Poema romântico em quatro cantos
A Noite do Castelo
Canto I
Todo por dentro e fora iluminando
o Castelo feudal pernoita em festa,
na margem negra do espaçoso lago.
Inda corcéis, de nítidos jaezes,
contra o vasto clarão trotam rinchando
dos longes do arredor: já muitos pascem
aos grossos troncos presos. Voam velas
de toda a parte demandando a praia:
e dos toldos as lâmpadas pendentes
mostram senhores, cavaleiros, damas,
em que o oiro reluz por entre as cores.
Pelas francas janelas se difundem
na alvoroçada noite os sons que alegram
os góticos salões.
A filha do Conde Orlando, a formosíssima Inês, festejava os seus vinte anos. Estava noiva de Adolfo, trovador e cavaleiro, que canta louvores à sua amada. Entra, nos vastos salões, misterioso cavaleiro, envergando negra armadura.
Como Adolfo cantava, o reposteiro
de um canto se ergue; avista-se na porta
o cavaleiro incógnito, suspenso.
Uns o observam sorrindo, outros curiosos.
A viseira, inda baixa, estranham todos;
seu nome, ou de onde vem, ninguém conhece.
A estatura soberba, o saio negro,
o morrião, a negra cor das plumas,
nenhum se acorda de os jamais ter visto.
Não saúda a ninguém; entra, e se encosta
à primeira coluna, de onde fita
na dama e trovador o aspecto imóvel.
Por cima da cabeço, esguia tocha
luz lhe verte agoireira. Ou fosse acaso,
ou mistério de Cima, apenas o ombro
tocou de leve o mármore, soltou-se
com a flórea coroa, ao capitel cingida,
o festão da coluna, e debruçado
mais de meio com as trémulas folhagens,
desce a lamber, ondeando, o pavimento.
Um murmurinho, um movimento inquieto,
reinam pela assembleia. - « Talvez seja
um morador das praias estrangeiras,
que ignora os usos; ou será promessa
que fez, de ir-se encoberto até vingar-se
ou vingar sua dama; ou, porventura,
é esse algum senhor da vizinhança,
a quem por brinco mascarar-se aprouve».
Tais em praça apinhada as conjecturas
fervem várias, à hora em que rutila
cometa de ígneo sangue em céu profundo.
Prossegue animada a festa, depois do altivo e
enamorado canto do feliz barão. Brindam os
convivas pela felicidade do gracioso par.
Para a geral saúde já circula
encanecido vinho, em fundos vasos.
Ninguém se escusa ao brinde. Ao cavaleiro
chegou a sua vez: - «Só belo sangue» -
disse, enjeitando a taça; e mais não disse.
Esta voz, que só próximos lhe ouviram,
pareceu vir dos íntimos do peito,
sepulcral no soído e em tom profeta,
mas penosa, mas débil, semelhante
ao da brisa autumnal murmúrio escasso
na folha morta que tapiza as campas.
Se ao fantasma de um bárbaro assassino
desse Deus que falasse, assim falara.
Rompem o baile, anunciado pelo alaúde de um Menestrel, Inês e Adolfo. Tumultuam os nobres pelas vastas salas. Subitamente, ouvem-se os dobres dos sinos do castelo, tocando a finados. Um frio glacial perpassa pela multidão estarrecida. Procuram, com a vista, o Cavaleiro Negro. Desaparecera. correm à torre e à capela.
- «Se alguém duvida,
pode ir vê-lo, como eu vi claramente
(a lâmpada do altar está bem viva):
Um guerreiro está curvo sobre a cova,
com o capacete (e, por sinal, doirado,
que luz como uma estrela) a cavar fundo;
para quem, não sei eu. No meu relance
não vi lá mais ninguém, nem sei mais nada».
Tal o relato feito por um apavorado pajem.
Abandonam os convivas o Castelo. O Conde
Orlando, só no deserto castelo, procura saber do
fâmulo se a figura do cavaleiro, por ele entrevista,
se assemelhara à de seu sobrinho Henrique,
morto em combate heróico, na Terra Santa.
CANTO II
Acalma-se o pavor dos nobres e das damas que vagueavam pelos imensos jardins do castelo.
