INSCRIÇÃO
Eu vi a luz em um pais perdido.
A minha alma é lânguida e inerme.
Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme...
SONETOS
Tatuagens complicadas do meu peito:
Troféus, emblemas, dois leões alados...
Mais, entre corações engrinaldados,
Um enorme, soberbo, amor-perfeito...
E o meu brasão... Tem de oiro num quartel
Vermelho, um lis; tem no outro uma donzela,
Em campo azul, de prata o corpo, aquela
Que é no meu braço como que um broquel.
Timbre: rompante, a megalomania...
Divisa: um ai, que insiste noite e dia
Lembrando ruínas, sepulturas rasas...
Entre castelos serpes batalhantes,
E águias de negro, desfraldando as asas,
Que realça de oiro um colar de besantes!
ESTÁTUA
Cansei-me de tentar o teu segredo:
No teu olhar sem cor, frio escalpelo,
O meu olhar quebrei, a debate-lo,
Como a onda na crista dum rochedo.
Segredo dessa alma e meu degredo
E minha obsessão! Para bebe-lo
Fui teu lábio oscular, num pesadelo,
Por noites de pavor, cheio de medo.
E o meu osculo ardente, alucinado,
Esfriou sobre o mármore correcto
Desse entreaberto lábio gelado...
Desse lábio de mármore, discreto,
Severo como um tumulo fechado,
Sereno como um pélago quieto.
FONÓGRAFO
Vai declamando um cómico defunto,
Uma plateia ri, perdidamente,
Do bom jarreta... E há um odor no ambiente
A cripta e a pó, do anacrónico assunto.
Muda o registo, eis uma barcarola:
Lírios, lírios, águas do rio, a lua...
Ante o Seu corpo o sonho meu flutua
Sobre um paul, extática corola.
Muda outra vez: gorjeios, estribilhos
Dum clarim de oiro o cheiro de junquilhos,
Vivido e agro! tocando a alvorada...
Cessou. E, amorosa, a alma das cornetas
Quebrou-se agora orvalhada e velada.
Primavera. Manhã. Que eflúvio de violetas!
Desce em folhedos tenros a colina:
Em glaucos, frouxos tons adormecidos,
Que saram, frescos, meus olhos ardidos,
Nos quais a chama do furor declina...
Oh vem, de branco, do íntimo da folhagem!
Os ramos, leve, a tua mão aparte.
Oh vem! Meus olhos querem desposar-te
Reflectir-te virgem a serena imagem.
De silva doida uma haste esquiva
Quão delicada te osculou num dedo
Com um aljôfar cor de rosa viva!...
Ligeira a saia... Doce brisa impele-a...
Oh vem! De branco! Do íntimo do arvoredo...
Alma de silfo, carne de camélia...
Esvelta surge! Vem das aguas, nua,
Timonando uma concha alvinitente!
Os rins flexíveis e o seio fremente...
Morre-me a boca por beijar a tua.
Sem vil pudor! Do que ha que ter vergonha?
Eis me formoso, moço e casto, forte.
Tão branco o peito! para o expor á Morte...
Mas que ora a infame! não se te anteponha.
A hidra torpe!... Que a estrangulo... Esmago-a
De encontro á rocha onde a cabeça te há-de,
Com os cabelos escorrendo agua,
Ir inclinar-se, desmaiar de amor,
Sob o fervor da minha virgindade
E o meu pulso de jovem gladiador.
Depois da luta e depois da conquista
Fiquei só! Fora um acto antipático!
Deserta a Ilha, e no lençol aquático
Tudo verde, verde, a perder de vista.
Porque vos fostes, minhas caravelas,
Carregadas de todo o meu tesoiro?
Longas teias de luar de chama de oiro,
Legendas a diamantes das estrelas!
Quem vos desfez, formas inconsistentes,
Por cujo amor escalei a muralha,
Leão armado, uma espada nos dentes?
Felizes vós, ó mortos da batalha!
Sonhais, de costas, nos olhos abertos
Reflectindo as estrelas, boquiabertos...
Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho,
Onde esperei morrer, meus tão castos lençóis?
Do meu jardim exíguo os altos girassóis
Quem foi que os arrancou e lançou no caminho?
Quem quebrou (que furor cruel e simiêsco!)
A mesa de eu cear, tábua tosca de pinho?
