas?...
Não busca asilo a crença, a cristandade
não presta o culto seu á Divindade
no templo secular, de negro aspecto,
húmida arcada, abobadas por tecto,
como na alegre ermida redourada,
quente aos raios do sol, sempre inundada
de júbilos e festa?!... Amor travesso,
só por ver para dentro, vê do avesso?

*

Não te iludas, ó louco! A Providencia
dependente do amor fez a existência.
Para estimulo a amor fez a beleza,
o viço, a força, quanto com certeza
tu já não tens. Por isso no concurso
aos vagos corações a pele do urso,
a pena luzidia do bom pato,
dão por si preferência ao candidato.
Esta a verdade crua. O sentimento
depois é que se faz. É-lhe fermento,
é mister que primeiro insufle a artéria,
e nela o sangue injecte, a vil matéria.
A boca, um pé, a guia de um bigode
mais que as almas em fogo sempre pode.
E tu não valsas!... tu não tens boca
o argot da moda, a frase insossa e oca!
Por mais cere, torcido, repintado,
que o teu bigode vá... bigodeado
és tu que ficas, velho! a torto e a esmo!

Justo e fatal!... Fatal e justo é o mesmo.

No chão não rojes teus cabelos brancos
num desespero ignóbil! Para arrancos,
para entrares no inferno como o Dante,
a dor da tua cólica é bastante.
Outras não queiras, outras não procures
impróprias já de ti. Não; em nenhures
rejuvenesce o Fausto; e, dês que ha mundo,
quem disse um velho disse um moribundo.

*

Ela não tinha ainda os seus vinte anos.
Por não tê-los vivia nuns enganos
que eu não devia ter nos meus cinquenta.
Distraída comigo olhou atenta
para um moço qualquer. Nem eu me lembro
do nome dele já! Era em Setembro.
Isso sei eu. Que noite!... Estou a vê-la!
Ultima noite azul!... Rasto de estrela,
curva de luz nos amplos céus cadente,
iluminar-nos veio de repente.
Ela assustou-se, e disse: Dieu te garde!

Pouco tempo depois, horas mais tarde,
tal qual a estrela, em rápido trajecto,
no mundo novo entrou dum novo afecto.

AO ACTOR JOÃO ANASTACIO ROSA

que, na sua oficina de sapateiro, mandara fazer para uso do autor
umas botas impermeáveis

Boas botas com efeito!
Há que tempos que te eu digo
que, de pequeno, o teu jeito
é ser sapateiro, amigo!

Afora o bico da moda,
que é moda o bico hoje em dia,
quem da terra andasse á roda
mestre assim não toparia.

E lá no mar, tens ratices!
com elas por sobre as ondas
anda a gente como Ulisses
nas aguas das Trabisondas.

O povo grita: Milagre!;
teus filhos: Estamos salvos!;
e tu com graxa e vinagre
vais enganando os papalvos.

Queima a Ciência as pestanas
buscando o que seja aquilo;
e nem passadas semanas
conclui que é sebo de grilo!

Tu próprio chuchas no dedo,
aves rara, ó raio de ave;
pois ao fechar teu segredo
perdeste-lhe o tino e a chave.

Seja qual for teu sistema,
graxa só ou graxa e sebo,
eu, indígena na gema,
aplaudo o que não percebo.

De tão prodigioso invento
só entendo, e não é pouco,
que ou me saíste um portento
ou és rematado louco!

Mas que importa qual diploma
um lugar nos dá na Historia?
Toda a estrada leva a Roma.
Por atalhos vai se á gloria.

É certo que ao fim da vida
a luz do provir é tua:
luz acesa sem torcida!...
porta aberta com gazua!

Vê quanto o século é fecundo!
Vê; regista em tuas notas.
Em poucos anos ao mundo
botou dois homens das botas!

ÁS RÃS PEDINDO REI

Tradução da fabula de Lafontaine - Les Grenouilles

Viviam certas rãs num charco imundo
em republica plena. Era um pagode!
Tal qual uns democratas que há no mundo
julgando que a republica, no fundo,
outra coisa não é senão a gente
fazer o que bem quer e quanto pode,
a rã tripudiava impunemente.
Todos os dias era certo o choque
entre o batráquio forte, intransigente,
e parte da nação já descontente
que a Júpiter pedia ou rei ou roque.

O deus fez-lhe a vontade.
Largou-lhe lá do céu um rei pacato,
de suma gravidade.

Das alturas tombando, o rei na queda
fez tal espalhafato,
que as fêmeas em pavor, os machos fulos,
aquelas saltitando, estes aos pulos,
como é uso das rãs nas grandes crises,
cada qual a gritar: arreda! arreda!
entre os juncais, no lodo, nas raízes
dos salgueirais se enreda.

