Livro Primeiro
I
Panteísmo
I
Aspiração… desejo aberto todo
Numa ânsia insofrida e misteriosa…
A isto chamo eu vida: e, deste modo,
Que mais importa a forma? silenciosa
Uma mesma alma aspira à luz e ao espaço
Em homem igualmente e astro e rosa!
A própria fera, cujo incerto passo
Lá vaga nos algares da deves a,
Por certo entrevê Deus – seu olho baço
Foi feito para ver brilho e beleza…
E se ruge, é que a agita surdamente
Tua alma turva, ó grande natureza!
Sim, no rugido há uma vida ardente,
Uma energia íntima, tão santa
Como a que faz trinar a ave inocente…
Há um desejo intenso, que levanta
Ao mesmo tempo o coração ferido,
E o ingénuo cantor que nos encanta…
Impulso universal! forte e divino,
Aonde quer que irrompa! é belo e augusto,
Quer se equilibre em paz no mundo hino
Dos astros imortais, quer no robusto
Seio do mar tumultuando brade,
Com um furor que se domina a custo;
Quer durma na fatal obscuridade
Da massa inerte, quer na mente humana
Sereno ascenda à luz da liberdade…
É sempre a eterna vida, que dimana
Do centro universal, do foco intenso,
Que ora brilha sem véus, ora se empana…
E sempre o eterno gérmen, que suspenso
No oceano do Ser, em turbilhões
De ardor e luz, evolve, ínfimo e imenso!
Através de mil formas, mil visões,
O universo espírito palpita
Subindo na espiral das criações!
Ó formas! vidas! misteriosa escrita
Do poema indecifrável que na Terra
Faz de sombras e luz a Alma infinita!
Surgi, por céu, por mar, por vale e serra!
Rolei, ondas sem praia, confundido
A paz eterna com a eterna guerra!
Rasgando o seio imenso, ide saindo
Do fundo tenebroso do Possível
Onde as formas do Ser se estão fundido…
Abre teu cálix, rosa imarcescível!
Rocha, deixa banhar-te a onda clara!
Ergue tu, águia, o voo inacessível!
Ide! crescei sem medo! não é avara
A alma eterna que em vós anda e palpita…
Onda, que vai e vem e nunca pára
Em toda a forma o Espírito se agita!
O imóvel é um deus, que está sonhando
Com não sei que visão vaga, infinita…
Semeador de mundos, vai andando
E a cada passo uma seara basta
De vidas sob os pés lhe vem brotando!
Essência tenebrosa e pura… casta
E todavia ardente… eterno alento!
Teu sopro é que fecundo a esfera vasta…
Choras na voz do mar… cantar no vento…
II
Porque o vento, sabei-o, é pregador
Que através das solidões vai missionando
A eterna Lei do universal Amor.
Ouve-o rugir por essas praias, quando,
Feito tufão, se atira das montanhas,
Como um negro Titã, e vem bradando…
Que imensa voz! que prédica estranha!
E como treme com terrível vida
A asa que o libra em extensões tamanhas!
Ah! quando em pé no monte, e a face erguida
Para a banda do mar, escuto o vento
Que passa sobre mim a toda a brida,
Como o entendo então! e como atento
Lhe escuto o largo canto! e, sob o canto,
Que profundo e sublime pensamento!
Eis o Ancião-dos-dias! eis-lo, o Santo,
Que já na solidão passava orando,
Quando inda o mundo era negrume e espanto!
Quando as formas o obre tenteando
Mal se sustinha e, incerto, se inclinava
Para o lado do Abismo, vacilando;
Quando a Força, indecisa, se enroscava
Às espirais do Caos, longamente,
Da confusão primeira ainda escrava:
Já ele era então livre!e rijamente
Sacudia o Universo, que acordasse…
Já dominava o espaço, omnipotente!
Ele viu o Princípio. A quanto nasce
Sabe o segredo, o gérmen misterioso.
Encarou o Inconsciente face a face,
Quando a Luz fecundou o Tenebroso.
III
Fecundou!… Se eu nas mãos tomo um punhado
Da poeira do chão, da triste areia,
E interrogo os arcanos do seu fado,
O pó cresce ante mim… engrossa… alteia…
E, com pasmo, nas mãos vejo que tenho
Um espírito! o pó tornou-se ideia!
Ó profunda visão! mistério estranho!
Há quem habite ali, e mudo e quedo
Invisível está… sendo tamanho!
Espera a hora de surgir sem medo,
Quando o deus encoberto se revele
Com a palavra do imortal segredo!
Surgir! surgir! – é a ânsia que os impele
A quantos vão na estrada do infinito
Erguendo a pasmadíssima Babel!
Surgir! ser astro e flor! onda e Granito!
Luz e sombra! atracção e pensamento!
Um mesmo nome em tudo está escrito -
……………………………………………………………
Eis quanto me ensinou a voz do vento.
II
À História
I
……………………………………………………………………..
Mas o homem, se é certo que o conduz,
Por entre as cessações do seu destino,
Não sei que mão feita d’amor e luz
Lá para as bandas dum porvir divino…
Se, desde Prometeu até Jesus,
O fazem ir – estranho peregrino,
O Homem, tenteando a grossa treva,
Vai… mas ignora sempre quem o leva!
Ele não sabe o nome de seus Fados,
Nem vê de frente a face do seu guia,
Onde o levam os deuses indignados?…
Isto só lhe escurece a luz do dia!
Por isso verga ao peso dos cuidados;
Duvida e cai, lutando em agonia:
E, se lhe é dado que suplique e adore,
Também é justo que blasfeme e chore!
Já que vamos, é bom saber aonde…
O grão de pó, que o imole levanta,
E leva pelo ar e envolve e esconde,
Também, no turbilhão, se agita e espanta!
Também pergunta aonde vai e donde
O traz a tempestade que o quebranta…
E o homem, bago d’água pequenino,
Também tem voz na onda do destino!
Porque os eivos, rolando; nos lançaram
Sobre a praia dos tempos, esquecidos,
E, náufragos duma hora, nos deixaram
Postos ao ar, sem tecto e sem vestidos.
Estamos. Mas que ventos nos deitaram
E com que fim, aqui, meio partidos,
Se um Acaso, se Lei nos céus escrita…
Eis o que a mente humana em vão agita!
Ó areias da praia, ó rochas duras,
Que também prisioneiros aqui estais!
Entendeis vós acaso estas escuras
Razões da sorte, surda a nossos ais?
Sabes lá tu, ó mar, que te torturas
No teu cárcere imenso? e, águas, que andais
Em volta aos sorvedouros que vos somem,
Sabeis vós o que faz aqui o Homem?
Fronte que banha a luz – e olhar que fita
Quanta beleza a imensidão rodeia!
Da geração dos seres infinita
Mais pura forma e mais perfeita ideia!
No vasto seio um mundo se agita…
E um sol, um firmamento se incendeia
Quando, ao clarão da alma, em movimento
Volve os astros do céu do pensamento!