E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?
Da minha vinha o vinho acidulado e fresco...
Ó minha pobre mãe!... Não te ergas mais da cova,
Olha a noite, olha o vento. Em ruína a casa nova...
Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.
Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais.
Alma da minha mãe... Não andes mais á neve,
De noite a mendigar ás portas dos casais.
Ó meu coração torna para traz
Donde vens a correr, desatinado?
Meus olhos acendidos que o pecado
Queimou... Voltai horas de paz.
Vergam da neve os olmos dos caminhos,
A cinza arrefeceu sobre o brasido.
Noites da serra, o casebre transido...
Cismai meus olhos como dois velhinhos...
Extintas primaveras evocai-as:
Já vai florir o pomar das macieiras,
Havemos de enfeitar os chapéus de maias
Sossegai, esfriai, olhos febris.
E havemos de ir cantar nas derradeiras
Ladainhas... Doces vozes senis...
Floriram por engano as rosas bravas
No Inverno: veio o vento desfolha-las...
Em que sismas, meu bem? Porque me calas
As vozes com que há pouco me enganavas?
Castelos doidos! Tão cedo caístes!...
Onde vamos, alheio o pensamento,
De mãos dadas? Teus olhos, que um momento
Perscrutaram nos meus, como vão tristes!
E sobre nós cai nupcial a neve,
Surda, em triunfo, pétalas, de leve
Juncando o chão, na acrópole de gelos...
Em redor do teu vulto é como um véu!
¿Quem as esparze quanta flor, do céu,
Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?
E eis quanto resta do idílio acabado,
Primavera que durou um momento...
Como vão longe as manhãs do convento!
Do alegre conventinho abandonado...
Tudo acabou... Anémonas, hidrangeas.
Cilindras, flores tão nossas amigas!
No claustro agora viçam as ortigas,
Rojam-se cobras pelas velhas lageas.
Sobre a inscrição do teu nome delido!
Que os meus olhos mal podem soletrar,
Cansados... E o aroma fenecido
Que se evola do teu nome vulgar!
Enobreceu-o a quietação do olvido.
Ó doce, ingénua, inscrição tumular.
Singra o navio. Sob a agua clara
Vê-se o fundo do mar, de areia fina...
Impecável figura peregrina,
A distancia sem fim que nos separa!
Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuemente cor de rosa,
Na fria transparência luminosa
Repousam, fundos, sob a agua plana.
E a vista sonda, reconstruí, compara.
Tantos naufrágios, perdições, destroços!
Ó fúlgida visão, linda mentira!
Róseas unhinhas que a maré partira...
Dentinhos que o vaivém desgastara...
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos...
Foi um dia de inúteis agonias.
Dia de sol, inundado de sol!...
Fulgiam nuas as espadas frias...
Dia de sol, inundado de sol!...
Foi um dia de falsas alegrias.
Dália a esfolhar-se, o seu mole sorriso...
Voltavam os ranchos das romarias.
Dália a esfolhar-se, o seu mole sorriso...
Dia impressionável mais que os outros dias.
Tão lúcido... Tão pálido... Tão lúcido!...
Difuso de teoremas, de teorias...
O dia fútil mais que os outros dias!
Minuete de discretas ironias...
Tão lúcido... Tão pálido... Tão lúcido!...
Passou o Outono já, já torna o frio...
Outono do seu riso magoado.
Álgido Inverno! Obliquo o sol, gelado...
O sol, e as aguas límpidas do rio.
Aguas claras do rio! Aguas do rio,
Fugindo sob o meu olhar cansado,
Para onde me levais meu vão cuidado?
Aonde vais, meu coração vazio?
Ficai, cabelos dela, flutuando,
E, debaixo das aguas fugidias,
Os seus olhos abertos e cismando...
Onde ides a correr, melancolias?
E, refractadas, longamente ondeando,
As suas mãos translúcidas e frias...
Quando voltei encontrei os meus passos
Ainda frescos sobre a húmida areia,
A fugitiva hora, reevoquei-a,
Tão rediviva! nos meus olhos baços...
Olhos turvos de lágrimas contidas.
Mesquinhos passos, porque doidejastes
Assim transviados, e depois tornastes
Ao ponto das primeiras despedidas?