*

Por longo tempo em seus esconderijos
das rãs esteve homiziado o povo.
Transformaram-se em medo os regozijos
da antiga bacanal. Gigante novo
cuidavam ser o rei que o céu lhes dera.
Não ousavam sequer sair da toca;
pois, não raro, os instintos maus da fera
por imprudente a presa é que os provoca.

Já nessas eras muito a pêlo vinha
dizer: Cautela e caldos de galinha...

O rei era um pedaço de madeira.
Nem mais, nem menos.
Numa bela tarde
uma das rãs, por ser menos covarde
ou mais bisbilhoteira,
tirou-se de cuidados, manso e manso
na flor das aguas surge, e ás guinadinhas
com muito tento e jeito
do cepo se aproxima.
Após ela vem outra... e outra... aos centos.
Vendo que o rei não sai do seu ripanço,
rodeiam-no; coaxam: Salta acima!...
e coaxado e feito!...

O rei, temido outrora, ás picuinhas
dessa chusma vilã se vê sujeito.
Em rápido momento
sobre ele a malta audaz se encarrapita,
e faz do bom monarca um bom assento.
Nem chus nem bus! Calado que nem porta,
qual fora noutros tempos!...
Isto irrita.
Rompem as rãs então numa algazarra
que o pântano atordoa,
os fios da alma a quem as ouve corta.
«Leva daqui, ó Jovem, esta almanjarra
que nem mexe, nem pune, nem perdoa,
e mais parece uma alimária morta,
cabide duma coroa,
em vez de nosso rei nossa vergonha!»
Vai Júpiter que faz? Uma cegonha,
das muitas que possui, logo destaca,
e manda que das rãs ponha e disponha,
numa das mãos o queijo e noutra a faca.
Ora a cegonha, apenas em seu trono
dona das rãs se vê e sem ter dono,
diz consigo:
Nasci dentro dum fole!
Quem tira agora o papo da miséria
sempre sou eu!...
Passeia toda séria,
perna aqui... perna além, num andar mole,
e quanta rã apanha quanta engole.

*

Geral consternação o charco enluta.
Renovam-se as lamurias:
que o rei é doido e tem ás vezes fúrias;
que, doido ou não, o povo trata á bruta;
por fim, que faça o deus formal promessa
doutro rei que as não coma tão depressa!
O Júpiter sonantes
desta arte lhes responde:
«Inútil prece!
Dei-vos um rei tranquilo, inofensivo,
que nem sempre se tem nem se merece:
um rei que era um regalo!
Foi vê-lo e pô-lo pela barra fora!
Dei-vos segundo: um génio um pouco vivo...
um pouco extravagante...
Meninas, aguenta-lo!
Era bom o primeiro e foi-se embora.
É mau este de agora.
Contentai-vos com ele, ó meus endeuses,
pois venha quem vier... pior mil vezes.»

ONZE DE NOVEMBRO 36760016

É noite de São Martinho,
rival do velho Noé.
Cai agua em lugar de vinho,
e milagre! o meu vizinho
entra em casa por seu pé!...

Memorias do alegre santo,
porque é que tanto durais
se eu já nem bailo nem canto
dês que me deram quebranto
as peças originais?!

Até as caras meninas,
sócias minhas na função,
rosas, dantes, purpurinas,
por muito favor cravinas...
de Ambrósio cravinas são.

Martinho, ao que chega a gente!
Elas feitas uns pasteis
de carne velha e doente;
eu comprando cada dente
por três e quatro mil reis!

Bem me toucaram tais flores!
Bem com elas me touquei!
Da cabeça agora as dores
quem mas faz são os tenores,
as portarias, e a lei!

A lei!... a eterna cantiga!
o eterno sarapatel!
Na nossa idade, e na antiga,
lá para uns certos espiga;
lá para uns outros papel.

Só uma corta direito:
só a lei da morte é igual.
Para calcular-lhe o efeito
vou, deitado no meu leito,
dormir um sono real.

ASSIM É QUE EU GÓSTO DELA!

Eu nunca fui poeta. Era loucura
mostrar depois de velho pretensões
quando as não tive em horas de ventura,
de tão doces, mas breves, ilusões.

Então era a minha alma que gemia
no vago anseio donde nasce o amor;
mas hoje sei que amor no mesmo dia
nasce, esmorece, e morre como a flor.

Da meiga brisa o tépido bafejo,
a rosa perfumada, o pôr do sol,
as nuvens de oiro, esplêndido cortejo
do astro-rei, a voz do rouxinol;

Esse hino imenso com que a terra exprime
viva saudade pela extinta luz,
se para mim então era sublime,
ai! que já por meu mal me não seduz!