E, entretanto, ó largo mundo, que domina
Seu espírito imenso! ele é mesquinho
Mais que a ave desvalida e pequenina,
A que o vento desfez o estreito ninho!
Quanto mais vê da esfera cristalina
Mais deseja, mais sente o agudo espinho…
E o círculo de luz da alma pura
É um cárcere, apenas, de tortura!
Um sonho gigantesco de beleza
E uma ânsia de ventura o faz na vida
Caminhar, como um ébrio, na incerteza
Do destino e da Terra-prometida…
Sorri-lhe o céu de cima, e a natureza
Em volta é como amante apetecida -
Ele porém, sombrio entre os abrolhos,
Segue os passos do sonho… e fecho os olhos!
Fecho os olhos… que os passos da visão
Não deixam mais vestígios do que o vento!
Tu, que vais, se te sofre o coração
Virar-te para trás… pára um momento…
Dos desejos, das vidas, nesse chão
Que resta? que espantoso monumento?
Um punhado de cinzas – toda a glória
Do sonho humano que se chama História.-
II
Oh! a História! A Penélope sombria
Que leva as noites desmanchando a teia
Que suas mãos urdiram todo o dia!
O alquimista fatal, que toma a Ideia,
E, nas combinações da atroz magia,
Só extrai Pó! A fúnebre Medeia
Que das flores de luz do coração
Compõe seu negro filtro – a confusão!
Eis do trabalho secular das raças,
Das dores, dos combates, das confianças,
Quanto resta afinal… cinzas escassas!
O tédio sobre o céu das esperanças
Suas nuvens soprou! E ódios, desgraças,
Desesperos, misérias e vinganças,
Eis a bela seara d’ouro erguida
Do chão, onde ilusões semeia a vida!
OS cultos com fragor rolam partidos;
E em seu altar os deuses cambaleiam;
E em seu altar os deuses cambaleiam;
E dos heróis os ossos esquecidos
Nem um palmo, sequer, do chão se ateiam
Na urze seca e a aragem ergue um momento,
E uma hora após são cinza… e leva o vento!
Ó duração de sonhos! fortalezas
De fumo! rochas de ilusão a rodos!
Que é dos santos, dos altos, das grandezas
Que inda há cem anos adorámos todos?
As verdades, as bíblias, as certezas?
Limites, formas, consagrados modos?
O que temos de eterno e sem enganos,
Deus – não pode durar mais que alguns anos!
Tronos, religiões, impérios, usos..
Oh que nuvens de pó alevantadas!
Castelos de nevoeiro tão confusos!
Ondas umas sobre outras conglobadas!
Que longes que não têm estes abusos
Da forma! Tróias em papel pintadas!
Babilónias de névoa, que uma aragem
Roçando, abala e lança na voragem!
Sobre alicerces d’ar as sociedades
Como sobre uma rocha tem assento…
E os cultos, as crenças, as verdades
Ali crescem, lá têm seu fundamento…
Ó grandes torreões, templos, cidades,
Babéis de orgulho e força… sopre o vento
Sobre os pés do gigante que se eleva…
E era d’ar essa base… e o vento a leva!
E o vento a dispersou! Ele é seguro
O Forte da ilusão… mas se a primeira
Rajada o céu mandou, perdas do muro,
Não rolam mais que vós os grãos na eira!
Vê-se então a alma humana, pelo escuro,
No turbilhão que arrasta essa poeira
Ruir também, desfeita e em pó tornada,
Té que se esvai… ’te que a sumiu o nada!
III
E isto no meio do infinito espaço!
Dos sóis! dos mundos! sala de fulgores!
Isto no chão da vida… e a cada passo
Rebentam sob os pés cantos e flores!
Quando abre a Natureza o seus amores!
E tem beijos a noite… e o dia festas,,,
E o mar suspira… e cantam as florestas…
Por cima o céu que ri… e em baixo o pranto.
Harmonias em volta… e dentro a guerra…
Dentro do peito humano, o templo santo,
O vivo altar onde comungue a terra!
Vede! habita no altar o horror e o espanto,
E a Arca-de-amor só podridão encerra!
Que espantosa ilusão, que desatino,
Ó luz do céu! é pois este destino?
Os montes não entendem estas coisas!
Estão, de longe, a olhar nossas cidades,
Pasmados com as lutas furiosas
Que os turbilhões, chamados sociedades,
Lhes revolvem aos pés! Vertiginosas
No mar humano as ondas das idades
Passam, rolam bramindo – eles, entanto,
Com o vento erguem ao céu sereno canto!
Às vezes, através das cordilheiras,
Com ruído de gelos despregados,
UM exército passa, e as derradeiras
Notas da guerra ecoam nos valados…
Então há novas vozes nas pedreiras,
E as bocas dos vulcões mal apagados,
De monte em monte, em ecos vagarosos,
Perguntam – onde vão estes furiosos? -
Sim, montes! onde vamos? onde vamos,
Que a criação, em volta a nós pasmada,
Emudece de espanto, se passamos
Em novelos de pó sobre essa estrada?…
As águias do rochedo, e a flor, e os ramos,
E a noite escura, e as luzes da alvorada,
Perguntam que destinos nos consomem…
E os astros dizem – onde vai o Homem? -
Porque o mundo, tão grande, é um infante
Que adormece entre cantos noite e dia,
Embalado no éter radiante,
Todo em sonhos de luz e de harmonia!
O forte Mar (e mais é um gigante)
Também tem paz e coros de alegria…
E o céu, com ser imenso, é serenado
Como um seio de herói, vasto e pausado.
Quando de grande há aí dorme e sossega:
Tudo tem sua lei onde adormece:
Tudo, que pode olhar, os olhos prega
Nalgum Íris d’amor que lhe alvorece…
Só nós somos delírio e confusão,
Só temos por nome Turbilhão!
Turbilhão – de Desejos insofridos,
Que o sopro do Impossível precipita!
Turbilhão – de Ideais, lumes erguidos
Em frágil lenho, que onda eterna agita!
Turbilhão – de Nações, heróis feridos
Em tragédia enredada e infinita!
Tropel de Reis sem fé, que se espedaça!
Tropel de deuses vãos, que o nada abraça!
Há nisto quanto baste para morte…
Para fechar os olhos sobre a vida
Eternamente, abandonando à sorte
A palma da vitória dolorida!
Há quanto baste por já se corte
A amarra do destino, enfim partida,
Com um grito de dor, que leve o vento
Onde quiser – a morte e o esquecimento!
IV
Mas que alma é a tua então, Homem, se ainda
Podes dormir o sonho da esperança,
Teu leito te sacode e te balança?
Que fada amiga, que visão tão linda
Te enlaça e prende na dourada trança,
Que não ouves, não vês o negro bando
Dos lobos em redor de ti uivando?
E persistes na vida… e a vida ingrata
Foge a teus braços trémulos de amante!
E abençoas a Deus… Deus que te mata
Tua esperança e luz, a cada instante!