Adolfo audaz, o temerário Adolfo,
encomendada aos mais de Inês a guarda,
tinha-se ido, sem luz, sem companheiro,
contra a capela gótica, rondá-la,
e profundar o arcano. Ao perto, ao longe,
tudo corre, sondou; sossego é tudo;
não se escuta alma viva; o templo, a torre,
tácitos dormem; jaz fechada a porta, negro o recinto, a alâmpada sem lume.
Volta portanto; e à turba que o rodeia
a boa nova dá, tão fero em vozes,
tão seguro de si, que estas certezas
embebidas os ânimos afagam;
mormente a Inês, que, mais afoita agora,
pelo braço fiel do esposo invicto,
já sofre no arvoredo extraviar-se.
Segue o enamorado par pelas áleas do bosque. Adolfo, desvairado pela paixão, suplica um beijo à sua amada. Surge, sùbitamente, o Cavaleiro Negro. Enquanto Inês cai desmaiada, trava-se cruento combate entre os dois. Atraídos pelo tilintar das armas, acorrem de toda a parte, batendo o bosque. Encontram, por fim, Adolfo moribundo. Inês desaparecera. Descobrem-na mais além. Recolhem-nas ao Castelo. Mentem-lhe, dizendo ter partido Adolfo para junto de seu pai que se encontraria às portas da morte. Incrédula e apavorada, atribui Inês as desgraças recentes a ter quebrado a jura de amor feita a seu primeiro noivo, a Henrique.
-«O que há cá dentro…
Não to sei eu pintar. Amei Henrique,
com a abundância, o êxtase, o delírio
de um virgem coração, imenso e ardente,
que há muito sonha um anjo, acorda, e o acha.
Nele encontrei, confesso, iguais extremos.
Filhos de irmãos, e quase irmãos na idade, na
educação, em hábitos, em gostos,
jurámos mutuamente amor eterno,
sem restrições, sem cláusulas; jurámos
até viver leais um do outro às cinzas.
…………………………………………………………..
Ao partir para a guerra, no amargoso
do último abraço, em lágrimas regando
eu seu peito de ferro ele o meu seio,
renovámos solene o antigo voto.
Vês este relicário, o companheiro
do coração materno em toda a vida,
e por ela ao morrer a mim legado, e doce escudo
meu vedado aos olhos?
Pois sobre ele, um e outro os lábios pondo,
tornámos a firmar inteiro, inteira,
por vezes três a sacrossanto jura.
O Céu, a terra, o inferno, em testemunhas
e em vingadores deprecámos; fez-se
voto (ai de mim!) que de entre nós o morto,
traído em seu amor, perseguiria
no mundo e eternidade o vivo ingrato.
Partiu. Ficou vazio este castelo,
e eu sem tino, sem luz, só corpo errante,
cuja mente vagava estranhos climas.
Exprime Inês o singular sentimento de amar
simultaneamente Henrique e Adolfo. Entretanto,
levanta-se medonho temporal. Soam três horas.
Eis que se ouvem ouvem gritos aflitivos. Uma barca
temerária dera sobre os rochedos, e afundava-se.
Canto III
Aparece Henrique à sua antiga noite. Exproba-lhe a traição de se ter apaixonado por Adolfo, e de o ter esquecido.
«Inês!… Foi na minha alma a tua ideia
a maior do Universo; obter-te esposa
julgava-o de entre os bens o bem supremo.
Vi meus anos em flor, meu braço em ócio;
é nulo herdado lustre onde outros faltam;
honra de meus avós não supre à minha.
Corei, e disse em mim:«Fugir-lhe ousemos;
e, para a merecer, corra-se às armas».
Sede de glória tua arremessou-me,
com teu nome na boca, e a lança em punho,
no primeiro combate ao mais aceso
do revolto brigar; voei ceifando
entre searas de inimigos ferros.
Quebrada a lança, o meu cavalo em terra,
partida a espada, um número sem conto
me cercou, me prendeu, lavado em sangue;
ia por minhas mãos troncar meus dias…
Lembrou-me Inês, vivi. Meus pés rojaram
desprezados grilhões; dormi na terra;
comi o pão da dor; sofri o insulto.