Onde fostes sem tino, ao vento vario,
Em redor, como as aves num aviário,
Até que a asita fofa lhe faleça...
Toda essa extensa pista para quê?
Se há-de vir apagar-vos a maré,
Como as do novo rasto que começa...
Imagens que passais pela retina
Dos meus olhos, porque não vos fixais?
Que passais como a agua cristalina
Por uma fonte para nunca mais!...
Ou para o lago escuro onde termina
Vosso curso, silente de juncais,
E o vago medo angustioso domina,
Porque ides sem mim, não me levais?
Sem vós o que são os meus olhos abertos?
O espelho inútil, meus olhos pagãos!
Aridez de sucessivos desertos...
Fica sequer, sombra das minhas mãos,
Flexão casual de meus dedos incertos,
Estranha sombra em movimentos vãos.
POESIAS
Quando se erguerão as seteiras,
Outra vez, do castelo em ruína,
E haverá gritos e bandeiras
Na fria aragem matutina?
Se ouvirá tocar a rebate
Sobre a planície abandonada?
E sairemos ao combate
De cota e elmo e a longa espada?
Quando iremos, tristes e sérios,
Nas prolixas e vãs contendas,
Soltando juras, impropérios,
Pelas divisas e legendas?
E voltaremos, os antigos
E puríssimos lidadores,
(Quantos trabalhos e perigos!)
Quase mortos e vencedores?
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E quando, ó Doce Infanta Real,
Nos sorrirás do belveder?
Magra figura de vitral,
Por quem nós fomos combater...
Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar,
Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo;
E apesar disso, crê! nunca pensei num lar
Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.
Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito.
E nunca te escrevi nenhuns versos românticos.
Nem depois de acordar te procurei no leito
Como a esposa sensual do Cântico dos cânticos.
Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo
A tua cor sadia, o teu sorriso terno,
Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso
Que me penetra bem, como este sol de Inverno.
Passo contigo a tarde e sempre sem receio
Da luz crepuscular, que enerva, que provoca.
Eu não demoro o olhar na curva do teu seio
Nem me lembrei jamais de te beijar na boca.
Eu não sei se é amor. Será talvez começo...
Eu não sei que mudança a minha alma presente...
Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço,
Que adoecia talvez de te saber doente.
Rufando apressado,
E bamboleado.
Bonet posto ao lado,
Garboso, o tambor
Avança em redor
Do campo de amor...
Com força, soldado!
A passo dobrado!
Bem bamboleado!
Amores te bafejem.
Que as moças te beijem.
Que os moços te invejem.
Mas ai, ó soldado!
Ó triste alienado!
Por mais exaltado
Que o toque reclame,
Ninguém que te chame...
Ninguém que te ame...
Ao meu coração um peso de ferro
Eu hei-de prender na volta do mar.
Ao meu coração um peso de ferro...
Lança-lo ao mar.
Quem vai embarcar, que vai degredado...
As penas do amor não queira levar...
Marujos, erguei o cofre pesado,
Lançai-o ao mar.
E hei-de mercar um fecho de prata.
O meu coração é o cofre selado.
A sete chaves: tem dentro uma carta...
A ultima, de antes do teu noivado.
A sete chaves, a carta encantada!
E um lenço bordado... Esse hei-de o levar,
Que é para o molhar na agua salgada
No dia em que enfim deixar de chorar...
CREPUSCULAR
Há no ambiente um murmúrio de queixume,
De desejos de amor, dais comprimidos...
Uma ternura esparsa de balidos,
Sente-se esmorecer como um perfume.
As madressilvas murcham nos silvados
E o aroma que exalam pelo espaço,
Tem delírios de gozo e de cansaço
Nervosos, femininos, delicados.
Sentem-se espasmos, agonias de ave,
Incompreensíveis, mínimas, serenas...
Tenho entre as mãos as tuas mãos pequenas.
O meu olhar no teu olhar suave.
As tuas mãos tão brancas de anemia...
Os teus olhos tão meigos de tristeza...
É este elanguescer da natureza,
Este vago sofrer do fim do dia.
Se andava no jardim,
Que cheiro de jasmim!
Tão branca do luar!
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Eis tenho-a junto a mim.
Vencida, é minha, enfim,
Após tanto a sonhar...
Porque entristeço assim?...
Não era ela, mas sim
(O que eu quis abraçar),
A hora do jardim...