Que tesouro de fé (que ouro nem prata
Não podem igualar, nem diamante)
É teu peito. que doura as negras lousas…
E crês no céu… e amá-lo ainda ousas?
Passam às vezes umas luzes vagas
No meio desta noite tenebrosa…
Na longa praia, entre o rugir das vagas,
Transparece uma forma luminosa…
A alma inclina-se, então, por sobre as fragas,
A espreitar essa aurora duvidosa…
Se é dum mundo melhor a profecia,
Ou apenas das ondas a ardentia.
Sai do cadinho horrível das torturas,
Onde se estorce e luta a alma humana,
Uma voz que atravessa essas alturas
Com voo d’águia e força soberana!
O que há-de der? que verbo de amarguras?
Que blasfémia a essa sorte desumana?
Que grito d’ódio e sede de vingança?…
Uma benção a Deus! uma esperança!
Rasga d’entre os tormentos a esperança…
Dos corações partidos nasce um lírio…
Ó vitória do Amor, da confiança,
Sobre a Dor, que se torce em seu delírio!…
A mente do homem, essa, não se cansa…
Sob o açoute, no circo, no martírio…
E o escravo, sem pão, lar nem cidade,
Cré… sonha um culto, um Deus – a Liberdade!
Flor com sangue regada… e linda e pura!
Olho de cego… que adivinha a aurora!
Oh! mistério do amor! que à formosura
Exceda muito o feio… quando chora!
Vede, ó astros do céu, o que a tortura
Espreme da alma triste, em cada hora…
O Ideal – que em peito escuro medras,
Bem como a flor do musgo sobre a pedra!
Por que se sofre é que se espera… tanto
Que as dores são os nossos diademas.
O olhar do homem que suplica é santo
Mais que os lumes do céu, divinas gemas.
Desgraças o que são? o que é o pranto?
Se a flor da Fé nas solidões extremas
Brotar, e a crença bafejar a vida…
É nossa, é nossa a Terra-prometida!
V
Ó Ideal! se é certo o que nos dizem,
Que é para ti que vamos, neste escuro…
Se os que lutam e choram e maldizem
Hás-de inda abençoar-te no futuro…
Se há-de o mal renegar-te, e se desdizem
Ainda os Fados seu tremendo auguro…
E um dia havemos ver, cheios d’espanto,
Deus descobrir-se deste negro manto…
Se o Destino impassível há-de, uma hora,
Descruzar os seus braços sobre o mundo,
E a sua mão rasgar os véus da aurora,
Que, enfim, luza também no nosso fundo…
Se há-de secar seu pranto o olhar que chora,
E exultar inda o insecto mais imundo,
Mostrando o céu, à luz d’estranho dia,
As constelações novas da Harmonia…
Ah! que se espera então? O sangue corre,
Corre em ribeiras sobre a terra dura…
Não há já fonte, nesse chão, que jorre
Senão lágrimas, dor, e desventura…
O último lírio, a fé, secou-se… morre!…
Se não é esta a hora da ventura…
O resgate final dos padecentes,
Por que esperais então, céus inclementes?
Sim! por que é que é que esperais? Tem-se sofrido,
Temos sofrido muito, muito! e agora
Desceu o fel ao coração descrido,
Vem já bem perto nossa extrema hora…
Abale-se o universo comovido!
Deixe o céu radiar a nova aurora!
Que os peitos soltem o seu longo enfim!
E o olhar de Deus na terra escreva. Fim!
Fim desta provação, fim do tormento,
Mas da verdade, mas do bem , começo!
Erga-se o homem, atirando ao vento
O antigo Mal, com trágico arremesso!
Na nossa tenda tome Deus assento,
Mostre seus cofres, seus corais de preço,
Que se veja afinal quando guardava
Para o resgate desta raça escrava!
Escrava? escrava que já parte os ferros!
Eu creio no destino das nações:
Não se fez para dor; para desterro,
Esta ânsia que nos ergue os corações!
hão-de ter fim um dia tantos erros!
E do ninho das velhas ilusões
Ver-se-á, com pasmo, erguer-se à imensidade
a águia esplêndida e augusta da Verdade!
VI
Se um dia chegaremos, nós, sedentos,
A essa praia do eterno mar-oceano,
Onde lavem seu corpo os postulantes,
E farte a sede, enfim, o peito humano?
Oh! diz-me o coração que estes tormentos
Chegarão a acabar: e o nosso engano,
Desfeito como nuvem que desanda,
Deixará ver o´céu de banda a banda!
Felizes os que choram! alguma hora
Seus prantos secarão sobre seus rostos!
Virá do céu, em meio duma aurora,
Uma águia que lhes leve os seus desgostos!
Há-de alegrar-se, então, o olhar que chora…
E os pés de ferro dos tiranos, postos
Na terra, como torres, e firmamentos,
Se verão, como palhas, levantados!
Os tiranos sem conta – velhos cultos,
Espectros que nos gelam com o abraço…
E mais renascem quanto mais sepultos...
E mais ardentes no maior cansaço…
Visões d’antigos sonhos, cujos vultos
Nos oprimem ainda o peito lasso…
Da terra e céu bandidos orgulhosos,
Os Reis sem fé e os Deuses enganosos!
O mal só deles vem – não vem do Homem.
Vem dos tristes enganos, e não vem
Da alma, que eles invadem e consomem,
Despedaçando-a pelo mundo além!
Mas que os desfaça o raio, mas que os tomem
As auroras, um dia, e logo o Bem,
Que encobria essa sombra movediça,
Surgirá, como um astro de Justiça!
E, se cuidas que os vultos levantados
Pela ilusão antiga, em desabando,
Hás-de deixar os céus despovoados
E o mundo entre ruínas vacilando;
Esforço! ergue teus olhos magoados!
Verás que o horizonte, em se rasgando,
É por que um céu maior nos mostre – e é nosso
Esse céu e esse espaço! é tudo nosso!
É nosso quando há belo! A Natureza,
Desde aonde atirou seu cacho a palma,
‘Te lá onde escondidos na frieza
Vegeta o musgo e se fecha da beleza
A abóbada sem fim - ‘té onde a calma
Eterna gera os mundos e as estrelas,
E em nós o Empíreo das ideias belas!
Templo de crenças ed’amores puros!
Comunhão de verdade! onde não há
Bonzo à porta a estremar fiéis e impuros,
Uns para a luz… e os outros para cá…
Ali parecerão os mais escuros
Brilhantes como a face de Jeová,
Comungando no altar do coração
No mesmo amor de pai e amor d’Irmão!
Amor d’Irmão! oh! este amor é doce
Como ambrósia e como um beijo casto!
Orvalho santo, que chovido fosse,
E o lírio absorve como etéreo pasto!…
Dilúvio suave, que nos toma posse
Da vida e tudo, e que nos faz tão vasto
O coração minguado… que admira
Os sons que solta esta celeste lira!
Só ele pode a ara sacrossanta
Erguer, e um templo eterno para todos…
Sim, um eterno templo e ara santa,
Mas com mil cultos, mil diversos modos!
Mil são os frutos, e é só uma a planta!