Quando contemplo agora o fim da tarde,
quando ao sumir-se no cristalino mar
o facho aceso sobre as ondas arde
e vai depois nas ondas mergulhar;

Sabeis vós o que penso em tal instante?
Vê de a que prosa vil isto chegou!
Sabeis vós o que penso?... o que lamento?...
O dia mais de vida que passou.

De vida, sim, meus senhores,
que não ha pechincha igual!
Só algum sarrafaçal
em horas de maus humores
grunhirá sombrio e rouco
que pelo seu fim anela!
Eu cá por mim acho pouco
e morro de amores por ela!

A vida saboreada
de um certo modo que eu sei.
Nem limpa botas nem rei;
trazer camisa lavada;
bem lavada a consciência;
libras velhas na algibeira;
ter um trem e por decência
um garoto na traseira.

Cadeiras... todas de braços,
fofas como pão de ló.
Nunca dar ponto sem nó
nem pôr ponto em dar abraços.
Caçadas... feitas no prato,
e sobre a caça café.
Charutos... dos de contracto
Livra-nos! antes galé.

Vejam se eu dava o cavaco
ou se quebrava o toutiço
por ser tudo quebradiço
neste mundo como um caco!
Em se quebrando... acabou-se.
Ora, adeus! Fortes lamechas!
Era bonito se fosse
ficando tudo para mechas!

Amor de marrafa branca
como o cão e a cadelinha
sempre fiel! Que gracinha!...
Ao chá por baixo da banca
dando ternas pisadelas
que as meias deixam de luto,
que fazem ver as estrelas,
e provam que o par é bruto.

Ter sempre o mesmo barbeiro
e sempre o mesmo topete!...
Á mesa do voltarete
defronte o mesmo parceiro!...
O mole ser sempre o mole!...
sempre esperto o sirigaita!...
Na mesma gaita de fole
soprar quem sopra tal gaita!...

Quem pensa assim... ai! coitado!
ou perdeu todo o juízo,
ou se tem dente do siso
pelo alveitar foi achado.
Para mim que sou amante
do que muda e do que mexe,
como havia ser secante
o tal mundo de escabeche!

Beijar nos pulsos a algema
com que Amor nos manietava;
amanhã manda-la á fava;
a beleza eis do sistema.
Ser hoje amigo do Brito,
amanhã sê-lo dos Sousas!...
Viajar hoje no Egipto;
ver amanhã novas coisas!

Isto, sim, que é prazer certo!
Quem julgar que assim não presta
diga adeus a esta festa
que o cemitério está perto!
Pois pôde haver tolerância
na China, aqui, ou em Goa
com quem defende a constância
que é a maçada em pessoa?!

Aqui D'el-rei porque mente
toda a humana geração!...
Grande pena!... pois então,
se mente, mente-lhe a gente.
Por mentira, mentirola.
Por esparrela, esparrela.
Assim vai esta charola:
assim é que eu gosto dela!

Dizem que a vida os assusta
porque em tudo encontram mossa;
que o bem a todos não toca,
que a Justiça não é justa.
Eu, por mim, quero-a mais larga,
que, se acaso um dia for
parar-lhe ás mãos, menos carga
sobre os ombros me há de pôr.

E se o bem me não tocar
também uma vez somente,
ferro comigo no quente
e, lá, desato a chorar.
Não é mau. Dou de conselho
a quem quiser divertir-se
que chore em frente do espelho
e por força acaba a rir-se.

Chorar é bom! Quem me dera
nos tempos que já lá vão
quando, moço, o coração,
ao romper a primavera
sobressaltado tremia,
e da terra toda em flor
juntava á meiga harmonia
doces lágrimas do amor!

Se á vida não acham jeito
porque todos têm chorado,
cá para mim vem barrado
quem lhe põe este defeito.
Eles que foram pequenos
e contra as lágrimas chiam,
de lágrima cristã ao menos
um copo não beberiam?

Tal resmuneia e se queixa
que as filhas não fecha a mãe;
que a mãe namora também,
e mais que torna e que deixa!
Ai! Jesus!... Que gritaria!
Se a mãe as filhas fechasse,
nenhuma as portas abria.
Ai de quem as arrombasse!

Caturras! Se há quem suponha
nas politicas regiões
que ainda pode haver Cantões
sendo tão rara a vergonha!...
O galante é que no jogo
cada qual puxa o seu trunfo
quando sem armas nem fogo
alcançar pode o triunfo!

Deploram republicanos
que lhes tosquiam as asas?
Pois vão lá para suas casas
fazer dos criados manos.
Os outros temem que os tronos
se despedacem? Demónio!
Não lhes resta ainda, monos,
os tronos de Santo António?

Tudo aqui se remedeia;
tudo tem fácil saída
se as honras dermos á vida
dum jantar ou duma ceia.
Quem tentar pô-la a direito
perde o tempo e a razão
porque luta peito a peito
com fantástica visão.

