quinta-feira, 25 de junho de 2009

Eugénio de Andrade - O Outro Nome da Terra

eugenio

Com essa nuvem


Para que estrela estás crescendo,
filho, para que estrela matutina?
Diz-me, diz-me ao ouvido,
se é tempo ainda,
eu e essa nuvem, essa nuvem alta,
de irmos contigo.

Numa fotografia


Não sejas como a névoa, nem quimera.
Demora-te, demora-te assim:
faz do olhar
tempo sem tempo, espaço
limpo – do deserto ou do mar.

O nome da terra


Já sobre o meu peito não demoras
os pés miúdos, já a breve
dança dos dedos troca de cabelo,
porque tu cresces, cresces inclinado
para a difícil flor da nossa idade.
És agora o outro nome da terra,
ou simplesmente da eternidade.

Com as maçãs


As crianças chegam com as maçãs.
Vêm do sul,
os choupos brancos sabem o seu nome.
Também as gaivotas as conhecem:
aposto que foram elas,
estas ciganas das areias,
quem lhes mostrou o caminho.
Chegam com as maçãs:
as crianças, as abelhas.

Cidade


O filho pela mão, vamos por estas ruas
esconjurando sombras, convocando
dunas, potros, o sol ainda fresco,
os cachorros latindo de alegria.
Meus olhos vão à frente farejando,
enquanto a mão dele ilumina a minha.

Com os juncos


Elas crescem, as crianças.
Crescem com os juncos,
com os mastros.
Crescem no meu coração esburacado.
Só as crianças não morrem.
E os gatos.

Matinalmente

Com a luz, com a cal
do verão entornada pela casa,
com essa música
tão amada e bárbara,
com a púrpura correndo
de colina em colina,
fazer uma coroa –
e de lágrimas cheia a taça
sagrar-te príncipe da vida.

CUMPLICIDADES DO VERÃO14

A casa


No meu corpo uma casa se levanta,
sem portas, sem paredes, sem telhado:
entrasse o mar por ela ouviria as sereias,
fosse outra vez verão seria só orvalho.

Do lado do verão


Vinha do sul ou dum verso de Homero.
Como dormir, depois de ter ouvido
o mar o mar o mar na sua boca?

Perto do mar


O corpo sabe.
O corpo não esqueceu ainda
a direcção do sol:
fará a casa perto do mar,
fiel ao quase adolescente
coração da água.
As mãos acesas – altas, altas.

Cumplicidade do verão


Mal nos conhecíamos, mas a infância
é cúmplice do verão:
vinhas do rio, das manhãs
onde nadámos juntos e subimos
aos freixos altos: via-te
balouçar num ramo frágil rindo,
ou saltar atrás das rãs – o corpo nu
cravado nos meus olhos como um espinho

Rente ao chão


Sem nenhuma razão a voz rompia,
a rasteirinha voz tão rente à vida
que se confunde com a luz do chão,
a luz de março rastejando ainda.

Morada


A primeira casa não era ainda a casa:
não chega a ser morada.
Na outra, mais pequena, onde ninguém
perguntava que idade tinha
ou se o verão já passara
ou o cão mordia,
amanhã estava à janela.
Essa era a casa, o sol onde ardia.

O sorriso


Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz

lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso,
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.

Os pêssegos


Lembram adolescentes nus:
a doirada pele das nádegas
com marcas de carmim, a penugem
leve, mais encrespada e fulva
em torno do sexo distendido
e fácil, vulnerável aos desejos
de quem só o contempla e não ousa
aproximar dos flancos matinais
a crepuscular lentidão dos dedos.

Corpo


O mar – sempre que toco
um corpo é o mar que sinto
onda a onda
contra a palma da mão.
Vésper está agora
tão próxima que já não posso
perder-me naquela infatigável
ondulação.

A luz do pátio


Deixas a luz do pátio acesa,
a porta aberta – que esperas ainda?
Amas agora com amor dobrado
a vida, o suor misturado ao sal
da saliva, o rumor
das águas no sol das sementes,
a treva do cabelo incendiada
nas mãos outra vez adolescentes.