Um coração, e mil desejos doudos!
Mas dá lugar a todos a Cidade,
Assente sobre a rocha da igualdade.
É desse amor que eu falo! e dele espero
O doce orvalho com que vá surgindo
O triste lírio, que este solo austero
Está entre urze e abrolhos encobrindo.
Dele o resgate só ser´s sincero…
Dele! do Amor!… enquanto vais abrindo,
Sobre o ninho onde choca a Unidade,
As tuas asas d’águia, ó Liberdade!
III
A Ideia
I
Pois que os deuses antigos e os antigos
Divinos sonhos por esse ar se somem…
E à luz do altar-da-fé, em Templo ou Dólmen,
A apagaram os ventos inimigos…
Pois que o Sinai se enubla, e os seus pascidos,
Secos à mingua d’água, se consomem…
E os profetas d’outrora todos dormem,
Esquecidos, em terra sem abrigo…
Pois que o céu se fechou, e já não desce
Na escada de Jacob (na de Jesus!)
Um só anjo que aceite a nossa prece…
É que o lírio da Fé já não renasce:
Deus tapou com a mão a sua luz,
E ante os homens velou a sua face!
II
Pálido Cristo, ó condutor divino!
A custo agora a tua mão tão doce
Incerta nos conduz, como se fosse
Teu grande coração perdendo o tino…
A palavra sagrada do destino
Na boca dos oráculos secou-se
E a luz da sarça-ardente dissipou-se
Ante os olhos do vago peregrino!
Ante os olhos dos homens – porque o mundo
Desprendido rolou das mãos de deus,
Como uma cruz das mãos de um moribundo!
Porque já não lê Seu nome escrito
Entre os astros – e os astros, como ateus,
Já não querem mais lei que o infinito!
III
Força é pois ir buscar outro caminho!
Lançar o arco de outra nova ponte
Por onde a alma passe – e um alto monte
Aonde se abre à luz o nosso ninho.
Se nos negam aqui o pão e vinho,
Avante! é largo, imenso esse horizonte…
Não, não se fecha o mundo! e além, defronte,
E em toda a parte, há luz, vida e carinho!
Avante! os mortos ficarão sepultos…
Mas os vivos que sigam – sacudindo,
Como pó da estrada, os velhos cultos!
Doce e brando era o seio de Jesus…
Que importa? havemos de passar, seguindo,
Se além do seio dele houver mais luz!
IV
Conquista pois sozinho o teu Futuro
Já que os celestes guias te hão deixado,
Sobre uma terra ignota abandonado,
Homem – proscrito rei – mendigo escuro -
Se não tens que esperar do céu (tão puro
Mas tão cruel!) e o coração magoado
Sentes já de ilusões desenganado,
Das ilusões do antigo amor perjuro;
Ergue-te, então, na majestade estóica
De uma vontade solitária e altiva,
Num esforço supremo de alma heróica!
Fazei um templo dos muros da cadeia…
Prendendo a imensidade eterna e viva
Na círculo de luz da tua Ideia!
V
Mas a Ideia quem é? quem foi que a viu
Jamais, a essa encoberta peregrina?
Quem lhe beijou a sua mão divina?
Com seu olhar de amor quem se vestiu?
Pálida imagem que a água de algum rio,
Reflectindo, levou… incerta e fina
Luz que mal bruxuleia pequenina…
Nuvem que trouxe o ar… e o ar sumiu…
Estendei, estendei-lhe os vossos braços,
Magros da febre de um sonhar profundo,
Vós todos que a seguis nesses espaços!
E, entanto, ó alma triste, alma chorosa,
Tu não tens outra amante em todo o mundo
Mais que essa fria virgem desdenhosa!
VI
Outra amante não há! não há na vida
Sombra a cobrir melhor nossa cabeça…
Nem bálsamo mais doce que adormeça
Em nós a antiga, a secular ferida!
Quer fuja esquiva, ou se ofereça erguida
Como quem sabe amar e amar confessa..
Quer nas nuvens se esconda ou apareça,
Será sempre ela a esposa-prometida!
Nossos desejos para ti, ó frio,
Se erguem bem como os braços do proscrito
Para as bandas da pátria, noite e dia…
Podes fugir… nossa alma, delirante,
Seguir-te-a através do infinito,
Até voltar contigo, triunfante!
VII
Oh! o noivado bárbaro! o noivado
Sublime! aonde os céus, os céus ingentes
Serão leito de amor – tendo pendentes
Os astros por dossel e cortinado!
As bodas do Desejo, embriagado
De ventura, afinal! visões ferventes
De quem nos braços vai de ideais ardentes
Por espaços sem termo arrebatado!
Lá, no seio da eterna claridade,
Aonde Deus à humana voz responde,
É que te havemos abraçar, Verdade!
VIII
Lá! Mas aonde é lá? Aonde? – Espera,
Coração indomado! O céu, que anseia
A alma fiel, o céu, o céu da Ideia,
Em vão o buscas nessa imensa esfera!
O espaço é mudo – a imensidade austera
Debalde noite e dia se incendeia…
Em nenhum astro, em nenhum sol se alteia
A rosa ideal da eterna-primavera!
O Paraíso e o templo da Verdade,
Ó mundos, astros,sóis, constelações!
Nenhum de vós o tem na imensidade…
A Ideia, o sumo Bem, o Verbo, a Essência,
Só se revela aos homens e às nações
No céu incorruptível da Consciência!
IV
Pater
I
Já que os vejo passar assim altivos
E cheios de vanglória, como quem
Ao peito humano deu a luz que tem,
E a nossos corações os lumes vivos;
Já que os vejo, co’a mão que ata e desata,
Entre os homens partir o mundo todo
E todo o céu – e dar a este o lodo,
E àquele o reino de safira e prata;
Dizer a uns – falai! e pôr na boca
Dos outros a mordaça da doutrina;
Dar a estes a espada de aço fina,
E, ao resto, pôr-lhe à cinta a estriba e a roca;
Já que os vejo fazer a noite e o dia
Com o abrir e fechar dos olhos baços;
E pretender que o Sol lhes segue os passos,
E em seus sermões aprende a harmonia;
Dispor do céu como de casa sua,
A que pusessem Deus como porteiro;
E receber com rosto prazenteiro
Este – e àquele deixar-lo ali na rua;
Eu quero perguntar aos Zoroastros
Do pôr-do-sol, vidente do passado,
Que medem, pelo ritmo compassado
De seus passos, o giro aos grandes astros:
Eu quero perguntar aos Sacerdotes,
Que, chamando rebanho a seus irmãos,
E todo o céu debaixo dos capotes:
Quero-os interrogar – porque, em verdade,
Se saiba qual mais vale, se o pau se a cruz?…
Se o sol ao círio deu a sua luz,
Ou deu o círio ao sol a claridade?…
Se a cúpula do Céu teve modelo
Na cúpula da Igreja? e se as estrelas,
Para alcançar licença de ser belas,
Foram pedir a alguém o santo-selo’
Se foi Deus, quando o sol saiu do abismo,
Que à luz do infinito o baptizou;
Ou se algum bispo foi que o sustentou,
Ainda infante, nas fontes do baptismo?