Eu nunca fui poeta. Agora vedes
que menos do que nunca aspiro a sê-lo.
Se espalmar-me tentei pelas paredes
do teu Parnaso, Apolo, vai-me ao pêlo!

Põe-me nu se conservo neste fato
algum resto de parvas pretensões,
já que o mundo como é, o mundo ingrato,
despir-me soube as doces ilusões.

Dormi. Sonhei. Do sonho hoje acordado
na prosa da verdade enfim caí;
mas como tudo tem sempre um bom lado
ganhei gordura se ilusões perdi.

EM SINTRA 68906623JDOWpr_ph

Tal qual como o sacrista,
o velho Catecismo soletrando,
primeiro se espreguiça;
cabeceia depois de quando em quando;
por fim já não atina
se há três, se um cento de inimigos de alma;
meninos e doutrina,
rosnando manda á missa;
engendra um travesseiro da batina;
deita-se e dorme enquanto dura a calma:
farto da vida fui-me estiraçando
neste alcantil, onde aves de rapina
fizeram ninho outrora.
Ao longe o sol declina;
já sobre as ondas arde.
Soltando a voz sonora
num murmúrio suave expira a tarde.

Ai! quem me dera aqui morrer agora!...
Não há sono melhor!... Sono?... Seria?...
Eu penso que não é, que sentiria
em torno do meu ser, do meu ser novo,
uma coisa qualquer que a fantasia
não ousa precisar, á qual aspiro,
para a qual vou fugindo, que me chama,
na qual hei de cair como em seu giro
alado insecto vai cair na chama.

Não é tolice, não. Quem neste mundo
diria afoito ao sábio mais profundo,
se nesse tempo o mundo sábios tinha,
que dentro da galinha estava um ovo
e dentro daquele ovo outra galinha?...
Assim sucede em tudo. Muda a forma;
as condições variam da existência;
mas, por mais que a matéria se transforma,
intacta se conserva sempre a essência.
Logo: hei de viver. Ter consciência
daquilo que então for!...

UM CORVO (que fende o espaço, grasnando)

Senil demência!
Sobre essa rocha estoira como um odre:
terás a mesma sorte
de tudo quanto é podre.
Serei eu só bastante
para fazer-te o corpo num farrapo.
Que vida hás de viver desde esse instante
mentido no meu papo?
Aonde a consciência?... o sentimento?...
Perante a Eternidade
tu duras um momento.
Serviste o pensamento
da grande Divindade;
depois!... Depois da morte
não és coisa que importe
do mundo ao movimento.

UMA ANDORINHA (chilreando em roda da penedia)

Ai! terra onde nasci!
Ai! doce pátria minha!
tão longe eu sou de ti!...

Saudosa do palmar,
aqui, pobre avezinha,
errante a voltear.

Um dia... qual não sei...
um dia, em vindo o Inverno,
de novo á pátria irei.

Então sob o dossel
daquele azul eterno,
nos plainos meus de Argel

Enfim serei feliz!
Nenhuma primavera
roubar-me ao meu pais

Jamais conseguirá!...
Uma outra pátria, espera,
também te sorrirá.

UM SAPO (no fundo do vale)

Cantigas! boas cantigas
lá por cima oiço cantar.
Do que vai cá pela terra
entendem mais as formigas,
sabem mais repteis na serra
que os passarinhos no ar.

Deixa piar a andorinha.
Bem facilmente se adivinha
a tua sorte futura.
Tu és, amigo, a doninha.
É teu sapo a sepultura.

Cantigas! Boas cantigas!
Quem trinca, trinca; trincou.
As doninhas que hei papado
por mais figas, figas, figas
que as outras me têm armado,
ninguém daqui mas levou!

O PINHAL (ao longe)

Num cântico dolente
meus hinos rumorejo.
É Deus que passa em mim; o Deus que eu vejo
em tudo o que palpita, e vive, e sente.
Ó balsâmica rosa,
quando a fragrância exalas docemente
da pétala mimosa;
lá quando do teu seio,
tépido ninho dum amor fremente,
irrompem num gorjeio
maternas alegrias,
é Deus que passa, o rosto sorridente,
cercado de harmonias.

O SINO DA PENA

Dong!...
Dong!...
Dong!...

UM VELHO QUE VAi NA ESTRADA (tirando o barrete)

Ave, Maria,
cheia de graça...

O SINO

Dong!...
Dong!...
Dong!...
Nestas auras subtis do fim do dia
descobri-vos, mortais! é Deus que passa.
Dong!...
Dong!...
Dong!...