Ao lume


Nem sempre o homem é um lugar triste.
Há noites em que o sorriso
dos anjos
o torna habitável e leve:
com a cabeça no teu regaço
é um cão ao lume a correr às lebres.

8

Outra vez


Outra vez as mãos, meu deus, as mãos,
a porosa morada do verão,
o copo de água fresca como folha
de álamo,
o golpe de martelo
quebrando as hastes do silêncio.

Sobre a terra


Sei que estou vivo e cresço sobre a terra.
Não porque tenha mais poder,
nem mais saber, nem mais haver.
Como lábio que suplica outro lábio,
como pequena e branca chama
de silêncio,
como sopro obscuro do primeiro
crepúsculo,
sei que estou vivo, vivo
sobre o teu peito, sobre os teus flancos,
e cresço para ti.

Sulcos do verão


Correm pelos sulcos do verão.
São escuros, e correm para mim.
Há quem tenha casa em Corfu
e jardins em Granada;
ou até barcos no mar.
Há quem tenha aqueles olhos,
a água funda desses olhos.
Como eu.
Para beber até ao fim.

Os girassóis


Assim fremente e nua,
a luz só pode ser dos girassóis.
Estou tão orgulhoso
por esta flor difícil ter entrado pela casa.
É talvez o último verão,
tão feito de abandono é meu desejo.
Mas estou orgulhoso dos girassóis.
Como se fora seu irmão.

Contigo


Sou eu, sou eu que não durmo,
contigo nos sentidos.
Sinto-te caminhar sobre as águas
do meu corpo – não sejas queimadura
nem boca do deserto.
Nenhum amor é estéril, um filho
pode ser uma estrela ou ser um verso.

As amoras


O meu país sabe às amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é
azul.

A pupila nua


A luz é sempre a mesma, sempre:
furtiva no flanco das cabras,
crua na coroa dos cardos,
fremente na rasteirinha
relva do teu corpo e nas dunas,
sempre a mesma, a pupila nua.

Cardos


Este é o lugar onde só o lume
não demora a florir,
onde o verão abdica
de ser metáfora para arder
até ao fim.

O pequeno persa


É um pequeno persa
azul o gato deste poema.
Como qualquer outro, o meu
amor por esta alminha é materno:
uma carícia minha lambe-lhe o pêlo,
outra põe-lhe o sol entre as patas
ou uma flor à janela.
Com garras e dentes e obstinação
transforma em festa a minha vida.
Quer-se dizer, o que me resta dela.

A figueira


Não tenho mãos para o azul.
Sonho com o mar
que não está longe mas não vejo
arder.
Só a sombra parece estar em casa
debaixo dos meus ramos:
canta baixinho enquanto se descalça.

Exemplos


Havia ali um cursinho de água,
muros caídos sílaba a sílaba,
um olhar que na fuga se faz ave,
o apagado coração do lume –
são exemplos, só exemplos, da língua.

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Ressaca


A violência fresca do vinho;
os sulcos da ressaca; o silvo matinal
do pastor, mais propício à arte
que toda a música das esferas;
este orgulho de ter no coração
o leite entornado das estrelas.

O falcão


Despeço-me do verão junto às águas
frias do norte – sobre os rios
já outros
disseram o que havia a dizer;
os de Sião não são os meus,
os de Babilónia também não;
eu sou o falcão mais jovem,
sou doutros ares, doutro céu,
deixai-me arder.

Lugares do outono


Outono, labirinto de silvas,
de sílabas, digo: pupila lenta,
rio de inumeráveis águas
e de amieiros altos onde canta
a derradeira luz das cigarras,
de vidro ainda, e leve, e branca.

Mesmo em ruína


É tão antiga a chuva na vidraça.
Vem do pequeno bosque onde o verão
mordia os flancos da água.
O que no coração tarda
a morrer é a luz mesmo em ruína.
A sumptuosa seda do outono.
A doçura, o sal da língua.