Se há quem tenha na terra monopólio
Do câmbio-livre, que se chama Ideia?
Se a Verdade não vale um grão de areia
Sem que, antes, a baptize o santo-óleo?
Se terá mais comércio co’as estrelas
O velho livro ou o novo coração?
Quem vai mais perto – a forma ou a inspiração
Das grandes coisas e das coisas belas?
Que, nesta confusão, nestas desordens,
Se veja, enfim, bem claro, à luz dos céus,
Se o Messias nasceu entre os Judeus,
OU se, quando nasceu, já tinha ordens?
Sim! que afinal se saiba tudo isto,
E se vejo o caminho aonde vamos.
Ver e saber – para que enfim possamos
Escolher entre o Padre e entre o Cristo.
II
Padre?! Padre… é o Pai – só – que nos cobre,
E a todos com a mão afaga e amima,
E em meio do caminho nos anima,
E vai connosco – o que está sob e sobre.
O que escreve o Evangelho cada dia
Em nossos corações – e em cada hora,
A quando olhar se eleva e mudo adora,
Diz a eterna missa da Harmonia.
O que veste a estola do infinito
Para deitar a grande bênção – Vida -
E reza, lendo em página fugida,
O que em letra de estrelas anda escrito.
É quanto dele fala – o livro oceano,
O salmista das vastas solidões;
Sobre a tela do coro soberano.
Padres, o mar e o céu – apostolando
A terra sempre crente e sempre nova:
Um – que a força da crença lhe renova…
O outro – o que está Deus sempre amostrando.
a aurora é o sursum-corda do Universo;
A luz é oremus, por que é hóstia o Sol;
Quanto abre o olhar aos raios do arre bole
Eis o povo-cristão aí disperso.
Quando as flores, que se abrem, são espelhos…
E a ervilha é berço, e berços os rosais…
Quando são as florestas catedrais…
Eis aí outros tantos Evangelhos!
O cedro na montanha apostoliza;
O vento prega às livres solidões!
As estrelas do céu são orações,
E o amor, no coração, evangeliza!
O Amor! O evangelista soberano!
Para quem não há tarde nem aurora!
O que sobe a prega, a toda a hora,
Ao púlpito-da-fé… o peito humano!
De dois raios de uns olhos bem-amados
É que se faz a cruz que nos converte;
E a palavra, que a crença às almas verte,
Faz-se essa de suspiros abafados.
Esse é o Confessor que absolve – e tem
Sempre o perdão consigo e a paz radiante…
Ou nuns lábios bem trémulos de amante,
Ou nuns olhos bem húmidos de mãe.
Homens olhai – que o seio maternal,
Em se abrindo, é o livro aonde Deus
Escreve, com a luz que vem dos céus,
A eterna Bíblia, a única imortal!
Cada lábio de mãe escreve um salmo
Na fronte do filhinho, em o beijando…
Nem há santo que tenha, radiando,
Uma auréola assim de brilho calmo!
Esses são Padres – porque são os Pais -
Os que do amor nos baptizam na água…
Os que, inclinados sobre a nossa mágoa,
Bebem em nosso peito os nossos ais.
E tudo que tem voz que se ouça ao longe,
E coração tamanho como a esfera:
A voz do inverno e a voz da primavera…
E a voz do peito humano… o grande monge.
Sim, monge! triste e só – porque o devora
A vaga nostalgia do deserto;
E vela a noite, e vai sempre desperto
A olhar de que bando venha a aurora.
Padre… o Espírito! o que anda em nós - o auguro,
Que n’alma traça o círculo divino;
A Ecúmena, que em verso sibilino
Dita aos homens os cantos do futuro.
Vós, Poetas, vós sois também sibilas,
Que adivinhais e andais com voz fremente
Sempre a gritar – avante! avante! à gente,
Por cidades, por montes e por vilas.
Vós sois os pregadores do Ideal,
Que lançais a palavra aos quatro ventos:
A tribo de Levi, que em mil tormentos
Guarda a Arca, dos filhos de Baal.
Sim, Padre! o poeta crente, que levanta,
Como hóstias, as almas para os céus!
O pregador, que fala, enquanto Deus
Lhe arma de coração tribuna santa.
Os que na frente vão, bradando – alerta!
Sentinelas perdidas no futuro…
Os que o clarim do abismo, pelo escuro,
Faz em sonhos tremer, e enfim desperta.
A corte dos pálidos proscritos,
Que tem nos rostos estampados a fome;
Que, enquanto o frio os rói e os consome
Trazem no coração deuses escritos.
Os heróis que, com pulsos algemados,
Vão ao mundo pregado a liberdade -
Astros, a quem se nega a claridade…
Nas trevas dos ergástulos cerrados.
Que – enquanto os pés na terra, em corrupio,
Lhe fogem – impassíveis, firmes, altos,
Meditam, sem temor nem sobressaltos,
Riscando as sociedades no vazio.
Que – enquanto a Lei os tem em fundas covas,
Como traidores, ímpios, embusteiros -
Sobre esse mesmo chão dos cativeiros
Semeiam a seara das leis novas.
Os inventores, que, soltando ais,
Deixam das mãos cair obras gigantes;
E riscam templos sobre os céus distantes…
Assentados à porta de hospitais!
Quem a estes lhes deu suas Missões
Foi o alto Messias – sofrimento -
Por que possam o Verbo, o pensamento,
Abaixar sobre a fronte às multidões.
Foi o Espírito, o fogo incandescente,
Que os baptizou ao lume da Ideia,
Por que possam pegar no grão de areia,
E mudar-lo num astro reluzente…
Que eles fazem milagres – desde o espaço
Galgado já e unificada a terra,
‘Te aos irmãos, há tanto tempo em guerra,
Que, afinal, já se estreitam num abraço:
Desde lepra, dos corpos, e os abrolhos,
Dos montes, arrancados… desde as fleumas
Tiradas ao trovão… ‘te às escamas
Arrancadas aos cegos de seus olhos:
Eles fazem do mundo eucaristia,
Onde vêm ter os povos comunhão:
E, do génio assoprando-lhe o clarão,
Fazem da noite humana imenso dia.
Fazem nascer, por entre espinhos bravos,
Flores, a um lado, e ao outro, frutos;
E os novos risos, dos antigos lutos,
E a liberdade, em corações escravos!
Pois, se são operários do futuro,
Semeadores da seara nova,
Que lançam uma ideia em cada cova,
Da dura história sobre o chão escuro;
Se vão na frente, e a bússola que os leva
Para o pólo de Deus se inclina e pende;
Buscando o continente que se estende
Além do sofrimento e além da treva;
Se a cada voz de guerra dizem – basta!