Desde a remota idade á idade hodierna
Descrença e Fé por esse mundo fora
vão em perpetua luta caminhando.
Da Ciência os cartapacios consultando
em Deus não crê, não crê na vida eterna
quem da eterna ciência tudo ignora.
Sei dalguns que não crêem... porque é moda...
por ser qualquer ideia contrabando
em casco avariado. Finalmente,
crer, ou não crer, a certos pouco importa,
por isso que incomoda
andar com seus botões pensando a gente
no fim que há de levar depois de morta.

Eu á Ciência estranho e bom jarreta,
eu que penso em morrer, por ser um vivo
que fecha a mala e puxa da gorjeta,
encontro ás minhas magoas lenitivo
crendo que ambas as coisas não são peta.
Tudo em roda de mim é o grande efeito
duma causa maior, cuja existência
dois princípios envolve fatalmente;
amor e omnipotência:
poder que salva; amor sempre clemente.

Isto me fique ao menos! Hei mudado
de pensar e sentir bastantes vezes.
Só não pude sentir nem ter pensado
ser o mundo um curral, e nós as rezes.

PEDINDO O INDULTO

DUM ALUNO MILITAR

que em 1872 foi expulso do Liceu de Lisboa por não haver restituído a outro alumio um livro que lhe pedira emprestado

Misericórdia!... Um rapaz
sem reflexão e sem tino, que
é da milícia e ainda traz
reles buço de menino,
brincando pede e sonega
um mau livro a um mau colega.
O facto é grave! A moral
traja luto!... Esta noticia
corre por maneira tal
que até chegou á policia!

Desloca a pedra angular
do social edifício!...
Cheira a Comuna!... Pelo ar,
em busca dum outro oficio,
paira e pia a disciplina!...
Ai de nós! que é certa a ruína
se um braço potente e audaz
não suspende o cataclismo!...
Corte-se fundo o antraz!
Doa e pele o sinapses!

Assim se fez. Lá no céu
há quem nos proteja ainda.
A lei pune. O infame réu
cai prostrado, e o perigo finda.
Sabia a lei no monstro fere
Cartouche e Robert Macaire
Num golpe os reduz a pó!
Da dupla calamidade,
descascando um ovo só,
livra e salva a humanidade!

Os relaxados sandeus
dizem: Não valia a pena.
Mas é que a Lei, pigmeus,
não raciocina, condena.
E raciocinasse!... O pepino
não se torce em pequenino?
Aprender nos livros quis?
Quis ilustrar a sua farda?
Fique burro, que o pais
gosta que o sirvam de albarda.

A vergonha, a nódoa, o que é?
O que foi sempre. Esta é fina!
Um pinguinho de rapé
que se tira com benzina:
um nada... que inabilita:
a letra fatal escrita
com ferro em brasa na mão!
E neste abismo se lança
sem piedade e sem razão
uma inconsciente criança!...

Melhor livro alguém pilhou
sem ninguém lhe gritar: Larga!
Lambeu; os beiços limpou;
e pôs-se de mão na ilharga!
Não! que o melro do alto canta!
e quando ás vezes se espanta
fazem-no Deus, tal crereis?
Uno e bis trino, isto é sério,
pois sendo os ministros seis
é só ele um ministério!

O suplicante, senhor,
cartista puro, em presença
dos factos que vem de expor,
pede o indulto e a recompensa
que o pobre rapaz merece.
É fundada a sua prece
em ser a Lei coisa igual:
e, sendo, já me contento,
se não pôde ser marechal
façam-no ao menos sargento.

PROCESSO 69003223BeLNPQ_ph

LIBELO

_Le cynisme de l'apostasie._
(Berryer).