O aroma de jasmim...
A onda do luar...
Depois das bodas de oiro,
Da hora prometida,
Não sei que mau agoiro
Me anoiteceu a vida...
Temo de regressar...
E mata-me a saudade...
Mas de me recordar
Não sei que dor me invade.
Nem quero prosseguir,
Trilhar novos caminhos,
Meus pobres pés, doridos,
Já roxos dos espinhos.
Nem ficar... e morrer...
Perder-te, imagem vaga...
Cessar... Não mais te ver...
Como uma luz se apaga...
O meu coração desce,
Um balão apagado...
Melhor fora que ardesse,
Nas trevas, incendiado.
Na bruma fastidiosa,
Como um caixão á cova...
Porque antes não rebenta
De dor violenta e nova?!
Que apego ainda o sustém?
Átomo miserando...
Se o esmagasse o trem
Dum comboio arquejando!...
O inane, vil despojo
Da alma egoísta e fraca!
Trouxesse-o o mar de rojo
Levasse-o na ressaca.
Chorai arcadas
Do violoncelo!
Convulsionadas,
Pontes aladas
De pesadelo...
De que esvoaçam,
Brancos, os arcos...
Por baixo passam,
Se despedaçam,
No rio, os barcos.
Fundas, soluçam
Caudais de choro...
Que ruínas, (ouçam)!
Se se debruçam,
Que sorvedouro!...
Trémulos astros...
Soidões lacustres...
Lemes e mastros...
E os alabastros
Dos balaústres!
Urnas quebradas!
Blocos de gelo...
Chorai arcadas,
Despedaçadas,
Do violoncelo.
AO LONGE OS BARCOS DE FLORES
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila,
Perdida voz que de entre as mais se exila,
Festões de som dissimulando a hora.
Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora...
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila.
E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém. Só modulada trilha
A flauta flebite... Quem há-de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?
Só, incessante, um som de flauta chora...
EM UM RETRATO
De sob o cómodo quadrangular
Da terra fresca que me há-de inumar,
E depois de já muito ter chovido,
Quando a erva alastrar com o olvido,
Ainda, amigo, o mesmo meu olhar
Há-de ir humilde, atravessando o mar,
Envolver-te de preito enternecido,
Como o de um pobre cão agradecido.
Voz débil que passas,
Que humílima gemes
Não sei que desgraças...
Dir-se-ia que pedes.
Dir-se-ia que tremes,
Unida ás paredes,
Se vens, ás escuras,
Confiar-me ao ouvido
Não sei que amarguras...
Suspiras ou falas?
Porque é o gemido,
O sopro que exalas?
Dir-se-ia que rezas.
Murmuras baixinho
Não sei que tristezas...
Ser teu companheiro?
Não sei o caminho.
Eu sou estrangeiro.
Passados amores?
Animas-te, dizes
Não sei que terrores...
Fraquinha, deliras.
Projectos felizes?
Suspiras. Expiras.
Na cadeia os bandidos presos!
O seu ar de contemplativos!
Que é das feras de olhos acesos?!
Pobres dos seus olhos cativos.
Passeiam mudos entre as grades,
Parecem peixes num aquário.
Campo florido das Saudades
Porque rebentas tumultuário?
Serenos... Serenos... Serenos...
Trouxe-os algemados a escolta.
Estranha taça de venenos
Meu coração sempre em revolta.
Coração, quietinho... quietinho...
Porque te insurges e blasfemas?
Pschiu... Não batas... Devagarinho...
Olha os soldados, as algemas!
FINAL
Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas,
Fulgurações azuis, vermelhos de hemoptise,
Represados clarões, cromáticas vesanias,
No limbo onde esperais a luz que vos baptize,
As pálpebras cerrai, ansiosas não veleis.
Abortos que pendeis as frontes cor de cidra,
Tão graves de cismar, nos bocais dos museus,
E escutando o correr da agua na clepsidra,
Vagamente sorris, resignados e ateus,
Cessai de cogitar, o abismo não sondeis.
Gemebundo arrulhar dos sonhos não sonhados,
Que toda a noite errais, doces almas penando,
E as asas lacerais na aresta dos telhados,
E no vento expirais em um queixume brando,
Adormecei. Não suspireis. Não respireis.
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