Lançando-se entre os ferros dos irmãos;
E exclamam – ainda! – pondo as mãos,
A cada voz de amor serena e casta;
São os grandes profetas da consciência,
Bíblias que o povo com a mão folheia;
Reveladores santos da Ideia,
Que, em cada hora, vão furtando à Essência:
São milícia sagrada – são cortes
Do céu, passando aqui – são missionários
Amostrando Jesus aos homens vários…
Ajudam pois a Deus! são sacerdotes!
III
Aí tendes os Padres! que nos cobrem
Nossas fontes do mal, e nos desvendam
Os olhos por que vejam, amém, entendam…
Não os que o sol co’as capas nos encobrem!
A Igreja dera o Inferno ao triste réu
(Que beijo maternal! e que olhar terno!)
Mas Dante, a pé enxuto, passa o Inferno,
Para, chegando à porta, bradar céu!
Desde essa hora… acabou! abriu-se a porta!
Os condenados ruem para fora!
O que era multidão ainda agora…
Tornar-se solidão deserta e morta.
Ainda às vezes os vemos ir na praça…
Mas no lábio morreu-lhes a palavra
O incêndio agora de outra banda lavra…
São como os restos de uma extinta raça.
Quando se ergue a um lado o olhar pasmado
Das gentes, que já cuidam enxergar
Dessa banda do céu Deus assomar…
Eis-de ver-los olhar o oposto lado!
E quando as mães lhes vêm beijar os pés,
Erguendo um filho, como um raio a estrela,
Olhando o inocente e a mãe bela,
Não têm mais bênção do que pulvis es!
E, quando de uma amante, o olhar velado
Se encontra, acaso, com o seu, passando,
Não tem aquele espectro miserando
Melhor saudação do que pecado!
Se o século se atira, como onda,
À praia do futuro, nos espaços,
Cuidais acaso que lhe siga os passos?
Não! o mocho não tem onde se esconde!
IV
Porque, pois, trás da sombra ides correndo,
Homens, que a luz no berço baptizara?
Quando correis assim virais a cara…
Pelas costas o sol vos vem nascendo!
Ó vós! – se ides em busca da Verdade! -
Olhai bem…, que essa mão, que assim vos leva,
Bem pode ser que seja toda treva,
Quando se aclama toda claridade!
V
Quando a sede nos seca o paladar,
E o sol a pino o peito nos esmaga,
Se enfim se chega à praia, junto à vaga,
Quem hesita entre a areia e entre o Mar?
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Deixai-vos a nadar, homens! e vede
Que a onda é a areia, apenas – a verdade
É esse o mar – que o Mar nos mate a sede!
V
Vida
Por que é que combateis? Diz-se-a, ao ver-vos,
Que o Universo acaba aonde chegam
Os muros da cidade, e nem há vida
Além da órbita onde as vossas giram,
E além do Fórum já não há mais mundo!
Tal é o vosso ardor! tão cegos tendes
Os olhos de mirar a própria sombra,
Que diz-se-a, vendo a força, as energias
Da vossa vida toda, acumuladas
Sobre um só ponto, e a ânsia, o ardente vórtice,
Com que girais em torno de vós mesmos,
Que limitais a terra à vossa sombra…
Ou que a sombra vos toma a terra toda!
Diz-se-a que o oceano imenso e fundo e eterno,
Que Deus há dado aos homens, por que banhem
O corpo todo, e nadem à vontade,
E vaguem a sabor, com todo o rumo,
Com todo o norte e vento, vão e percam-se
De vista, no horizonte sem limites…
Diz-se-a que o mar da vida é gota d’água
Escassa, que nas mãos vos há caído,
De avara nuvem que fugiu, largando-a…
Tamanho é o ódio com que a uns e a outros
A disputais, temendo que não chegue!
Homens! para quem passa, arrebatado
Na corrente da vida, nessas águas
Sem limites, sem fundo – há mais perigo
De se afogar, que de morrer à sede!
De que vale disputar o espaço estreito,
Que cobre a sombra da árvore da pátria,
Quando são vossos cinco continentes?
De que vale apinhar-se junto à fonte
Que – fininha – brotou por entre as urzes,
Quando há sete mil ondas por cada homem?
De que vale digladiar por uma fita,
Que mal cobre um botão, quando estendida
Deus pôs sobre a cabeça de seus filhos
A tenda, de ouro e azul, do firmamento?
De que vale concentrar-se a vida toda
Numa paixão apenas, quando o peito
É tão rico, que basta dar-lhe um toque
Por que brotem, aos mil, os sentimentos?!
Oh! a vida é um abismo! mas fecundo!
Mas imenso! tem luz – e luz que cegue,
Ainda a águia de Patmos – e tem sombras
E tem negrumes, como o antigo Caos:
Tem harmonias, Que parecem sonhos
De algum anjo dormindo; e tem horrores
Que os nem sonha o delírio!
E imensa a vida,
Homens! não disputeis um raio escasso
Que vem daquele sol; a ténue nota,
Que vos chega daquelas harmonias;
A penumbra, que escapa àquelas sombras;
O temor, que vos vem desses horrores,
Sol e sombras, horror e harmonias
De quem é isto, se não é do homem?!
Não disputais, curvado o corpo todo,
As migalhas da mesa do banquete:
Erguei-vos! e tomai lugar à mesa…
Que há lugar no banquete para todos:
Que a vida não é átomo tenuíssimo,
Que um feliz apanhou, no ar, voando,
E guardou para si, e os outros, pobres,
Deserdados, invejam – é o ar todo,
Que respiramos; e esse; inda mais livre,
Que nos respira a alma – aterra firme,
Onde pomos os pés, e o céu profundo
Aonde o olhar erguemos – é o imenso,
Que se infiltra do átomo ao colosso;
Que se oculta aqui, e além se mostra;
Que traz a luz dourada, e leva a treva;
Que dá raiva às paixões, e unge os seios
Com o bálsamo do amor; que ao vício, ao crime,
Agita, impele, anima, e que à virtude
Lá dá consolações – que beija as frontes
Do povo e rei, de nobre e de mendigo;
E embala a flor, e leva as grandes vagas;
Que tem lugar, no seio, para todos;
Que está no rir, e está também nas lágrimas,
E está na bacanal como na prece!…
Eis a Vida! o festim que Deus, no mundo,
Para os homens armou! para seus filhos!
Forma mais pura do Universo augusto!
Da lira universal nota mais alta!
Do chão do infinito seara ardente!
Quando os orbes de luz, que andam na altura,
Sentem a face, às vezes, enublar-se
E o seio lhes revolve íntima mágoa,
É que nessa hora uma ânsia de venturas,
De amor mais vasto, de mais bela forma,
Uma aspiração vaga os acomete…
Podem a Deus que estenda a mão piedosa
E os erga à luz maior, à luz do espírito,
E tem inveja ao homem, porque vive!
Da árvore do Eterno pendem frutos,
E frutos aos milhões – estrelas, astros,
Formas e criações que nem se sonham -
Mas só onde seus ramos se mergulham
no espírito vital do infinito,
Só onde o ar puríssimo do Belo
Lhe beija as franzas últimas – somente
Lá se abre o lírio augusto, o lírio único,
A flor dos mundos, que se chama Vida!