Que graçolas são essas, senhor Palha?
Que estulto riso sobre tudo espalha?
Costuma atribuir-se a pouco siso
O estro folião do eterno riso.
E cuidou tirar jóias dum tesouro?
Cuidou ter dito bocadinhos de ouro?
Pilhérias de matar, chistes de arromba?
Pois nunca em balde com a razão se zomba,
E com ela zombou no seu escrito.
Uma coisa é espírito, outra estrito.
Já vê que me refiro á carta asneira
Abrindo aos disparates a torneira
Nas ilustres colunas do Ilustrado.
Quanto fora melhor estar calado!
A defesa enterrou-lhe a protegida,
Há patronos assim; hoje é perdida
A causa da Madame. Andou de leve
Em tudo quanto disse, e nunca teve
Hora mais infeliz. Veja: primeiro
O seu grande argumento é dá dinheiro!
Que miséria inaudita! Desse modo
Bota abaixo a moral do mundo todo.
Ó venenos subtis, ó ferros finos.
Quem maldirá a mão dos assassinos
Se vós rendeis milhões? Ó lupanares
Da vil prostituição, nos seus cantares
Passou-vos Palha carta de limpeza.
Lucrais muito por dia? Santa empresa.
Não quer saber de mais; o merecimento
Afere-o pelo ganho; isto é nojento.
A moral, a virtude, que lhe importa?
O caso está em quanto rende a porta,
A corrupção geral é que o deleita
Dês que possa ser fonte de receita.
A arte mascarou-se em traficante,
A arte é chilrear e ver sonante.
E houve quem berrasse, e ainda hoje berra,
Contra o bárbaro interesse da Inglaterra
Envenenando a China? Que patetas!
Não haviam mugir á vaca as tetas?
Se vem sangue no tarro que tem isso?
O sangue também faz belo chouriço.
E fresquinha a Madame, e curto o fato?
Diz ele que o reparo é caricato.
Pois quanto mais a filha mostra a perna
E a linguagem mais cheira a taberna
Mais acode o concurso hoje em Lisboa
Que até na corte, em grifo, ainda ressoa
A fama de Cascais e os lindos fados
Que por lá se dançaram, e os trinados
Da banza afidalgada; haja folgança
Que neste mundo há só prazer e pança.
Na insulta peça o Palha chocarreiro
Só dá voto de peso ao bisbilhoteiro;
Com este é tudo bom. Frivolidades.
Frases regateiras, e necessidades;
A praça da Figueira, enfim, na cena.
Sem um dito sequer que faça pena
De não lembrar depois; eis o encanto
Do Palha da Trindade; e faz-lhe espanto
Que os da Nação não saltem de alegria,
E ratos diz que são de Sacristia...
Alto lá, senhor Palha, mais decência.
Não se emporcalhe assim Vossa Excelência.
Não bula na Nação, que o trouxe ao colo,
Que passa por ingrato, além de tolo.
Pois não andou por lá de noite e dia?
Não foi rato também na sacristia?
Então o dizer mal muito mal lhe fica;
Embora noutra parte arme a futrica.
O bonito é caluda. Se hoje adora
O que dantes queimara, roa agora
Nas lonas do teatro, chupe azeite
Dos candeeiros da rampa, mas não deite
Só por na corrupção viver contente
Má fama da que fora sua gente.
Que mal lhe fez á bolsa, em que só pensa,
A antiga tradição, a antiga crença?
Desertou; e bem viu que foi tranquilo.
Nenhum tiro se deu a persegui-lo.
Nenhuma voz se ergueu bradando raça,
Nem ninguém lhe puxou pela casaca.
Virou-a como quis; e nem as trovas
Daquele José Pais de Torres Novas
Ninguém lhe recordou: assim, nem pio,
Que mais calvo o farão, e ainda faz frio.
Se seu honrado pai ressuscitasse
Como o rubor lhe subiria á face
Vendo o filho truão na pátria cara
Cuspir injurias, com facécia ignara;
Vendo o filho nos tempos em que vamos
Morder insano a procissão de Ramos!
Que tem, que pode ter gambia obscena,
Em anzol de patacos sobre a cena,
Com pia procissão, qualquer que seja,
Dês que tem por escudo a Santa Igreja?
Como o tal velho Palha encresparia
O sobrolho a toda esta porcaria?
Ver seu filho gabando os assobios
De amoladinhos vãos e de vadios;
Censurar a gravata séria e lisa;
O pé fresco exaltar; gente em camisa;
Ser-lhe, enfim, tudo antigo de quezila
E cómicos só ter como família!...
Ó manes venerandos e embocados
Dos Desembargadores, sois trocados
Na voz do filho e neto, em sede de ouro.
Por títeres do palco! Forte estouro
Levava o tal amigo se surgia
Toda a Palha anciã, se não morria
De vergonha outra vez, que é coisa dura
Ver por nossos mordida a sepultura!
Mas basta, senhor Palha, e se ainda a fome
Lhe exige mais roer, roa em seu nome.

(A Nação).

CONTRARIEDADE

.......... e nunca teve
Hora mais infeliz.....

(V. Exc.ª mesmo).

Cantor das dúzias, teu rosto
porque é que encobres assim?
Quem és tu? És Arlequim?
És o Furioso de Ariosto?
És o Roberto Pimpim?

És um anão Torquemada
com pretensões a Vestal,
fruto da copulo carnal
do autor da Besta esfolada
e do esfolado animal?...

Não és coisa alguma desta?
Então, ó santinho, o que és?
Pedes para a missa das dez,
ou tocas órgão nas festas
e dás aos foles com os pés?

Pela linguagem rasteira
contigo decerto dou.
Se pai não és, és avô
da que chamas regateira,
da própria filha da Angot.

E a neta enjeitas?... e á neta
condenas a frase chã?
Que cheira mal a hortelã
dizê-lo pode, pateta,
a vil cebola albarrã?