De um bárbaro senhor tornado escravo.
perdi ultimo bem do cativeiro:
o prazer de falar, em terra estranha,
a própria língua a sócios no infortúnio.
Resisti. Uma esperança, não a esperança
da Pátria, mas de Inês, me segurava
no mar da horrenda vida âncora extrema.
Via-te a cada passo e em cada objecto:
Era uma rosa? As rosas lhe são gratas.
Mar ao longe? Era o Lago do castelo.
Na viração do ocaso, a voz te ouvia;
na lua, os nossos olhos se encontravam.
Se em longo, denso véu, sumido o rosto,
iam airosas Turcas, a saudade
lhes prestava o teu nome e teus encantos.
Tu, só, me povoavas o Universo».
Leonor, a serva fiel de Inês, defende-a das acusações de Henrique. Relata-lhe as buscas infrutíferas. O luto de sua ama quando lhe trouxeram a nova de ele ter perecido na Terra Santa.
Canto IV
Vagueia Henrique, lastimando o seu destino.
Hesita entre os votos de vingança e o seu amor
por Inês. Volta ao quarto da castelâ. Esta, porque ignora ainda a morte de Adolfo, propôe-lhe
abandonar o mundo, recolhendo à clausura de um convento. Concorda Henrique com a deliberação,
e ambos se encaminham para os aposentos de Conde Orlando, a fim de lhe comunicarem a sua resolução. Este não se encontra já no castelo,
mas sim no templo.
Clama Inês vingança contra o assassino de Adolfo, que jaz num féretro, iluminado por
tocheiros. tresloucado, Henrique atravessa o peito da sua amada com aguçado punhal.
O Conde Orlando abandona para sempre o
castelo com toda a famulagem.
…Silêncio
solidão e terror vão de ora avante
ser da ponte, em vão baixa, e abertas portas únicas invisíveis sentinelas.
Do cão nocturno o atroador latido
não irá mais nas salas espaçosas
acordar um só eco. Esse relógio,
que ainda numera as horas da viagem,
vai deixar livre o tempo, que adormeça
sobre o alto cume das marmóreas pompas,
que o peso estragador lhe irão sentido.
Da antiga, ilustre, extinta dinastia
a residência inteira se abandona
aos pássaros da noite, às plantas bravas.
…………………………………………………………..
O que foi certo,
foi que todo esse outono, e todo o inverno,
se via divagar, nas horas mortas,
uma luz no castelo. O conde e os servos
tremendo a olhavam da fronteira riba:
das aldeias do monte os moradores
deram a mesma fé. Correu boato
que era a sombra de Inês ou que era Henrique,
vivo ou morto, que uivava no castelo.
Contava-se também que uns ais soavam
na galeria e templo.
…………………………………………………………
Poema Romântico
Os Ciúmes do Bardo
- «Soltemos esta barca. Ao lago, amigos,
ao lago, e breve». Assim Dizia o bardo,
do manto escuro sacudindo a chuva.
Os pescadores, no rochedo imóveis,
o escutavam, sorrindo. O pego escuro
começava a bramir, troando os ventos.
Negros era o céu, e próximo a borrasca.
- «Ao que ousar dar à vela!». E nisto à areia
manto, bolsa, arrojou; e após instantes,
com mais afoita mão, retrato de oiro
de formosura estranha. - «Ao lago, amigo, ao lago!»
- Afasta-me da terra.
Abre a vela aos tufões. O resto... à sorte».
- «Vê! Quão sinistro o sol transluz no acaso!
Do sul a escuridão! O horror das vagas!
Cantor, não se resiste a iguais tormentas».
- «Velho, dás nímio apreço ao ar da vida.
Morrer aqui, além, agora ou logo...
Que importa? É sempre um sonho esta existência,
um sonho horrível que se esvai na morte.
Tu, que dos anos teus colhestes à farta
flor e fruto, hoje o resto de teus anos,
espinhos só, com tanto amor afagas?
No mundo envelhecer, e amar o mundo!...
Delírios vãos, delírios vãos dos homens!»
«Mas, Bardo, e a terna esposa e os filhos tenros?
Virem por mim, adoram-me, sou deles».
Nos lábios do mancebo, a tais palavras,
luziu fugaz, irónico sorriso.