Inundação de crenças… e dilúvio
De dúvidas fatais! hino de glórias…
E rugido feroz! Se és fera, toma
A parte dos rugidos – e, se és homem,
Ergue ao céu tua face, e entoa os hinos!
Se há valor em teu peito, corta as águas,
Nadando, desse mar de infindas dúvidas:
Ergue-te, luta, arqueja, precipita-te,
Deixa as ondas lavar-te o corpo, ou dar-te
A pancada da morte – mas sê homem!
Sê grande sempre! e, ou Satã ou Anjo,
Blasfema ou exulta… mas não desças nunca!
Porque descer é morte, é sombra, é nada!
É a pedra que dorme: é lodo escuro
Que sombrio fermenta! A alma, se é espírito,
É por que à farta possa encher, crescendo,
O espaço todo e todo o ar infindo!
E, bela ou triste, horrível ou sublime,
Santa ou maldita, a vida é sempre grande!
Rocha por onde os tempos vão seguindo
No caminho que os leva ao infinito…
É tão vasta, que os séculos marchando
Com passos de gigante, há milhões de anos,
Não puderam ainda ver-lhe o termo,
Não puderam gastar-la um pouco, apenas!
É tão fundo esse mar, é tão fecundo,
Que os homens todos, que há milhões de séculos
Nascem da espuma e vêm encher as praias,
Bebendo a longos tragos, não puderam
Fazer-lo inda baixar, sequer um palmo!
…………………………………………………………..
E não vos chega para vós? Os tempos
Deixaram cheia aquela taça imensa…
E estes três homens já lhe vêem o fundo!
As ideias serenas e os combates
Da eterna liberdade; o amor e as lutas
E as dores da verdade; as doces lágrimas
E os rugidos altivos; o que os sábios
Nos ensinam, e quando o olhar ingénuo
Da mulher nos revela – Tudo, tudo,
Tudo isto, nos banquetes da existência,
É um bocado apenas para a boca
Destes Titãs imensos… de seis palmos!
…………………………………………………………..
Porque é que combateis? O mundo é vasto!
Dá para todos – todos, no seu pano,
Podem talhar à farta e à larga um manto
Com que cobrir-se… e que inda arraste… É vasto,
Erguei somente os olhos! alongai-os
Pelo horizonte! e, além desse horizonte,
Há mil e mil como este!
Se vós tendes
O olhar fito nos pés, aonde a sombra
Em volta de vós mesmos gira apenas,
O que podeis saber desse Universo?!
Não há olhos que contem tantos orbes!
E cada um desses mundos tem mil vidas!
E cada vida tem milhões de afectos,
De paixão, de energias, de afectos,
De paixões, de energias, de desejos!
Cada peito é um céu de mil estrelas!
Cada ser tem mil seres! mil instantes!
E, em cada instante, as criações transformam-se!
E coisas novas a nascerem sempre!
Descei, descei o olhar ao próprio seio!
Como num espelho, esse Universo todo
Reflecte-se lá dentro! é como um caos
Donde, ao fiat ardente da vontade,
Podem surgir as criações aos centos.
Podeis tirar dai a luz e atreva!
Podeis tirar o bem, e o mal, e o justo,
E o iníquo, e as paixões trovas da terra,
E os desejos do céu!
Pois não vos chega?
Assim queirais viver, que há muita vida!
……………………………………………………………….
Alexandre! Alexandre! és tu que choras
Não haver já mais mondo que conquistes…
E sais daqui, ó triste! sem ao menos
Ter olhado uma vez dentro em tua alma!
Alexandres inglórios! toda a terra
Acabou, onde a vista vos alcança!
Correis… correis… correis atrás de um átomo…
E ides deixando, ao lado, os universos!
…………………………………………………………..
Mas vós não vedes nada disto! nada!
E quereis aos homens ensinar a vida?!
VI
Diálogo
A cruz dizia à terra onde assentava,
Ao vale obscuro, ao monte áspero e mudo:
- Que és tu, abismo e jaula, aonde tudo
Vive na dor, e em luta cega e brava?
Sempre em trabalho, condenada escrava,
Que fazes tu de grande e bom, contudo?
Resignada, és só lodo informe e rude;
Revoltosa, és só fogo e hórrida lava…
Mas a mim não há alta e livre serra
Que me possa igualar!… amor, firmeza,
Sou eu só: sou a paz, tu és a guerra!
Sou o espírito, a Luz!… tu és tristeza,
Ó lodo escuro e vil! – Porém a terra
Respondeu: Cruz, eu sou a natureza!
VII
Luz do sol, Luz da razão
Tu, sol, é que me alegras!
A mim e ao mundo. A mim…
Que eu não sou mais que o mundo,
Nem mais que o céu sem fim…
Nem fecho os olhos baços
Só porque os fere a luz…
Ergo-os acima – e embora
Cegue, recebo-a a flux!
Crepúsculos são sonhos…
E sonhos é morrer…
Sonhar é para a noite:
Mas para o dia, ver!
Sim, ver com os olhos ambos,
Com ambos devassar
Os astros nessa altura,
E os deuses sobre o altar!
Ver onde os pés firmamos,
E erguermos nossas mãos!
E quer nos montes altos,
Quer nos terrenos chãos,
É sempre amiga a terra
E é sempre bom viver,
Se a terra à luz da aurora
E a vida ao amor se erguer!
Em toda a parte as ondas
Desse infinito mar,
Por mais que andemos longe,
Nos podemos embalar!
Em toda a parte o peito
Sente brotar a flux,
E sempre e à farta, a vida…
Vida – calor e luz!
Nos seixos dessas praias,
Se o sol lá lhes bater,
Num átomo de areia, Deus pode aparecer!
Bate-lhe o sol de chapa,
E um deus se vê também
No pó, tornado um astro
Como esses que o céu tem!
Desprezos para a terra?!
Também a terra é céu!
Também no céu a impele
O amor que a suspendeu…
E quem lá desse espaço
Brilhar ao longe a vir
Dirá que é paraíso
E um éden a sorrir!
Em baixo! o que é em baixo?
Em baixo estar que tem?
Ninguém à eterna sombra
Nos condenou! ninguém!
Se até nos surdos antros,
Nas covas dos chacais,
penetra o sol, vestindo-os
Com raios triunfais!
Se ao céu até se viram
As bocas dos vulcões…
E têm os próprios cegos
Um céu… nos corações!
Não! não há céu e inferno:
Divino é quanto é!
Para que a rocha brilhe,
Basta que o sol lhe dê…
Basta que o sol lhe beije
As chagas que ele tem,
E a morte dessa altura,
A lua, é sol também!
E as trevas da nossa alma,
A nossa cessação,
Oh! como as desbarata
A aurora da razão!
Mas se a razão, surgindo,
Nossa alma esclareceu,
Também tu, sol, no espaço
Surges, razão do céu…
Por isso é que me alegras,
Ó luz, o coração!