Casa velha


Não é a primeira vez que me queixo,
ninguém me escuta.
Esta noite a chuva entrou-me pelos
ossos e não há quem acenda o lume.
Quem partiu levou consigo
o rapazito com olhos de coral,
deixando atrás de si a porta aberta.

Outono


O outono vem vindo, chegam melancolias,
cavam fundo no corpo,
instalam-se nas fendas; às vezes
por aí ficam com a chuva
apodrecendo;
ou então deixam marcas, as putas,
difíceis de apagar, de tão negras,
duras.

Despedida


Junho chegara ao fim, a magoada
luz dos jacarandás, que me pousava
nos ombros, era agora o que tinha
para repartir contigo,
e um coração desmantelado
que só aos gatos servirá de abrigo.

Sem ti


É um fardo aos ombros
o corpo, sem ti.
Até o amarelo
dos girassóis se tornou cruel.
Não invento nada,
na arte de olhar
a luz é cúmplice da pele.

O desejo


O desejo, o aéreo e luminoso
e magoado desejo latia ainda;
não sei bem em que lugar
do corpo em declínio mas latia;
bastava abrir os olhos para ouvir
o nasalado ardor da sua voz:
era a manhã trepando às dunas,
era céu de cal onde o sul começa,
era por fim o mar à porta – o mar,
o mar, pois só o mar cantava assim.

O que não pode morrer


Diz, diz uma vez mais o que não pode
morrer:
a luz, que no sul é inocente
e trepa aos pinheiros;
o trote miúdo das manhãs de junho;
o azul a pique do falcão;
as dunas, com sinais ainda
doutro verão para levar à boca.

Quando junho voltar


A quem deste a mão, confiaste
a sua seda? O ardor
do verão caiu ao rio,
a tão amada voz perdeu
o seu rebanho.
Quando junho voltar,
quem sabe onde fará a casa?

Ainda esperocapt.sge.fza35.161105204917.photo00.photo.default-378x270[1]


Seja como for, ainda espero
dos altos muros ver a dança
das nuvens sobre o rio,
as gloriosas flores desfraldar
a louca cabeleira.
Eram a casa do verão, os girassóis.
A derradeira.

Casualmente


Vinha do mar, a sua boca ardia;
só casualmente passou por aqui;
como o tordo branco, ou a cotovia.

ROSA DO MUNDO

A paixão


Levanto a custo os olhos da página;
ardem;
ardem cegos de tanta neve.
Faz dó esta paixão pelo silêncio,
pelo sussurro do silêncio,
pelo ardor
do silêncio que só os dedos adivinham.
Cegos, também.

Sul


Era verão, havia o muro.
Na praça, a única evidência
eram os pombos, o ardor
da cal. De repente
o silêncio sacudiu as crinas,
correu para o mar.
Pensei: devíamos morrer assim.
Assim: explodir no ar.

Toda a música


Sem ser inverno ainda
o cheiro tímido é já da chuva.
Sentia o mar subir, tinha as mãos
prontas para o levar à boca:
toda a música
era só aquela rebentação.

Epitáfio


Janeiro não é mês para morrer,
nem o mar nem a luz são
propícios – parece que vai nevar.
Mesmo assim, tu decidiste
que seria a última, esta tarde:
vias uma criança escalar o muro
do verão, e sorrias – há muito tempo.

A visita


Atravessou a rua, empurrou a porta,
os seus passos crepitam na luz frouxa:
era como na infância a morte,
assim alta, assim branca, assim rouca.

Sem memória


Haverá para os dias sem memória
outro nome que não seja morte?
Morte das coisas limpas, leves:
manhã rente às colinas,
a luz do corpo levada aos lábios,
os primeiros lilases do jardim.
Haverá outro nome para o lugar
onde não há lembrança de ti?

Rosa do Mundo


Rosa. Rosa do mundo.
Queimada.
Suja de tanta palavra

Primeiro orvalho sobre o rosto.
Que foi pétala
a pétala lenço de soluços.

Obscena rosa. Repartida.
Amada.
Boca ferida, sopro de ninguém.

Quase nada.

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