Após silêncio curto alevantou-se,
e abrindo todo o pano aos ventos bravos:
- «Podes nadar, quando o baixel se afunde,
volver à praia, à esposa, aos filhos. Toma
o timão, volve o leme, evite as rochas:
Morte, que odeias tanto, ali referve,
em vagas doidas, hórrida, espumando
do relâmpago etéreo à luz medonha.
E, enquanto o frágil barquinho vai seguindo ao
violento sabor da tempestade, o Bardo lamenta-se,
jura tirar vingança daquela que o atraiçoara.
«Mulher, quando eu te amei, quando hás pedido,
não sabias tu, nem o eu sabia!
Veio a voz do teu crime revelar-mo:
era amor, qual meu ódio, amor sem termo.
Sim, nesta hora solene inda o confesso,
qual mil vezes mo ouviste inda mo ouviras,
e houvera, em repetir-to, acerbo gosto:
meus primeiros, meus únicos amores,
tu, tu foste, só tu; mudada a essência,
pensamento, querer, memória, vida,
tudo em mim foi paixão, ternura, incêndio.
Menor quinhão que o teu nesta alma tinha
eu mesmo, o mundo inteiro, o Deus que o rege.
Vê se eu te amei ou não! Guarda-os na mente;
merecem plena fé tais votos de hoje:
guarda-os na mente, e morrerei vingado.
Deus, Deus, aceito o cálix do infortúnio,
bem que amargoso e transbordando o encheste.
Castiga meus sacrílegos afectos:
ultrajei-te. Mas ela! Ela oprimir-me!
Que lhe fiz eu, senão amá-la, e muito?».
Continua, como num delírio, acusando a
ingratidão da que o houvera desprezado:
lança impropérios, insultos, blasfémias...
«ancião, coroam-te as cãs; essa a grinalda
de que orna o tempo as vítimas da morte.
Vão meus anos crescentes, imaturos,
e eu morro ao meio-dia da existência.
E tu cá ficas, nos serões de inverno,
do pobre bardo o fim narrando aos filhos.
Cedo bata essa hora, aos mais tão negra.
Enchi em curta idade e instantes poucos
longa vida de amor, mais longa em penas.
Quem soubera dos túmulos o arcano!
Se além desta, outra vida nos aguarda
(e aguarda; igual paixão morrer não pode!),
se, livres deste invólucro terrestre,
de puros ares habitantes puros.
pode a justa vingança inda abrasar-nas,
e o que o vivo sofreu puni-lo o morto,
juro vir cada noite, às mesmas horas,
fantasma nebuloso, envolto em nuvens,
pairar da infame pelo céu turvado.
Se uma janela abrir, ver-me-á fronteiro,
encostado sobre a harpa vaporosa,
mudo, choroso. Se vagar na selva,
sobre a relva serei. Se a vir sòzinha,
ajoelharei, e as mãos alevantando
perdão para a infiel aos Céus suplico.
Mas, se outrem a acompanha, a afaga, a amima,
se lhe diz: «Vãs imagens não te assustem,
nuvens são, vêm com o vento, o vento as leva!»,
se lhe fala de amor, se ousa um suspiro,
ai deles! ai!
...................................................................
Aqui, tremendo, o velho
ia do bardo interromper os sonhos.
O bardo o pressentiu. - «Cala-te, e dorme»
- lhe disse. «É tarde; tudo jaz em calma;
todo o céu vai já limpo; eu velo a barca;
tu ferra a vela, e dorme com descanso.
Adeus». Reina o silêncio. Ouve-se apenas
da proa na caverna o ancião dormindo.
...................................................................
No outro dia, ao sol fora, os pescadores
viram volver o lenho aventureiro.
Um só vem dentro. Em que rochedo ou
praia
ficou o jovem bardo? O Velho o ignora
Ninguém o sabe: o Lago o sabe, e é mudo.
Alguns dias depois, entre uns penedos,
se encontrou a boiar, já pasto aos corvos,
um corpo morto. Se o cantor esse era,
ninguém pôde afirmá-lo. Alguns o creram,
mas nem feições nem vestes lhe restavam.
Se há prova, jaz no pélago do fundo.
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