É franca? Para sempre o seja.
Vale mais ter esse dom
que ser beato e maçam
e berrar que é contra a Igreja
colher e trolha!... Chino!

Mostra uma perna? Essa é boa!
Olhem lá com o que ele vem!
Mostrou uma? Pois também
você percorre Lisboa
mostrando as quatro que tem.

Ó sociedade corrupta!...
Ó moralista infeliz!...
que viste a perna da actriz
e em vez de beber cicuta
vais beber... ao chafariz!

Eu sei que o mundo é doente.
Tem um cirro que o corrói.
Além disso ao fraco herói
doe-lhe ainda a raiz do dente
que foi arrancar a Alcaboz.

Ao mais pequeno sintoma
que indique aumento do mal
recresce a faina geral.
Com papas lhe acode Roma
na região temporal;

Dá-lhe sangrias Castela;
põe-lhe um cautério o alemão,
enquanto mata o capão
e ferve á pressa a panela
a Itália no seu vulcão.

Em França a magna assembleia
revolta, ignara, loquaz,
discute se é aguarrás
ou se é forca a panaceia
neste momento eficaz.

Seguindo o fraterno impulso,
o frio, sisudo inglês
chega-se ao leito do ente
e diz, tomando-lhe o pulso:
Ainda não vai desta vez.

E o pai da magra Sibéria,
o grande doutor Moscovo,
da casa de Deus avô
brama: Pois se a coisa é séria,
ó rapazinhos, lá vou.

Mas tu com os teus alfarrábios
e com teu sorriso alvar
é ver, apalpar, e... obrar.
Pudera! Que valem sábios
onde aparece o alvitrar?...

Assim, receitas á antiga:
«Dois grãos de moral... de Adão,
que andou nu e foi burlão.
Com eles faça uma figa,
raspe, e meta de infusão.

«Deite depois disciplinas
com ponta de pita e nó.
Misture São Pedro em pó,
e com as minhas próprias crinas
fomente o enfermo sem dó.

«Note bem. Rigor na dieta
de acepipes liberais.
Não cheirar sequer jornais.
Se a cura for incompleta
dê-lhe mais... e mais... e mais!»

O mau, o pior, o diabo,
ó cego Miramolim,
é que essa droga ruim
por um triz que já deu cabo
do mundo vezes sem fim.

Não faças mais medicina
que o tempo gastas em vão;
e, se és tolo ou charlatão,
grunhe contra a tua sina,
mas contra mim, isso não.

Porque andei lá na botica
de avental e braços nus,
porque os xaropes compus,
mais e mais se justifica
meu tédio pelo alcaboz.

E se a Nação me deu mama,
se ao colo trazer-me quis,
porque estranhas se lhe eu fiz
no regaço e para tal ama
o que faz todo o petiz?!

Sob a campa que os encerra
deixa tranquilos os meus.
Não chames, rei dos pigmeus,
para as contendas da terra
aqueles que estão com Deus.

Do seu tempo honradamente
seguiram costume e lei.
Com ser do meu provarei
que amo a pátria, a minha gente,
e o seu exemplo imitei.

E se algum, velha maluca,
surgisse da eterna paz,
de provar-me era incapaz,
que os olhos estão na nuca;
que o direito é andar para traz.

SENTENÇA 31

Estes autos correndo folha a folha,
deles fica provado á saciedade
que tem bolha a Nação, e que tem bolha
o Palha da Trindade.
Marfára-se o jornal só porque em cena
mostrara certa artista
uma das pernas gordas, e essa obscena.
O Palha redarguiu: que era uma pena
e, mais, uma injustiça
tratar como se fora de corista
a perna duma actriz das de mão cheia;
que a perna era a cobiça
do velho jornalista;
que o ferro dele, o ferro... era que a meia
cobrisse aquela gambia tão roliça;
por fim que era um sacrista...
insulto enorme a quem ajuda á missa!

Ás partes deu-se vista
da perna questionada. Era postiça.

Recalcitra a Nação, acesa em febre:
que fora burla torpe, e facto novo
em terra portuguesa, dar-se ao povo
um gato em vez de lebre.
Que falsa ou verdadeira a perna fosse,
de rama de algodão, ou simples cana,
sempre era perna, e grátis dava um doce
a quem de lhe morder não desse a gana.
Dai a grave ofensa
á pureza moral da raça humana;
a indignação imensa
duma sã consciência ultramontana!
Que o Palha também fora antigamente
irmão na sacristia
levantando a ração, conforme a havia,
e sempre com bom dente.
Que lá num belo dia
fugira como um burro cacilheiro
sem lhe gritarem: Xó!... Que santa gente!

