segunda-feira, 8 de junho de 2009

António Botto

 

Canções

I
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Suavemente descia;
E eu nos teus braços deitado
Até sonhei que morria.
E via
Goivos e cravos aos molhos;
Um Cristo crucificado;
Nos teus olhos,
Suavidade e frieza;
Damasco roxo, cinzento,
Rendas, veludos puídos,
Perfumes caros entornados,
Rumor de vento em surdina,
Incenso, rezas, brocados;
Penumbra, sinos dobrando;
Velas ardendo;
Guitarras, soluços, pragas,
E eu... devagar morrendo.
O teu rosto moreninho,
Eu achei-o mais formoso,
Mas, sem lágrimas, enxuto;
E o teu corpo delgado,
O teu corpo gracioso,
Estava todo coberto de luto.
Depois, ansiosamente,
Procurei a tua boca,
A tua boca sadia;
Beijámo-nos doidamente...
Era dia!

E os nossos corpos unidos,
Como corpos sem sentidos,
No chão rolaram... e assim ficaram!...

II

Por uma noite de Outono
Lá nessa nave sombria,
Hei-de contigo deitar-me,
Mulher branca e muda e fria!
Hei-de possuir na morte
O teu corpo de marfim,
Mulher que nunca me olhaste,
Que nunca pensaste em mim...
E quando, no fim do mundo,
A trompeta, além, se ouvir,
Apertar-te-hei mais ainda,
Não te deixarei partir!
A tua boca formosa
Será sempre dos meus beijos;
E o teu corpo a minha pátria,
A pátria dos meus desejos.

III


Andava a lua nos céus
Com o seu bando de estrelas.
Na minha alcova,
Ardiam velas,
Em candelabros de bronze.
Pelo chão, em desalinho,
Os veludos pareciam
Ondas de sangue e ondas de vinho.
Ele olhava-me cismado;
E eu,
Placidamente, fumava,
Vendo a lua branca e nua
Que pelos céus caminhava.
Aproximou-se; e em delírio
Procurou avidamente,
E avidamente beijou
A minha boca de cravo
Que a beijar se recusou.
Arrastou-me para Ele,
E, encostado ao meu ombro,
Falou-me dum pajem loiro
Que morrera de Saudade,
Á beira-mar, a cantar...
Olhei o céu!
Agora, a lua, fugia,
Entre nuvens que tornavam
A linda noite sombria.
Deram-se as bocas num beijo,
Um beijo nervoso e lento...
O homem cede ao desejo
Como a nuvem cede ao vento.
Vinha longe a madrugada.
Por fim,
Largando esse corpo
Que adormecera cansado
E que eu beijara loucamente
Sem sentir,
Bebia vinho, perdidamente,
Bebia vinho... até cair.


IV


Bendito sejas,
Meu verdadeiro conforto
E meu verdadeiro amigo!
Quando a sombra, quando a noite
Dos altos céus vem descendo,
A minha dor,
Estremecendo, acorda...
A minha dor é um leão
Que lentamente mordendo
Me devora o coração.
Canto e choro amargamente;
Mas a dor, indiferente,
Continua...
Então,
Febril, quase louco,
Corro a ti, vinho louvado!
E a minha dor adormece,
E o leão é sossegado.
Quanto mais bebo mais dorme:
Vinho adorado,
O teu poder é enorme!
E eu vos digo, almas em chaga,
Ó almas tristes sangrando:
Andarei sempre
Em constante bebedeira!
Grande vida!
Ter o vinho por amante
E a morte por companheira!

V


Foi numa tarde de Julho.
Conversávamos a medo,
Receios de trair
Um tristíssimo segredo.
Sim, duvidávamos ambos:
Ele não sabia bem
Que o amava loucamente
Como nunca amei ninguém.
E eu não acreditava
Que era por mim que o seu olhar
De lágrimas se toldava...
Mas, a duvida perdeu-se;
Falhou alto o coração!
E as nossas taças
Foram erguidas
Com infinita perturbação!
Os nossos braços
Formaram laços.
E, aos beijos, ébrios, tombámos;
Cheios de amor e de vinho!
(Uma suplica soava:)
«Agora... morre comigo,
Meu amor, meu amor... devagarinho!...»

VI

KlausMaritschnigg
Quanto, quanto me queres? perguntaste
Olhando para mim mas distraída;
E quando nos meus olhos te encontraste,
Eu vi nos teus a luz da minha vida.
Nas tuas mãos, as minhas, apertaste.
Olhando para mim como vencida,
«...quanto, quanto...» de novo murmuraste
E a tua boca deu-se-me rendida!
Os nossos beijos longos e ansiosos,
Trocavam-se frementes! Ah! ninguém
Sabe beijar melhor que os amorosos!
Quanto te quero?! Eu posso lá dizer!...
Um grande amor só se avalia bem
Depois de se perder.

VII


Anda, vem... ¿por que te negas,
Carne morena, toda perfume?
¿Por que te calas,
Por que esmoreces
Boca vermelha, rosa de lume!
Se a luz do dia
Te cobre de pejo,
Esperemos a noite presos num beijo.
Dá-me o infinito gozo
De contigo adormecer,
Devagarinho, sentindo
O aroma e o calor
Da tua carne, meu amor!
E ouve, mancebo alado,
Não entristeças, não penses,
Sê contente,
Porque nem todo o prazer
Tem pecado...
Anda, vem... dá-me o teu corpo
Em troca dos meus desejos;
Tenho Saudades da vida!
Tenho sede dos teus beijos!

