terça-feira, 23 de junho de 2009

Mário de Sá-Carneiro - Dispersão

POESIA

I tranquillis

PARTIDA

Ao ver escoar-se a vida humanamente
Em suas águas certas, eu hesito,
E detenho-me ás vezes na torrente
Das coisas geniais em que medito.

Afronta-me um desejo de fugir
Ao mistério que é meu e me seduz.
Mas logo me triunfo. A sua luz
Não há muitos que a saibam reflectir.

A minha alma nostálgica de além,
Cheia de orgulho, ensombra-se entretanto,
Aos meus olhos ungidos sobe um pranto
Que tenho a força de sumir também.

Porque eu reajo. A vida, a natureza,
Que são para o artista? Coisa alguma.
O que devemos é saltar na bruma,
Correr no azul à busca da beleza.

É subir, é subir além dos céus
Que as nossas almas só acumularam,
E prostrados rezar, em sonho, ao Deus
Que as nossas mãos de aureola lá douraram.

É partir sem temor contra a montanha
Cingidos de quimera e de irreal;
Brandir a espada filiava e medieval,
A cada hora acastelando em Espanha.

É suscitar cores endoidecidas,
Ser garra imperial enclavinhada,
E numa extrema-unção da alma ampliada,
Viajar outros sentidos, outras vidas.

Ser coluna de fumo, astro perdido,
Forçar os turbilhões alada mente,
Ser ramo de palmeira, água nascente
E arco de ouro e chama distendido...

Asa longínqua a sacudir loucura,
Nuvem precoce de subtil vapor,
Ânsia revolta de mistério e odor,
Sombra, vertigem, ascensão Altura!

E eu dou-me todo neste fim de tarde
Á espira aérea que me eleva aos cumes.
Doido de esfinges o horizonte arde,
Mas fico ileso entre clarões e gumes!...

Miragem roxa de nimbado encanto
Sinto os meus olhos a volver-se em espaço!
Alastro, venço, chego e ultrapasso;
Sou labirinto, sou licorne e acanto.

Sei a Distância, compreendo o Ar;
Sou chuva de ouro e sou espasmo de luz;
Sou taça de cristal lançada ao mar,
Diadema e timbre, elmo real e cruz...

. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .

O bando das quimeras longe assoma...
Que apoteose imensa pelos céus!
A cor já não é cor é som e aroma!
Vem-me saudades de ter sido Deus...

* * * * *

Ao triunfo maior, à vante pois!
O meu destino é outro é alto e é raro.
Unicamente custa muito caro:
A tristeza de nunca sermos dois...

II furiose


ESCAVAÇÃO

Numa ânsia de ter alguma coisa,
Divago por mim mesmo a procurar,
Desço-me todo, em vão, sem nada achar,
E a minha alma perdida não repousa.

Nada tendo, decido-me a criar:
Brando a espada: sou luz harmoniosa
E chama genial que tudo ousa
Unicamente à força de sonhar...

Mas a vitória filiava esvai-se logo...
E cinzas, cinzas só, em vez do fogo...
Onde existo que não existo em mim?
. . . . . . . . . . . . . . .

. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .

. . . . . . . . . . . . . . .
Um cemitério falso sem ossadas,
Noites de amor sem bocas esmagadas
Tudo outro espasmo que princípio ou fim...

III furiose


INTER-SONHO

Numa incerta melodia
Toda a minha alma se esconde.
Reminiscências de Aonde
Perturbam-me em nostalgia...

Manhã de armas! Manhã de armas!
Romaria! Romaria!
. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .

Tacteio... dobro... resvalo...
. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .
Princesas de fantasia

Desencantam-se das flores...
. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .
Que pesadelo tão bom...

. . . . . . . . . . . . . . .
Pressinto um grande intervalo,
Deliro todas as cores,
Vivo em roxo e morro em som...

IV Intono


ALCOOL

Guilhotinas, pelouros e castelos
Resvalam longe mente em procissão;
Volteiam-me crepúsculos amarelos,
Mordidos, doentios de rouquidão.