Que o reles empresário, tendo o fito
nas cruzes do dinheiro,
trazia todo inteiro,
aos pinchos, dentro em si, um vil cabrito:
a forma de animal mais predilecta
do Belzebu maldito
quando a nossa alma empanzinar projecta.
Que os pais, avós, enfim toda a Palhada
que jaz na cova, qual vivera, honrada,
por causa da tal perna
ficara condenada
duma eterna vergonha á dor eterna.
O réu contesta, e diz:
Que era verdade
haver por lá andado;
mas numa tal idade
que não chegara nunca a ser ferrado.
Que o tinham num cerrado
onde brotava apenas a Saudade;
constante era a estiagem;
o céu caliginoso;
de lágrimas somente a beberagem;
por festa o cardo; espinhos só por gozo.
Que tiritando ali, aguado o pêlo,
extinto o movimento,
transportado se vira num momento
ás pávidas mansões do eterno gelo.
Que, lá muito de longe, a Liberdade
lhe fez então negaças.

«Tens frio?... Vem. Aqueço. A escuridade
é de razão deixa-la á sepultura,
véu das caveiras, manto das carcaças!
Chama-te a luz! a luz que vem da altura
dos iriados céus!... Surge!... Caminha!...
Quanto mais caminhar a humanidade
do espírito de Deus mais se avizinha.»

Após da sedução daquele canto,
ouvindo aqueles hinos,
homem por eles feito, erguida a fronte,
partira ansioso em busca do horizonte
onde, envolvida em nimbos purpurinos,
coroada de amaranto,
a deusa refulgia.
Partira. Fora. E não se arrependia.

Conspurca-la pretendem? Na passagem
cospem-lhe insultos? Baixam-lhe a pagode
o templo augusto? Arrastam-na á voragem?
Ela é pura sempre; é sempre forte!
Pôde velar seu rosto; só não pôde,
sem que renasça, cativa-la a morte!

E disse mais. E disse desta sorte:
Que mesmo ao Santo Padre, e mais é santo,
não faz o dinheirinho um mau cabelo...
nem, em nome de Pedro, recebê-lo.
Para enjeitá-lo, em menosprezo tê-lo,
nas mãos como José largar-lhe o manto,
um pobre pecado e Belisario,
seria necessário
que fosse um dromedário;
que fosse um grã camelo!

Que exibir uma perna no teatro
não era nada comparado ás quatro
sobre as quais a Nação a qualquer hora
vai, cabisbaixa, manquejando léguas
por esse pais fora.

Que em seu rancor profundo,
sendo cristã, não dera ao menos tréguas
àqueles que dormiam descansados
nas sombras do outro mundo!...
Coitados!...
Sim; coitados!
Empenharam-se juntos na batalha
em pró do mesmo rei. Nos mesmos fossos
o mesmo pó morderam. Na mortalha
nem isso lhes valeu!
Ai! pobres ossos!

Ouvidos por tal forma ambos os lados;
e
Sendo mais que certo
que a folha autora, os olhos pondo em Cristo,
por um cantinho deles já tem visto
pernas no palco, e pernas mais ao perto,
sem que torça o nariz ou mostre nojo;
Não podendo a Moral chegar tão longe
que exija a cada canto um Varatojo,
nem de cada mortal engendre um monge
dormindo sobre o tojo;
e
Visto que a Nação no seu ataque
foi rude, e foi cruel, e deu motivo
do Palha ao fogo vivo
que a pôs, no ardor do saque,
pouco mais, pouco menos, como um crivo;

Sendo que o Palha, embora na defesa,
faltou ás leis da guerra
contundindo a Nação prostrada em terra;
inútil, bestial, ímpia fereza,
ainda em cima agravada na certeza
de estar sovando um mártir;
Atendendo
a ter o mesmo réu a consciência
do mal que procedia
quando, esquecendo a antiga convivência
por fútil ninharia,
em vez de lhe deitar logo um remendo
se pôs a esgravatar na porcaria;
Manda a Justiça, a cega, a que é machucha,
a pomba imaculada,
a fóssil que nem chucha
nem consente sequer em ser chuchada;
ordena a incorruptível, Deus lhes valha!...
que vejam bruxa os dois! Veja uma bruxa
a bruxa da Nação! Veja outra o Palha.

Assim, condeno os dois da vida airada.

Em castigo ao jornal seja o Libelo,
num livro, publicado. E que o releia,
(pequena penitencia ao grande excesso!)
quem á bílis soes abriu a veia.
Saibam-lhe a fel, e trinque-os sempre á ceia,
os frutos do seu ódio!
Dá-lo ao prelo,
dar-se a si mesmo em elzevir impresso,
jungidos ambos, presos num só elo,
do Palha a pena seja, e o seu flagelo!

Na mesma falta incursos,
e noutra falta ainda, a de recursos,
paguem os dois as custas do processo.

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