VIII


Se me deixares, eu digo
O contrario a toda a gente;
E, neste mundo de enganos,
Fala verdade quem mente.
Tu dizes que a minha boca
Já não acorda desejos,
Já não aquece outra boca,
Já não merece os teus beijos;
Mas, tem cuidado comigo,
Não procures ser ausente:
Se me deixares, eu digo
O contrario a toda a gente.

IX


Ouve, meu anjo:
¿Se eu beijasse a tua pele?
¿Se eu beijasse a tua boca
Onde a saliva é um mel?...
Quis afastar-se mostrando
Um sorriso desdenhoso;
Mas ai!
A carne do assassino
É como a do virtuoso.
Numa atitude elegante,
Misteriosa, gentil,
Deu-me o seu corpo doirado
Que eu beijei quase febril.
Na vidraça da janela,
A chuva, leve, tinia...
Ele apertou-me, cerrando
Os olhos para sonhar...
E eu, lentamente, morria
Como um perfume no ar!

X


Quem é que abraça o meu corpo
Na penumbra do meu leito?
Quem é que beija o meu rosto,
Quem é que morde o meu peito?
Quem é que fala da morte,
Docemente, ao meu ouvido?
És tu, Senhor dos meus olhos,
E sempre no meu sentido.

XI


Tenho a certeza
De que entre nós tudo acabou.
Deixai-o!
Bendita seja a tristeza!
Não há bem que sempre dure
E o meu bem pouco durou.
Não levantes os teus braços,
Para de novo cingir
A minha carne de seda;
Vou deixar-te... vou partir.
E se um dia te lembrares,
Dos meus olhos cor de bronze
E do meu corpo franzino,
Acalma
A tua sensualidade,
Bebendo vinho e cantando
Os versos que te mandei
Naquela tarde cinzenta...
Adeus!
Quem fica sofre bem sei;
Mas sofre mais quem se ausenta!...
 

XII

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Tu mandaste-me dizer
Que tornavas novamente
Quando viesse a tardinha;
E eu, para mais te prender,
Nesse dia...
Pintei de negro os meus olhos
E de roxo a minha boca.
As rosas eram aos molhos
Para a noite rubra e louca!
Entornei sobre o meu corpo,
Que fora delgado e belo!
O perfume mais estranho e mais subtil;
E um brocado roxo e verde
Envolveu a minha carne
Macerada e varonil.
Os meus ombros florentinos,
Cobertos de pedraria,
Eram chagas luminosas
Alumiando o meu corpo
Todo em febre e nostalgia.
Nas minhas mãos de cambraia,
As esmeraldas cintilavam;
E as pérolas nos meus braços,
Murmuravam...
Desmanchado, o meu cabelo,
Em ondas largas, caia,
Na minha fronte
Ligeiramente sombria.
Estava pálido e disse-ia
Que a palidez aumentara
A minha grande beleza!
Na minha boca ondulava
Um sorriso de tristeza.
A noite vinha tombando.
E, como tardasses,
Fiquei-me, sentado, olhando
O meu vulto reflectido
No espelho de cristal;
E afinal,
Nem frescura, nem beleza,
No meu rosto descobri!
Ó morte, não me procures!
E tu, meu amor, não venhas!...
Eu já morri.

XIII

 
Já na minha alma se apagam
As alegrias que eu tive;
Só quem ama tem tristezas,
Mas quem não ama não vive.
Andam pétalas e folhas
Bailando no ar sombrio;
E as lágrimas, dos meus olhos,
Vão correndo ao desafio.
Em tudo vejo Saudades!
A terra parece morta.
Ó vento que tudo levas,
Não venhas à minha porta!
E as minhas rosas vermelhas,
As rosas, no meu jardim,
Parecem, assim caídas,
Restos de um grande festim!
Meu coração desgraçado,
Bebe ainda mais licor!
Que importa morrer amando,
Que importa morrer de amor!
E vem ouvir bem-amado
Senhor que eu nunca mais vi:
Morro mas levo comigo
Alguma coisa de ti.

XIV


A vossa carta comove,
Mas, não vos posso acompanhar.
Deixai-me viver em penas;
Vou sofrendo e vou sorrindo,
O meu destino é chorar!
Sim, é certo; quem eu amo
Zomba e ri do meu amor...
Que hei-de eu fazer? Resignar-me,
Gentilíssimo Senhor!
Depois, quanto mais sabemos,
Parece que mais erramos:
Antes sofrer os males que nos cercam
Do que ir em busca de outros que ignoramos.

XV


De Saudades vou morrendo
E na morte vou pensando:
Meu amor, por que partiste,
Sem me dizer até quando?
Na minha boca tão linda,
Ó alegrias cantai!
Mas, quem se lembra dum louco?
Enchi-os de agua, meus olhos,
Enchi-os de agua, chorai!

XVI

Eu ontem passei o dia
Ouvindo o que o mar dizia.
Chorámos, rimos, cantámos.
Falou-me do seu destino,
Do seu fado...
Depois, para se alegrar,
Ergueu-se, e bailando, e rindo,
Pôs-se a cantar
Um canto molhado e lindo.
O seu hálito perfuma,
E o seu perfume faz mal!
Deserto de aguas sem fim.
Ó sepultura da minha raça
Quando me guardas a mim?...
Ele afastou-se calado;
Eu afastei-me mais triste,
Mais doente, mais cansado...
Ao longe o Sol na agonia
De roxo as aguas tingia.
«Voz do mar, misteriosa;
Voz do amor e da verdade!
Ó voz moribunda e doce
Da minha grande Saudade!
Voz amarga de quem fica,
Trémula voz de quem parte...»
. . . . . . . . . . . . . . . .
E os poetas a cantar
São ecos da voz do mar!

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