Batem asas de aureola aos meus ouvidos,
Grifam-me sons de cor e de perfumes,
Ferem-me os olhos turbilhões de gumes,
Desce-me a alma, sangram-me os sentidos.

Respiro-me no ar que ao longe vem,
Da luz que me ilumina participo;
Quero reunir-me, e todo me dissipo
Luto, estrebucho... Em vão! Silvo para além...

Corro em volta de mim sem me encontrar...
Tudo oscila e se abate como espuma...
Um disco de ouro surge a voltear...
Fecho os meus olhos com pavor da bruma...

Que droga foi a que me inoculei?
Ópio do inferno em vez de paraíso?...
Que sortilégio a mim próprio lancei?
Como é que em dor genial eu me eterizo?

Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,
Foi álcool mais raro e penetrante:
É só de mim que eu ando delirante
Manhã tão forte que me anoiteceu.

V morning


VONTADE DE DORMIR

Fios de ouro puxam por mim
A soerguer-me na poeira
Cada um para o seu fim,
Cada um para o seu norte...

. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .
Ai que saudade da morte...

. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .
Quero dormir... ancorar...
. . . . . . . . . . . . . . .

. . . . . . . . . . . . . . .
Arranquem-me esta grandeza!
Para que me sonha a beleza,
Se a não posso transmigrar?...

VI
tranquillis

DISPERSÃO

Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:

Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não tem bem-estar nem família).

O pobre moço das ânsias...
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que te abismaste nas ânsias.

A grande ave dourada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projecto:
Se me olho a um espelho, erro
Não me acho no que projecto.

Regresso dentro de mim,
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.

Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... Mas recordo

A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.

(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que não sonhei!...)

E sinto que a minha morte
Minha dispersão total
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.

Vejo o meu ultimo dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul de agonia
Em sombra e além me sumo.

Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...

Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas para se dar...
Ninguém mas quis apertar...
Tristes mãos longas e lindas...

E tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...

Desceu-me na alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.

Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida,
Eu sigo-a, mas permaneço...

. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .

Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba...
. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .

VII alla_breve


ESTÁTUA FALSA

Só de ouro falso os meus olhos se douram;
Sou esfinge sem mistério no poente.
A tristeza das coisas que não foram
Na minha alma desceu veladamente.

Na minha dor quebram-se espadas de ânsia,
Gomos de luz em treva se misturam.
As sombras que eu dimano não perduram,
Como Ontem, para mim, Hoje é distancia.

Já não estremeço em face do segredo;
Nada me aloira já, nada me aterra:
A vida corre sobre mim em guerra,
E nem sequer um arrepio de medo!

Sou estrela ébria que perdeu os céus,
Sereia louca que deixou o mar;
Sou templo prestes a ruir sem deus,
Estátua falsa ainda erguida ao ar...

VIII 

velprece

QUASE

Um pouco mais de sol eu era brasa,
Um pouco mais de azul eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho ó dor! quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o principio e o fim quase a expansão...
Mas na minha alma tudo se derrama...
Em tanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
Ai a dor de ser quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...

Momentos da alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .

Um pouco mais de sol e fora brasa,
Um pouco mais de azul e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

IX Ambiente


COMO EU NÃO POSSUO

Olho em volta de mim. Todos possuem
Um afecto, um sorriso ou um abraço.
Só para mim as ânsias se diluem
E não possuo mesmo quando enlaço.

Roça por mim, em longe, a teoria
Dos espasmos golfados ruiva mente;
São êxtases da cor que eu fremiria,
Mas a minha alma pára e não os sente!

Quero sentir. Não sei... perco-me todo...
Não posso afeiçoar-me nem ser eu:
Falta-me egoísmo para ascender ao céu,
Falta-me unção para me afundar no lodo.

Não sou amigo de ninguém. Para o ser
Forçoso me era antes possuir
Quem eu estimasse ou homem ou mulher,
E eu não logro nunca possuir!...

Castrado da alma e sem saber fixar-me,
Tarde a tarde na minha dor me afundo...
Serei um emigrado doutro mundo
Que nem na minha dor posso encontrar-me?...