Por isso vos estimo…
Tu, sol, e tu, razão!
VIII
Et coelum Et virtus
Dizem profetas, que esse céu perscrutam,
Que, às noites, entre as trevas condensadas,
Se tem visto brilhar ígneas espadas,
Como d’anjos hostis que entre si lutam…
E dizem que, na orla do infinito,
Entre os astros, se vê errar sem tino
Um espectro que traz fulgor divino,
Como o vulto dum deus triste e proscrito…
Entre os sóis passa o espectro gemebundo,
Murmurando morramos! aos sóis vivos,
E empena o brilho aos astros primitivos
De sua boca o alento moribundo…
Onde passou fez-se silêncio e escuro.
Seu manto sepulcral varre os espaços,
E arrasta, entre os celestes estilhaços,
A crença antiga! ó velho firmamento!
Como as almas vacilam e baqueiam!
E as lúcidas plêiades volteiam,
Como a poeira que levanta o vento!
…………………………………………………………
………………………………………………………..
Mas quando o largo céu da crença avita
Desaba com fragor e espanto e treva,
E a luz, a paz, a fé, tudo nos leva
Nas ruínas da abóbada infinita;
Quando um sopro fatal nos deuses vivos
Toca e em cinzas desfaz seus frios vultos,
E se ergue aquela voz cheia de insultos
Que brada aos deuses pálidos: «sumi-vos!»
Homens de pouca fé! não tenhais susto.
Fecunda é essa treva e essa ruína…
Palpita nesse pó vida divina…
Rebentam fontes do real arbusto…
Sim, podeis crer, ó gente pouco alma:
Não se aluiu no abismo este universo,
Se entre as cinzas de Deus e o pó disperso
Ficou de pé, heróico e firme, uma alma!
Quem bem souber olhar verá no fundo
Dessa alma forte outro infinito erguer-se…
Em espaços ideais verá mover-se
Um Deus sem nome, ignoto ao velho mundo…
Verá, do interno caos, constelada,
Surgir criação nova e palpitante,
Ao sopro ardente, à voz, clara e vibrante
Do espírito de vida que ali brada…
Verá, por um céu novo, novos, novos sóis
Que em novo firmamento o voo desprendem;
E astros de luz estranha, que se acendem
Na consciência estrelada dos heróis!
IX
Tenteada via
I
Com que passo tremente se caminha
Em busca dos destinos encobertos!
Como se estão volvendo olhos incertos!
Como esta geração marcha sozinha!
Fechado, em volta, o céu! o mar, escuro!
A noite, longa! o dia, duvidoso!
Vai o giro dos céus bem vagaroso…
Vem longe ainda a praia do futuro…
É grande incerteza, que se estende
Sobre os destinos dum porvir, que é treva…
E o escuro terror de quem nos leva…
O fruto horrível que das almas pende!
A tristeza do tempo! o espectro mudo
Que pela mão conduz,,, não sei aonde!
- Quando pode sorrir, tudo se esconde…
Quando pode sorrir, tudo se esconde…
Quando pode pungir, mostra-se tudo. -
Não é a grande luta, braço a braço
No chão da Pátria, à clara luz da História…
Nem o gládio de César, nem a glória…
É um misto de pavor e de cansaço!
Não é a luta dos trezentos bravos,
Que o solo amado beijam quando caem…
Crentes que traz um Deus, e à guerra saem,
Por dormir no leito dos escravos…
É a luta sem glória! é ser vencido
Por uma oculta, súbita fraqueza!
Um desalento, uma íntima tristeza
Que à morte leva… sem se ter vivido!
Não há aí pelejar… não há combate…
Nem há já glória no ficar prostrado -
São os tristes suspiros do Passado
Que se erguem desse chão, por toda a parte…
É a saudade, que nos rói e mina
E gasta, como à pedra a gota d’água…
Depois, a compaixão, a íntima mágoa
De olhar essa tristíssima ruína…
Tristíssimas ruínas! Entristece
E causa dó olhar-las – a vontade
Amolece nas águas da piedade,
E, em meio do lutar, treme e falece.
Cada pedra, que cai dos muros lassos
Do trémulo castelo do passado,
Deixa um peito partido, arruinado,
E um coração aberto em dois pedaço!
II
A estrada da vida anda alastrada
De folhas secas e mirradas flores…
Eu não vejo que os céus sejam maiores,
Mas a alma… essa é que eu vejo mais minguada!
Ah! via dolorosa é esta via!
Onde uma Lei terrível nos domina!
Onde é força marchar pela neblina…
Quem só tem olhos para a luz do dia!
Irmãos! irmãos! amemos! é a hora…
É de noite que os tristes se procuram,
E paz e união entre si juram…
Irmãos! irmãos! amemos agora!
E vós, que andais a dores mais afeitos,
Que mais sabeis à via do Calvário
Os desvios do giro solitário,
E tendes, de sofrer, largos os peitos;
Vós, que ledes na noite… vós, profetas…
Que sois os loucos… porque andais na frente…
Que sabeis o segredo da fremente
Palavra que dá fé – ó vós, poetas!
Estendei vossas almas, como mantos
Sobre a cabeça deles… e do peito
Fazei-lhes um degrau, onde com jeito
Possam subir a ver os astros santos…
Levai-os vós à pátria-misteriosa,
Os que perdidos vão com passo incerto!
Sede vós a coluna do deserto!
Mostrai-lhes vós a Via-dolorosa!
III
Sim! que é preciso caminhar avante!
Andar! passar por cima dos soluços!
Como quem numa mina vai de bruços,
Olhar apenas uma luz distante!
É preciso passar sobre ruínas,
Como quem vai pisando um chão de flores!
Ouvir as maldições, ais e clamores,
Como quem ouve músicas divinas!
Beber, em taça túrgida, o veneno,
Sem contrair o lábio palpitante!
Atravessar os círculos do Dante,
E trazer desse inferno o olhar sereno!
Ter um manto da casta luz das crenças,
Para cobrir as trevas da miséria!
Ter a vara, o condão da fada aérea,
Que em ouro torne estas areias densas!
E, quando, sem temor e sem saudade,
Puderdes, dentre o pó dessa ruína,
Erguer o olhar à cúpula divina,
Eis-de então ver, ao descerrar do escuro,
Bem como o cumprimento de um agouro,
abrir-se, como grandes portas de ouro,
As imensas auroras do Futuro!
X
Mais luz
Amém a noite os magros crapulosos,
E os que sonham com virgens impossíveis,
E os que se inclinam, mudos e impassíveis,
à borda dos abismos silenciosos…
Tu, lua, com teus raios vaporosos,
Cobre-os, tapa-os, e torna-os insensíveis,
Tanto aos vícios cruéis e inextinguíveis,
Como aos longos cuidados dolorosos!
Eu amarei a santa madrugada,
E o meio-dia, em vida refervendo,
E a tarde rumorosa e repousada.
Viva a trabalhe em plena luz. depois,
Seja-me dado ainda ver, morrendo,
O claro sol, amigo dos heróis!
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