* * * * *

Como eu desejo a que ali vai na rua,
Tão ágil, tão agreste, tão de amor...
Como eu quisera emaranhar-lha nua,
Beber-la em espasmos de harmonia e cor!...

Desejo errado... Se a tivera um dia,
Toda sem véus, a carne estilizada
Sob o meu corpo arfando transbordando,
Nem mesmo assim ó ânsia! eu a teria...

Eu vibraria só agonizante
Sobre o seu corpo de êxtases dourados,
Se fosse aqueles seios transtornados,
Se fosse aquele sexo aglutinante...

De embate ao meu amor todo me roo,
E vejo-me em destroço até vencendo:
É que eu teria só, sentindo e sendo
Aquilo que estrebucho e não possuo.

X

Intono

ALEM-TEDIO

Nada me expira já, nada me vive
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca as vir a ter,
Fartam-me até as coisas que não tive.

Como eu quisera, em fim de alma esquecida,
Dormir em paz num leito de hospital...
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.

Outrora imaginei escalar os céus
Á força de ambição e nostalgia,
E doente de Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulgor que me ardia.

Parti. Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu... Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A própria maravilha tinha cor!

Ecoando-me em silencio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tédio.

E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoaçam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios...

XI concentis


RODOPIO

Volteiam dentro de mim,
Em rodopio, em novelos,
Milagres, uivos, castelos,
Forcas de luz, pesadelos,

Altas torres de marfim.
Ascendem hélices, rastros...
Mais longe coam-me sóis;
Há promontórios, faróis,

Erguem-se estatuas de heróis,
Ondeiam lanças e mastros.
Zebram-se armadas de cor,
Singram cortejos de luz,

Ruem-se braços de cruz,
E um espelho reproduz,
Em treva, todo o esplendor...
Cristais retinem de medo,

Precipitam-se estilhaços,
Chovem garras, manchas, laços...
Planos, quebras e espaços
Vertigem em segredo.

Luas de oiro se embebedam,
Rainhas desfolham lírios;
Contorcionam-se círios,
Enclavinham-se delírios.

Listas de som enveredam...
Virgulam-se aspas em vozes,
Letras de fogo e punhais;
Há missas e bacanais,

Execuções capitais,
Regressos, apoteoses.
Silvam madeixas ondeantes,
Pungem lábios esmagados,

Há corpos emaranhados,
Seios mordidos, golfadas,
Sexos mortos de ansiardes...
(Há incenso de esponsais,

Há mãos brancas e sagradas,
Há velhas cartas rasgadas,
Há pobres coisas guardadas
Um lenço, fitas, dedais...)

Há elmos, troféus, mortalhas,
Emanações fugidias,
Referencias, nostalgias,
Ruínas de melodias,

Vertigens, erros e falhas.
Há vislumbres de não ser,
Rangem, de vago, neblinas;
Furam-se poços e minas,

Meandros, pauis, ravinas
Que não ouso percorrer...
Há vácuos, há bolhas de ar,
Perfumes de longes ilhas,

Amarras, lemes e quilhas
Tantas, tantas maravilhas
Que se não podem sonhar!...

XII allegro_spirito


A QUEDA

E eu que sou o rei de toda esta incoerência,
Eu próprio turbilhão, anseio por a fixar
E giro até partir... Mas tudo me resvala
Em bruma e sonolência.

Se acaso em minhas mãos fica um pedaço de ouro,
Volve-se logo falso... ao longe o arremesso...
Eu morro de desdém em frente dum tesouro,
Morro à mingua, de excesso.

Alteio-me na cor à força de quebranto,
Estendo os braços da alma e nem um espasmo venço!...
Peneiro-me na sombra em nada me condenso...
Agonias de luz eu vibro ainda em tanto.

Não me pude vencer, mas posso-me esmagar,
Vencer ás vezes é o mesmo que tombar.
E como ainda sou luz, num grande retrocesso,
Em raivas ideais, ascendo até ao fim:

Olho do alto o gelo, ao gelo me arremesso...
. . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . .
Tombei...
E fico só esmagado sobre mim!...

Sem comentários: