sexta-feira, 5 de junho de 2009

Antero do Quintal – Odes Modernas

Livro Segundo

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Tese e Antítese


I

Já não sei o que vale a nova ideia,
Quando a vejo nas ruas desgrenhada,
Trova no aspecto, à luz da barricada,
Como bacante após lúbrica ceia!

Sanguinolento o olhar se lhe incendeia…
Aspira fumo e fogo embriagada…
A deusa de alma vasta e sossegada
Ei-la presa das fúrias de medeia!

Um século irritado e truculento
Chama à epilepsia pensamento,
Verbo ao estampido de pelouro e obus…

Mas a ideia é num mundo inalterável,
Num cristalino céu, que vive estável…
Tu, pensamento, não és fogo, és luz!

II

Num céu intemerato e cristalino
Pode habitar talvez um Deus distante,
Vendo passar em sonho cambiante
O ser, como espectáculo divino:

Mas o homem, na terra onde o destino
O lançou, vive e agita-se incessante…
Enche o ar da terra o seu pulmão possante.
Cá da terra blasfema ou ergue um hino…

A ideia incarna em peito que palpitam:
O seu pulsar são chamas que crepitam,
Paixões ardentes como vivos sóis!

Combatei pois na terra árida e bruta,
‘Te que a revolta o remoinhar da luta,
‘Te que a fecunde o sangue dos heróis!



II

Secol’Si Rinuova


I


Não sei que pé, na estrada do Infinito,
Vai andando, não sei! mas as Cidades
E os Tempos e, a Cruz nas altas torres,
E os Castelos antigos e os Palácios,
- Tudo quanto ai estava edificado
E assente como a rocha sobre o monte -
Tudo sente pavor e se perturba
E sem tremor pressago de ruína
E se escurece e teme…
Das alturas
Do passado, olha o abismo do futuro
E, vendo-o a vez primeira tão cavado,
Tão lívido por baixo e, por instantes,
Cortado de relâmpagos…anseia
E tem vertigens de atirar-se ao pego!

A ossada das Babéis do mundo antigo
Gemeu – e viu-se então esse esqueleto,
À luz de incêndio estranha, conchegando
Como se fosse carne aos ossos, restos
D mortalha de púrpura d’outrora…
Mas os vermes roeram-lhe a mortalha
E bem se vê a ossada nua…


II

Anseiam
Por encobrir essa nudez aos olhos,
Ou por cegar então os olhos todos!
Porque se, um dia, os pés dessas estatuas
Se virem ser de barro e não de bronze;
Se se vir que os Jardins de Babilónia
Estão suspensos por débeis fios,
E não assentes sobre pedras e abóbada;
Se se vir que as colunas desse templo
Não são mármore rijo, mas formadas
De uns troncos velhos meios podres, e o Ídolo
Se conhecer que já não faz milagres…
Em verdade, em verdade, que há-de ouvir-se,
Sobre a face da terra, ao sul e ao norte,
Erguer-se, como o vento das tormentas,
E voas, como relâmpagos nas ondas,
Bem estranho clamor – misto de coros
E imprecações e súplicas e brados
E ódios, tudo a rugir!… e muita escama
Há-de aos olhos cair… e muita fronte
Que beija o pó há-de entestar co’as nuvens!

Muito machado de aço, que anda agora
Cortando na floresta o cedro e o sândalo
Para a pira dos Ídolos, quem sabe
Se não há-de voltar talvez o gume
Contra esses pés mirrados do esqueleto?
Muitos braços, que puxam hoje ao carro,
Quem nos diz que não hás-de, enfim quebrando
As algemas servis, precipitá-lo?
E muitas postas mãos em prece humilde,
Talvez erguer-se e dar na cara ao morto?
E muito lábio, Que murmura a súplica,
Abrir-se enfim para escarrar o ultraje?
E muito olhar tremente soltar chamas?
E muito curvos ombros, que acarretam
O ouro em pó e incenso e mirra, ainda
Quem o sabe? talvez ir-se de encontro
À base da estátua – e derrocá-la?


III

Eu tenho visto a pedra,desprendida
Da montanha, levar meia floresta
Na carreira – e não há-de esse granito
Colossal, que é o Povo, despregado
Por mãos do tempo, com trabalho imenso,
Ao rolar no declive da história
Esmagar, ao corre, os troncos secos
E o mirrado ossuário do passado?
Não há-de o solo heróico, que se agita,
Lançar ao ar castelos e cidades?
Há-de abrir-se o vulcão só por que atire
Um só jacto de fumo e cinza apenas?
E a alma dos homens há-de entrar nas dores
De um parto crudelíssimo, e volver-se
Num leito de tortura, por que o feto
Predestinado, a pálida Esperança,
Fruto de mil angústias, em chegado
A ver a luz se chame desespero?
Eles sabem que não. Sabem que o oceano,
Chamado humanidade, gasta séculos
A revolver, lá dentro em si, uma ideia;
Mas que, se um dia chega a vê-la clara,
A frase com que a deita ao mundo é o estrondo
Da tormenta… e é seu verbo o cataclismo!


leaoIV

Eles sabem e temem. -
Como ovelhas,
A quem faro de lobos pôs espanto,
Uniram-se formando um grande círculo.
‘Stá no centro o Pastor – báculo de ouro
Por fora, mas por dentro ferro todo!
Em volta do cajado da legenda
(Como em volta ao ao bordão do Sete –estrelo
As estrelas do céu)
é que se juntam
As estrelas fatais da treva humana.
Os que trazem na mão a cruz de Cristo
(Onde a Cristo pregaram!) e os que apertam
Com o guante ferrado a cruz da espada!
Os que do peito humano fazem cunho
E, vazando-lhe prantos, lhes sai ouro!
Os cabos do exército traidores,
Porta-bandeira que o pendão venderam;
Que, vendo na auriflama esta palavra
Justiça escrita, vão (línguas de víbora)
Lambendo a letra de ouro, e a baba horrível
Deixa bordado a fio de peçonha
O mote deles Interesse! os sábios
Que andam tapando ao sol co’a capa negra!
Os Cains, que subindo sobre a espádua
Dos irmãos, lhe deixaram cada ombro
-Marca de servidão – beijo do inferno -
Ferido dos sapatos tauxiados!
Os leprosos que põem ouro nas chagas!
Os que vendem a Cristo cada dia,
E o renegam três vezes cada noite!
Os herdeiros do Abuso! os feudatários
Do Crime! os titulares da Ignomínia!
Eis do inferno o rebanho, que obedece
A um Pastor…herdeiro da Serpente!

 

V

São estes que fizeram de cadáveres
O grande monte do Passado: estes
Que de ossadas fizeram os castelos
E os púlpitos e os tronos – e fizeram
De pranto óleo santo e água benta…
São estes que fizeram da cruz negra
Do mau ladrão sinal com que se absolvem
Entre si: e, deitando a toga preta
Pelo espaço, fizeram Firmamento;
E chamaram, ao sol, escuridade;
E, ao pensamento , lepra; e à ignorância
Elevaram altar; e à ignomínia
Chamaram dignidade; e andam pedindo
Esmola para a Treva; e querem do homem
As lágrimas, apenas… com que reguem
Do seu jardim roubado as negras flores!

VI

E, entanto, sabem (quem tem olhos vê-o…
Vê com espanto!) que o temor do solo
É largo e vem de longe; e que há no espaço,
Fora do mundo, mão que impele as coisas
E, como onda, as agita a ir de encontro
À cidadela das ruínas! Sentem
Já sobre o coração um frio horrível…
E, olhando em volta, vêem pelo escuro
Vir essa negra mão, que traz erguida
A espada flamejante do Destino!
Vêem… e lutam! Deus é que eles tentam
E ao Destino é quem eles desafiam!
Mas têm medo – os cobardes – porque mente
E não sabem – mentem – dizem que o Passado
Era urze fraquinha que a Revolta,
Bem como golpe de alvião valente,
De uma vez arrancou. Fazem-se humildes
E, como o canavial, vergam gemendo…
E dizem meu irmão a cada insecto…
E querem ver se enganam a Verdade…
E querem ver se Deus lhes cai no laço!

VII

O Passado! essa larva macilenta,
Misto de podridão, tristeza e sombras,
Se morreu… ressurgiu do seu sepulcro!
Bem o vemos andar, pavonear-se
Entre nós, nos vestidos ilusórios
Da triste morte, arremedando a vida,
Passar – e sobre a fronte desse espectro
Bem se vê uma sombra de tiara
OU de coroa, ao longe, branquejando!
Mudou de roupa – mas o corpo ainda
É o mesmo… é pior, que cheira à cova!

O castelo feudal tinha raízes
Bem fundas nesse chão: e a árvore heráldica,
Antes que a decepassem, alastrou-se
Subterrânea e botou rebento ao longe…
Se a regou tanto sangue e tanta lágrima!
Tem muita vida ainda árvore negra…
O velho mundo, a Babilónia antiga,
- Leviatâ dos tempos – tem amarras
De ferro colossais que à praia o ligam:
Cada fuzil é um abuso; a âncora
É a inércia das gentes; e é o interesse
A rocha a que se prende, Ri dos ventos
E julga-se seguro… mas um dia
Há-de estalar… e então! então o oceano
Terá pouca fundura para a cova,
E pouca ondas a deitar-lhe em cima!

VIII

O novo mundo é todo uma nova,
Um homem novo, um Deus desconhecido!
No nosso sangue há glóbulos legados
Pelo mistério das idades idas:
Há toda a podridão da árvore antigos,
Legada ao gérmen da árvore futura…

Há o espírito e a forma. A Autoridade,
Esse mistério, espada de Damocles,
Essa nuvem sombria onde se escondem
O Senhor do Sinai e as doze-tábuas:
A rede de mil fios, que atirando
Uma ponta à família, em mil meandros
Vai, desce, sobe, some-se, aparece,
‘Te que prende ao trono a último ponta,
Onde a Águia-bifronte os fios une!

Há o Terror – a nuvem das alturas
Trazida para aqui ((ou aqui formada);
Raio de luz do eterno santuário
metido no candil destes Diógenes!
Uma ponta do véu azul do augusto
Cobrindo a fronte cínica do eunuco!
Deus – o segundo termo do dilema
Sempre apontando ao peito, como uma seta!
Não se pode andar, corre os campos,
Sem que, de um canto escuro, um vulto negro
Nos brande logo "arreda! aqui começa
O domínio do céu – atrás, profano!”

O pensamento livre e iluminado
Metido ao canto dessa jaula negra
De pedra e ferro! o céu sempre na terra!
A tenda do deserto em mil retalhos
Partida! e a onda do mar pulverizada!
……………………………………………………………….
Há de que perguntar porque é que os astros
Se põem a olhar assim com tal carinho
Para aqui, e temer que o sol, um dia,
Revolvendo o que viu, fuja no espaço
ou se apague co’as lágrimas choradas…
Porque isto é baço e isto é atroz!



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IX

Entretanto,
Da História o solo dos tempos, anda em dores
Concebendo um mistério – porque dentro
Em seu seio,num rego tenebroso,
Não sei que mão deitou uma semente
Escura mas divina, a do Futuro!

X

Há-de crescer até ao céu essa árvore!
Há-de vingar! o bafo, o ar que respira,
É o Desejo do homem, essa eterna
Aspiração, essa atmosfera ardente
Aonde bebe vida quando há grande,
Quando de novo e estranho à luz se eleva!
Há-de crescer essa árvore divina!
Porque as raízes dela vão, na sombra,
Buscar a vida ás duas largas fontes,
Verdade e Amor – e a seiva que a alimenta
É a ideia… e é o chão a Humanidade!

XI

Deixa-la ir! Os vermes que a rodeiam
Querem comer-lhe o tronco – estes insectos
São audazes… porquê? porque são cegos!
Hão-de gastar os dentes nessa lide;
Hão-de gastar, depois, ainda a cabeça;
Hão-de por fim gastar o corpo todo!

E ela como se vinga?
A essa poeira
Escura, que deixaram quando extintos,
Lá irá procurá-la co’as raízes,
E transformá-la em seiva; e dessa seiva
Fazer ou folha ou ramo ouflor, acaso,
E, generosa, ao sol do belo erguê-la
Que veja, ao menos uma vez, os astros!

Eles são fortes – eles têm o Mundo:
Ela, por si, apenas tem… o Espírito!



III

Como o vento às sementes do pinheiro
Pelos campos atira e vai levando...
E, a um e um do monte semeando:

Tal o vento dos tempos leva a Ideia,
A pouco e pouco, sem se ver fugir...
E nos campos da vida assim semeia
As imensas florestas do provir!



IV


Justitia Mater


Nas florestas solenes há o culto
Da etrena, íntima força primitiva:
Na serra, o grito audaz da alma cativa,
Do coração em combate inulto:

No espaço constelado passa o vulto
Do inominado alguem, que os sóis aviva:
No mar ouve-se a voz grave e aflitiva
Dum deus que luta, poderoso e inculto.

Mas nas negras cidades, onde solta
Se ergue de sangue medida a revolta,
Como incêndio que um vento bravo atiça,

Há mais alta missão, mais alta glória:
O combater, à grande luz da história,
Os combates eternos da justiça!

 

V


No Templo

I

O Povo há-de inda um dia entrar dentro do

templo,
E há-de essa rude mão erguer-se sobre o altar;
E há-de dar de piedade um grande e novo exemplo,
E, ao púlpito subindo, o mundo missionar.

Heis-de essa voz solene ouvir – na nave augusta
O canto popular ao longe soará;
E a pedra, carcomida às mãos do tempo e adusta,
Ansiosa palpitando, o hino escutará!

O povo há-de fazer-se, então, bispo e levita;
E será missa-nova a missa que disser:
E há-de achar ao sermão por tema o que medita
Hoje confuso e está na mente a revolver.

Então, por essa imensa abóbada soando,
Há-de correr o som de um órgão colossal;
E uma outra cruz no altar, outro esplendor lançado,
Há-de radiar luz nova às letras do missal.

Dia santo há-de ser esse de festa estranha!


Com a calosa mão o Povo toma a cruz,
Amostra-a à multidão e – Cristo na Montanha -
Missiona… e a fronte, entanto, inunda-se de luz!

Então o seu olhar será como o espelho
Doce, que o filho tem no olhar de sua mãe
E, tendo numa mão erguido o Evangelho,
Com a outra aponta ao longe o vago espaço, além…

II

Ninguém o dia sabe ao certo: entanto, vemos
Pelos sinais do céu que a aurora perto está…
Pelas constelações é que esse espaço lemos…
A estrela do pastor desmaia… Ei-lo vem já!
………………………………………………………………
Sabeis que missa nova essa é que diz o Povo?
E o órgão colossal que, em breve, vai soar?
Qual é o novo altar e o Evangelho novo?
E o tema do sermão que às gentes vai pregar?

O Evangelho novo é a bíblia da Igualdade:
Justiça, é esse o tema imenso do sermão:
a missa nova, essa é missa de Liberdade:
E órgão a acompanhar… a voz da Revolução!


VI

Palavras Dum Certo Morto
Há Mil anos e mais que aqui estou morto,
Posto sobre um rochedo, à chuva e ao vento:
Não há como eu espectro macilento,
Nem mais disforme que eu nenhum aborto…

Só o espírito vive: vela absorto
Num fixo, inexorável pensamento:
‘Morto, enterrado em vida!’ o meu tormento:
É isto só – do resto não me importo…

Que vivi sei-o eu bem… mas foi um dia,


Um dia só - no outro, a Idolatria
deu-me um altar e um culto… ai! Adoraram-me

Como se eu fosse alguém! como se a Vida
Pudesse ser alguém! – logo em seguida
Disseram que era um Deus… e amortalharam-me!

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VII

Aos Miseráveis

Vós vedes esses lobos carniceiros

,
que em volta dos redis andam bramindo?
Que onde se espalha o sangue são primeiros,
E últimos onde o Amor está sorrindo?
tremeis de medo ao vê-los? ou, rasteiros,


Da vista deles vos andais sumindo?
Ou, cheios de ódio, estais a invejá-los?
Pois, em verdade, que é melhor chorá-los!
Eles não vêem deste grande mundo
Mais que os tectos dourados de seus paços…
Vós tendes todo o céu largo e profundo
Por tecto, e por palácio esses espaços!
O que Deus dá a todos… o fecundo…
Que não se nega aos mais mirrados braços…
O brando que de um peito amada sai…
E o que do olhar das mães n’alma nos cai…

A herança é bela, miseráveis! vede…
Miseráveis! porquê? porque no estio


Só piedoso olhar vos mata a sede?
Porque, quando tremeis de fome e frio,
Deus só seio de amigo vos concede?
Só tendes a esperança, como rio,
Para banhar-vos no maior calor?



Nem têm Inteligência! a que vem d’alma!
Esse grande entender da Grande Cousa!
Cacho nascido na mais alta palma!
Coroa de quem crê e de quem ousa!
Sangue de irmãos a sede lhes acalma…
Dão banquetes no mármore da lousa…

E saber isto? é isto Inteligência?
Não! que o Bem é o perfume dessa essência!
A cânfora… a balsâmica resina…
A essência que desfila sobre os Povos,
Na fronte deles, como unção divina…
E palpitou a ave pequenina
Por um leve rumor dentro em seus ovos,
Então caiu também da imensidade,
Sobre fronte dos povos, a verdade!

É Ela, que ressalta, como lume,


Do choque das ideias e das cousas!


Não há grilhões que a prendam… que os consume!
Nem campa… que ela estala as frias lousas!
Machado de aço fino, com o gume
A árvore decepou onde te pousas
Tu, negro mocho da Hipocrisia,
E tu, águia fatal da Tirania!

II

Derruba com seu pé tronos erguidos,


Com um sopro, no pó lança os castelos,
e aos vermes que na sombra vão sumidos
E a quem ela chama filhos belos!
Os cometas, que ao ar andam subidos,
Fez cair… e tomando uns alvos velos

Pálidos e trementes, a Verdade
Com eles construiu trono e cidade!

Nós vimos esse deus e a nossa boca,
Não sabemos quem é, chamou-lhe Ideia:
Num dia faz-se nada, e a si se apouca…
No outro o mundo envolveu na imensa teia!
Pareceu bem minguada a coisa pouca,
Quando com Cristo se assentou à ceia…
No outro dia chamava-se Martírio…


Alma depois… depois chamou-se Empíreo!
Vai indo e vai varrendo a casa imunda
Que se chama passado – e fez o novo
da poeira, inda ontem infecunda,
E que já amanhã se chama Povo.
É ela quem destrói e quem inunda;
E, entre as ruínas, faz chocar um ovo
Onde se agita um feto, hoje inda escuro,
Mas que é aurora e luz… porque é Futuro!


É gosto ver os tronos abalados
Por essa férrea mão, e ver os cultos
Por terra, e entre os altares alastrados,
Ver sob eles no pó deuses sepultos?
Ver os nomes dos grandes apagados,
e as sombras dos heróis cheias de insultos…
porque esse sopro que o incêndio atiça,
E essa mão e esse braço… é a justiça!


A justiça flameja como a espada
Do arcanjo invisível – resplandece
Como a chama dos fogos ateada,
Que, ao longe, nas montanhas aparece,
Vela á porta dos grandes assentada:
À ruína dos maus é que ela desce:
E tem por trono e sólio soberanos
As ossadas comidas dos tiranos!


Ninguém a vê chegar… mas, de repente,
Aparece – e mudou a face às cousas!
Encheu de prantos quem dormiu contente;
Dos felizes sentou-se sobre as lousas;
Do olhar do forte fez olhar tremente;
E a ti, ó miserável, que nem ousas
Do chão teus tristes olhos levantar,
Foi quem ela tomou para beijar!
não são consolações que dê o acaso,
São leis misteriosas e divinas…
A providência oculta em cada caso…
Presente na ventura e nas ruínas…
O que se achou no fundo desse vaso
Que se libou na vida… as surdas minas
Por onde o incêndio lavra sem ser visto,
Chame-se embora Garibaldi ou Cristo!

III

Ó Justiça! eu sorrio quando encaro
Os semideuses desta terra ingrata,
Que cheios de vaidade e de descaro
Se julgam feitos de ouro e fina prata…
Sorrio ao ver como em seu trono avaro
Cuidam falar com voz de catarata,
E crêem ser na altura uns -sete-estrelos…


Que eu sei Tu hás-de subvertê-los!

Os Tronos caem sem acharem eco,
E os deuses morrem sem fazer ruído;
É o Ceptro ramo que só fruto peco
Dará, e o Montante de aço buído
Não poda a vinha… deixa tudo seco!
Tudo isto morre e vai-se em pó sumido…
Trono, tiaras, ceptros, potestade,
que pesam na balança da Verdade?

Mas a ideia, que sai da nossa fronte;
E a dor, que irrompe e rasga o nosso peito;
Mas a água, que tem numa alma a fonte;
E o feto, que nasceu todo imperfeito;
E o ai de um triste em solitário monte;
E um pranto materno em frio leito;
Eis quem pesa no prato da balança


Onde se mede o amor e a esperança!

Esperança debalde não se sofre!
Ó vós que andais curvados, vede a altura
E dizei-nos se pode dar de chofre
No lodo quem nasceu da formosura?
E espalhar os brilhantes do seu cofre
Entre as urzes, e pobre e em noite escura
Ir curvado sem ver a coisa-bela
Quem nasceu para andar de estrela em estrela?

Caminhai para a estrema da alvorada
Que vos sorri de lá – não tenhais medo -
‘Tê que se desembrulhe esta meada…
E há-de desembrulhar-se, tarde ou cedo!
Miseráveis! segui na vossa estrada
De miséria; segui, com rosto ledo…
É a estrada real de um reino certo!
Vai na frente a coluna do deserto!


VIII

A Um Crucifixo

I

Há mil anos, bom Cristo,ergueste os magros braços
E clamaste da cruz. há Deus! e olhaste,ó crente,
O horizonte futuro e viste, em tua menta,
Um alvor ideal banhar esses espaços!

Porque morreu sem eco e eco de teus passos,
E de tua palavra (ó Verbo!) o som fremente?
Morreste…ah! dorme em paz! não volvas, que descrente
Arrojas de novo à campa os membros lassos…

Agora, como então, na mesma terra erma,
A mesma humanidade é sempre a mesma enferma,
Sob o mesmo ermo céu, frio como um sudário…
E agora, como então, viras o mundo exangue,
E ouviras perguntar – de que serviu o sangue
Com que regaste, ó Cristo, as urzes do calvário?


II

Doze Anos Depois

Não se perdeu teu sangue generoso,
Nem padeceste em vão, quem quer que foste,
Plebeu antigo, que amarrado ao poste
Morreste como vil e faccioso.

Desse sangue maldito ignominioso,
Surgiu armada uma invencível hoste…
Paz aos homens e guerra aos deuses! – pôs-te
Em vão sobre um altar o vulgo ocioso…

do pobre que protesta foste a imagem:


Um povo em ti começa, um homem novo:
De ti data essa trágica linhagem.

Por isso nós, a Plebe, ao pensar nisto,
Lembraremos, herdeiros desse povo,
Que entre nossos avós se conta Cristo.


IX

Por mais que o mundo aclame os vãos triunfadores,
Os que passam cantando e os que passam ovantes,
Os que entre a multidão vão como uns hierofantes,
E os que repartem d’alto, augustos julgadores,´


Às turbas o favor e os desdéns cruciantes,

Não há glória ou poder, cousa que o mundo aclame,
Igual à morte obscura, erma, vil, impotente,
D’um homem justo e bom, que expira injustamente
Na miséria, no exílio, ou em cárcere infame,
Mas que aplaude a consciência – e que morre contente!

X


Sombra


Quando Cristo sentiu que a sua hora
Enfim era chegada, grave e calmo,
Sereno se acercou dos que o buscavam.
A turba vinha em armas. Mas, de tantos,
Nem um só se atreveu a dar um passo,
A pôr a mão no Filho do Homem. – Todos
De olhos no chão, as armas encobriam
Ante Jesus inerme.

Então aquele
Que o tinha de entregar, aproximando-se,
O tomou nos seus braços, murmurando:
Que Deus te salve, Mestre! e, sobre a face
O beijou, como fora contratado:
Então os mais, chegando-se, o prenderam.

Mas Jesus, sem os ver, lhes perdoava.
De olhos no céu, seguia-os sereno.
Era duro o caminho. Sobre um monte
Iam e, dos dois lados, lá em baixo,


Cobria a treva a terra toda.
Quando,
Porém, sobre o alto desse monte
foram enfim chegados, de repente
Viu-se-lhe uma das faces alumiar-se
De uma luz doce e branda, mas imensa!
E quando terra, desde o monte ao oceano,
Lhe ficava do lado aonde virada
Lhe estava aquela face, reflectindo-a,
Tudo se esclarecia – vale e serra
E a metade do céu – aparecendo
Como em puro luar,ou qual se fosse
vir nascendo uma aurora desse lado.
E essa face radiante era a que Judas
não chegara a tocar.



Porém a outra,
Que ele beijara, conservou-se escura
Como se o crime dele ali guardasse…
Nem dava luz; e o espaço, dessa banda
Onde a virava, era uma noite imensa,
Coberto o horizonte de nevoeiro…
Partido o mundo em dois, essa metade
Era a que se ficara envolta em sombras.
………………………………………………………………
…………………………………………………………….
Foi dessas sombras que se fez a Igreja!


ph1XI


Carmen Legis…

I

Muito ruído e pó, e muito escuro!
É disso que se vestem…
É desse ar que respiram e que vivem…
Salamandras da sombra!



Chamam-se Bispos, Reis, Imperadores,
Altos, Grandes e Ricos!
Pairam sobre uma nuvem sobranceira,
E sobre as nossas frontes!

Agitam-se, revolvem-se, remexem-se…
Ferem os grandes ecos…
Enchem de bulho e pasmo o universo…
Põem terror e espanto!

Alevantam o pó de toda a estrada…
E agitam toda a onda!


Têm o ceptro, a tiara, a espada, a bolsa…
mandam nos corpos todos!


II

Pois bem! Grandes, Altivos, Poderosos,
E Cometas da altura,
E Senhores da terra e Semideuses…
Vós sois o pó e o nada!

Atroadores! o ruído imenso,
Com que abalais o mundo,
E apenas fracasso e pó e estrépito
De casa que se alui!

III

O espanto, que espalhais, não vos pertence…
Não é a vossa força.
É o tremor do solo, é o presságio
Do grande terramoto!



É o voo da asa poderosa
D’aquela águia cruenta,
Que vos há-de abater, precipitando-vos
Co’a face contra o solo!

É o eco longínquo das revoltas!
É o grande rebate!
É o seio do povo, que concebe
Um feto monstruoso!

É a desilusão! São as escamas
Caindo desses olhas,
Ao ver de perto os ídolos antigos…
E achando-os terra e barro!

O nascer de esperança nesses cérebros,
Que nem dela sabiam!


Modo estranho de olhar o horizonte,
Ao ver os astros novos!

É a onda, que sobe dos abismos
E põe à luz a como…
Que abalo… mas que vem lavando tudo…
E se chama Justiça!

São as vozes, que o ar pávido escuta,
Que nunca ouvira dantes!
E aos ecos do espaço em vão pergunta
De donde aquilo sobe!

É a Revolução! a mão que parte
Coroas e tiaras!
É a Luz! a Razão! é a Justiça!
É o olho da Verdade!

IV

Quem foi que disse aos povos estas coisas?
Quem foi que disse ao Servo
Que Deus, quando o criou, no seu registo
Lhe pôs o nome de Homem?…



E disse que o viver é lei de todos,
E não só de alguns poucas?
Para tudo beber, o mar? e a terra
Soco da estátua humana?

Qual é a mão intrépida, que que arranca
De sobre os olhos d’eles
A venda negro, que amarrara, há séculos,
A mão do sacerdócio?

Quem é que diz às faces, há mil anos,
Curvadas sobre a terra,
- ‘Erguei-vos para o céu! o céu é vosso!
É essa a vossa herdade!’ –?


V

Quem foi? foste vós mesmos! Impelida
Por força que não víeis,
A vossa mesma mão foi escrevendo
Sua própria sentença!


Trabalhais! e mal vedes que trabalho!
Sois as rodas da máquina
Que a si mesma se está esmigalhando!
E, Reis e Sacerdotes,

E Levitas do mundo! sois vós mesmos
Que abris a grande Porta,
Por onde há-de ruir o mundo todo
No vosso templo egoísta,

E deitar, sob o altar, as cruzes todas,
E beber regalado
Esse néctar da vida – a Liberdade -
No vosso cálix santo,

E esmigalhar, co’a fronte do levita,
A fronte do seu ídolo!
Vede o que há-de sair do horrível choque
De santo contra santo!


VI

E sabeis vós porquê? Por pouco… apenas,
Porque o Deus da história
Traduziu, numa lauda do seu livro,
A tradução estranha,

Que diz, em vez de rei – lobo e tirano -
E em vez de sacerdócio,


- Serpente, que se enrosca ao mundo todo -
E, em vez de rico – egoísta -

E ajuntou senhor e escravo, ambos
Nesta palavra – Homem -
E casta e privilégio, traduziu-as
Ambas por – Igualdade -

E, em vez de templo estreito, pôs – espaço
Imenso e infinito -
E em vez de rio, mar! e, das migalhas
Fez um grande banquete!

E à terra e ao homem, ambos condenados
à fixidez do mármore,
Deu um sopro gigante, baptizando-os
Com um nome –Progresso – !


VII

Por isso os vossos tronos se racharam


E as cruzes vão rolando
E as libras se derretem como gelo…
E foi por isto, apenas!


XII

A espada inexorável que flameja
No horizonte dum povo impenitente,
E não poupa, na ameaça indiferente,
Nem tugúrio, nem paço, nem igreja;

O gládio que encoberto peregrino
Ergue, imprevisto, nas humanas liças,
A espada das históricas justiças,
A espada de Deus e do Destino;

De que pensais que é feita? Porventura
Pensais que é feita dum metal terreno,
Cheio de jaça e fezes, e em veneno
Temperado talvez por mão impura?



Que é feita de cobiça e violência?
E de ódios cegos, brutos, truculentos?
De cobardes e falsos pensamentos?
De ultaje, de furor e de demência?

Quanto vos iludis, irmãos! Sabei-o,
Homem de pouca fé! sabei que a espada
Sinistra e em cuja folha esbraseada
Uma palavra em língua estranha eu leio

Que esse rubro sinal de mudo espanto,
Fixo, pregado ali num céu terrível
Continuo, inquebrantável, inflexível
À prece, à ameaça, à dor, ao pranto,

Que essa espada da morte e do pavor
É só feita de Bem inalterável,
De verdade ideal e impecável…


E que esse açoite é feito só de Amor!

Sabei, povos, que em horas de demência
Amaldiçoais a mão que vos castiga:
Essa inflexível mão é mão amiga,
É a mão paternal da Providência!

1563590XIII

Versos Escritos na Margem de um Missal

Bem pode ser que nossos pés doridos

Vão errados na senda tortuosa,

Que o pensamento segue nos desertos,

Na viagem da Ideia trabalhosa…

Que a árvore da Ciência, sacudida

Com força, jamais deite sobre o chão,

Aos pés dos tristes que ali’stão ansiosos,

Mais do que o fruto negro da ilusão…

Que o livro do Destino esteja escrito

Sobre folhas de lava, em letra ardente,

e não chegue a fitá-lo o olho humano

Sem que se ofusque e cegue de repente…

Pode ser que, na luta tenebrosa

Que este século move sob o céu,

Venha a faltar-lhe o ar, por fim, faltando-lhe

A terra sob os pés, bem como Anteu…

Que do sangue espalhado nos combates,

E do pranto que cai da triste lira,

No árido chão da esperança humana

Mais não nasça que a urze da mentira…

Que o mistério da vida a nossos olhos

Se torne dia a dia mais escuro,

E no muro de bronze do Destino

Se quebre a fronte – sem que ceda o muro…

Que o pensamento seja só orgulho,

E a ciência um sarcasmo da verdade,

E nosso coração louco vidente,

E nossas esperanças só vaidade…

E nossa luta, vã! talvez que o seja!

Cego andará o homem cada vez

Que vê no céu um astro! e os passos dele

Errados pelo mundo irão, talvez!

Mas, ó vós que pregais descanso inerte

No seio maternal da ignorância,

E condenais a luta, e dais ao homem

Por seu consolo o dormitar da infância;

Apóstolos crença… na inércia…

Vós que tendes da Fé o ministério

E sois reveladores, dando ao mundo

Em lugar de um mistério… outro mistério;

Se quando o Universo tem o seio,

E quando o homem tem no coração,

O olhar que vê e alma que adivinha,

O pensar grave e a ardente intuição,

Se nada – em terra e céu – pode ensinar-nos

Do fado humano o imortal segredo,

Nem os livros profundos da ciência,

Nem as profundas sombras do arvoredo,

Se não há mão audaz que possa erguê-lo

O tenebroso véu do Bem e do Mal…

Se ninguém nos explicar este mistério…

Também o não dirá nenhum missal!

XIV

À Europa

(Durante a insurreição da Polónia em 1864)

Águia da França! que te veja agora,

Como ave da noite, triste e escura!

Há pouco ainda a olhar o sol – nesta hora

Meia ofuscada ao resplendor da altura!

Subindo sem se ver já quase, outrora,

E, hoje, tombada sobre a rocha dura!

E quem por nome teve já Esperança.

Chamar-se Desalento… Águia da França!

Irmã! Irmã! Irmã! por ti clamaram

Desde o desterro os míseros cativos!

Foi para ti que os olhos levantaram

Queimados da tortura aos lumes vivos!

Foi por ti, foi por ti que eles bradaram

Erguidos do sepulcro e redivivos!

E tu dormes na ninho da confiança?

São irmãos teus! acorda, águia da França!

Ah! a águia-imperial inda tem asa…

Mas o que ela não tem já é vontade!

Há ainda algum fogo que a abrasa…

Mas não é nem amor nem liberdade!

Inda tem garra com que empolga e arrasa…

Mas já não os véus negros da verdade!

Porque, abraçado-a, lhe hão roubado a ardência

Dois amigos, o Egoísmo e a Prudência!

Ó Prudentes! não sei se mais me ria,

Se mais chore de ver vossa cegueira!

Pois vós, cuidando ter a luz do dia

Nas mãos, tendo-las cheias de poeira!

Vós chamai-vos a Ordem, a Harmonia…

Mas, nos frutos, qualquer vê que a figueira

Que, em rebentando o estio, não rebenta

É porque apenas sobre a areia assenta!

A areia Egoísmo! E, se a vaidade

Vos não cegara, veríeis que a semente

Que caiu sobre o chão da Liberdade,

Em vez de ser perdida inutilmente,

Dá, por grão, milhares. – E, em verdade,

Veríeis tudo isto simplesmente

Se, em vez de ter por lei o Livro escuro,

Só na justiça lêsseis o Futuro!

Sim! o Futuro! Vós olhais a um lado

E a outro lado – e vedes o horizonte…

Sabeis como passou quanto é passado,

E que alicerce teve cada monte…

Por vossa mão o mundo está marcado…

Cada mar cada rio cada fonte…

Tudo sabeis – a noite e a manhã -

Só vos esquece… o dia de amanhã!

Quando a Águia da Rússia as duas garras

Cravar no coração à liberdade,

Tapando com o volto as cinco barras

Desse Volga de luz, a humanidade;

Quando, enfim, estalar quantas amarras

A tem lá presa desde a velha idade,

E tomando co’a sombra toda a altura,

Se estender sobre a Europa a asa escura:

quando o vento do Norte em nossos prados

Tiver levado com os grãos as flores;

E, soprando nos ermos despovoados,

Semear a seara dos terrores;

Quando, enfim, sobre os sulcos arrasados,

Dormirem com os bois os lavradores;

E só brotar no chão da liberdade -

- Só – a erva da Rússia, a escuridade:

Vós haveis exultar, então, prudentes,

E. sábios, ver o fruto ao vosso ensino!

E aquele velho conto dos dormentes

Tirar sua moral…Que é o Destino!

Então abrindo os olhos, ó videntes,

Sobre as cabeças heis-de ver a pino

O cometa dos prósperos futuros…

Da negra Rússia sobre os céus escuros!

E, Diplomatas, heis-de ler as notas

Escritas nas muralhas derrocadas!

E das cidades nas muralhas derrocadas!

E das cidades nas bastilhas rotas

Heis-de ver as razões ali gravadas!

E haveis de ouvir das bocas mudas, botas,

A opinião extrema das espadas!

Lá quando na congresso se assentarem

As potências da Noite… e concertarem!

Quando um povo se chama, em vez de Gente,

Cólera, peste, vento da Sibéria;

E uma nação é assim coisa imprudente

Que, em vez da veste virginal, aérea,

Só tem andrajos com que aos olhos mente,

E é só, no fundo, escravidão, miséria;

E em vez de filho amado traz ao peito

Um monstro informe de hórrido trejeito;

Ó Nações, que dizeis abrir à vida

E à luz os olhos livres…ó Nações!

Quando é com coisa assim, crua e descrida,

Que se vão resgatar as opressões…

Não há voz de justiça – a mais erguida -

Nem tratados, nem notas, nem razões…

Há uma folha só – a da espada -

Para o grande tratado – a cutilada – !

E vós passais a mão sobre as escamas

Do crocodilo… e credes convertê-lo?

Credes ligá-lo com as finas tramas

Da palavra, mais frágeis que um cabelo?

Ó homens hábeis, que falais às chamas,

E ao mar bravo co’a voz podeis contê-lo,

Sois uns grandes apóstolos por certo…

Que até andais pregando no deserto!

Apóstolo! mas vede que no mundo

Não há já hoje um só, com este nome,

sem que lhe apaguem com um riso imundo

O nobre fogo em que arde e se consome!

Quanto vale a palavra neste fundo

Poço da Europa de hoje, onde se some

A voz mais alta? quanto vale? olhai!

Inclino o ouvido…mal escuto um ai!

Apóstolo – é a bombarda da metralha

Estalando as bastilhas dos tiranos!

Apóstolo – é o ferro, quando espalha

O terror sobre os peitos desumanos

É o clarim no meio da batalha

Tocando a retirada dos enganos!

É a mão do Destino, que em seus ninhos

Esmaga a loba velha co’os lobitos!

Contra a Rússia – a heresia das nações -

Um grande e forte apóstolo de ferro!

Que vá direito dentro aos corações

Com rijo abalo esmigalhar o erro!

Que vá direito dentro aos corações

Com rijo abalo esmigalha o erro!

Que, em vez da branda voz das orações,

Pregue a sua missão com grande berro!

Não humilde, não doce, como os onze

De Cristo… mas apostolo de bronze!

Esse, sim! que converta o povo Ímpio

Que ao Dagon da matança deu seu culto!

Que lhe faça correr o pranto em fio,

Mas um pranto de sangue! Um rude insulto,

Não palavras de amor a esse Gentio!

Um missionário de tremendo vulto

Que enfim lhe escreve as letras da oração

(Mas com ferro) no duro coração!

Essa é a única voz que se ergue e branda!

Com que pode pregar-se a essa descri da

Raça de Moabitas, a sagrada

Nova missão de Liberdade e Vida!

Nações da Europa! é ao canhão e à espada

A quem deveis dar a palavra, Erguida

Essa voz soará por toda a terra

a doutrina um Evangelho – a guerra!

Ah! se há ainda olhos para verem,

Em despeito da venda, a luz infinda!

Se há almas juvenis para se erguerem

Com o sublime voo que jamais finda!

Se há mãos ainda aí para estenderem

À luz da glória um ferro – e se há ainda

Povos livres na terra, e em peitos novos

Há livres corações – à guerra, ó Povos!

XV

Há dois tempos no espaço – um deles mais pequeno;

O outro, que é maior, está por cima deste;

Tem por cúpula o céu, e tem por candelabros

A lua ao ocidente e o sol suspenso ao este.

De sorte que quem’sta no templo mais exíguo

Não pode nascer o sol, nem pode ver

as estrelas no céu – que os tectos e as colunas

Não o deixem olhar nem a cabeça erguer.

É preciso abalar-lhe os tectos e as colunas

Por que se possa erguer a fronte até aos céus…

E preciso partir a Igreja em mil pedaços

Por que se possa ver em cheio a luz de Deus!

197beuXVI

Pobres

(A João de Deus)

I

Eu quisera saber, ricos, se quando

Sobre esses montes de ouro estais subidos,

Vedes mais perto o céu, ou mais um astro

Vos aparece, ou a fronte se vos banha

Com a luz do luar em mor dilúvio?

Se vos percebe o ouvido as harmonias

Vagas do espaço, à noite, mais distintas?

Se quando andais subidos nas grandezas

Sentis as brancas asas de algum anjo

Dar-vos sombra, ou vos roça pelos lábios

DE outro mundo ideal místico beijo?

Se, através do prisma de brilhantes,

Vedes maior o Empíreo, e as grandes palmas

Sobre as mãos que as sustêm mais luminosas,

E as legiões fantásticas mais belas?

E as legiões fantásticas mais belas?

E, se quando passais por entre as glórias,

O carro de triunfo de ouro e sândalo,

Na carreira que o leva não sei onde

Sobre as urze da terra, borrifadas

Com o orvalho de sangue, ó homens fortes!

Corre mais do que o voo dos espíritos?

Ah! vós vedes o mundo todo baço…

Pálido, estreito e triste… o vosso prisma

Não é vivo cristal, que o brilho aumenta,

É o metal mais denso! e tão escuro,

Que ainda a luz que vê um pobre cego

Luzir-lhe em sua noite, e a fantasia

Em mundos ideais lhe anda acendendo…

Esse sol de quem já não espera dia…

Ah! vós nem tendes essa luz de cegos!

Que! subir tanto… e estar cheio de frio!

Erguer-se… e cada vez trevas maiores!

Homens! que monte é esse que não deixo

Ver a aurora nos céus? qual é a altura

Que vela o sol em vez de ir-lhe ao encontro?

Que asas são essas, com que andais voando,

Que só às nuvens negras vos levantam?

Certo que deve ser o vosso monte

Algum poço bem fundo… ou vossos olhos

Têm então bem estranha catarata!

II

Há às vezes no céu, caindo a tarde,

Certas nuvens que segue o olhar do triste

Vagamente a cisma… há nuvens d’estas

Que o vestem de poesia e de esperança,

E lhe tiram o frio deste inverno

E o encher de esplendor e majestade…

Mais do que as vossas túnicas de púrpura!

Eu, as vezes, nas naves das igrejas

Lá quando desce a luz e a alma sobe…

E entre as sombras perpassam as saudades…

E no seio de pedra tem o triste

Mil seios maternais… eu tenho visto

Branquejar, nos desvãos da nave obscura,

Como as nuvens da tarde desmaiadas,

Uns brancos véus de linho em frontes belas

De umas pálidas virgens cismadoras,

Que, em verdade, não há para cobrir-nos

A alma de mistério e de saudade

Gaze nenhuma assim! Vede, opulentos,

Como Deus, com olhar de amor, as veste

A elas, de uma luz de aurira mística,

De poesia, de unção com o velo de ouro!

Os vossos cofres têm tesouros, certo,

Que um rei os invejara… Mas eu tenho

Ás vezes visto o infante, em seio amado

De mãe, dormir coberto de um sorriso,

Tão guardado do mundo como a pérola

No fundo do seu golfo… e sei, o ricos,

Que aquele abrigo aonde a mãe o fecha

- Entre braços e seio – é precioso,

Cerra um tesouro de mais alto preço

Que os tesouros que encerram vossos cofres!

III

Levitas do MILHÕES! o vosso culto

Pode ter brilhos e esplendor e pompas..

Arrastar-se nas ruas da cidade

Como um manto de rei… e sob os arcos

De mármore passar, como em triunfo…

Ter colunas de porfido luzente…

E ser o altar do vosso santuário

Como o templo do Sol… cegar de luzes…

O vosso Deus pode ser grande e altivo

Como Baal… o Deus que bebe sangue…

Mas o que nunca o vosso culto esplêndido

Há-de ter, como um véu para o sacrário,

A velar-lhe mistérios… é a poesia…

Esse mimo de amor… esses segredos…

O ingénuo sorriso da criança…

O olhar das mães, espelho de pureza…

A flor que medra na solidão das almas…

O branco lírio que, manhã e tarde,

Aos pés da Virgem, no oratório humilde,

Rega a donzela, em vaso pobrezinho!

Nunca a vossa cruz-de-ouro há-de dar sombra

Como a outra do Gólgota – o alívio,

Sombra que buscam almas magoadas -

Onde os cítiso pálidos rebentam…

Consolações.. Saudade… e inda esperanças…

Podeis cavar… as minas são bem fundas…

Cava mais fundo ainda… é vós mineiros,

Por mais que profundeis não heis-de uma hora

Chegar jamais… é ao coração…

E, entanto,

É lá a única mina de ouro puro!

VI

O coração! Potosi misterioso!

O grande rio de areais auríferos,

Que vem de umas nascentes ignoradas

Arrastando safiras em cada onda,

E depondo no leito finas pérolas!

O coração! É aí, ricos, a mina

Única digna de enterrar-se a vida,

Cavando sempre ali… Sem ver mais nada…

Foi lá, como na areia o diamante,

Que Deus deixou cair da mão paterna

As esmeraldas do diadema humano…

O sentimento vivo… a Acção radiante…

E a Ideia, o brilhante de mil faces!

Foi lá que esse Mineiro dos futuros

Encobertos andou co’os braços ambos

Metidos a buscar – mas quando um dia

do fundo as mãos ergueu… o mundo, em pasmo,

Viu-lhe brilhar nas mãos… o Evangelho!

XVII

Acusação

(Aos Homens de sangue de Versalhes em 1871)

Ergue-te enfim, Justiça vingadora!

Corusque em breve a tua espada ardente!

Eu vejo a tirania omnipotente,

Enquanto ao longe a Piedade chora…

Nasce rubra de sangue cada aurora,

E o sangue ensopa a terra ainda quente…

É congresso de sangue o que esta gente

Abriu entre as nações, que o sangue irrora!

Antes o altar encoberto do Futuro

E ante ti, Vingadora, acuso e cito

Estes homens de insídia e ódio escuro!

Endureça minha’alma, e creia e espere,

Com um desejo estóico e infinito,

Só na Justiça que condena e fere!

XVIII

Flebunt Euntes

(Ao Sr. Alexandre Herculano)

I

Também sei, também sei o que são lágrimas!

E sei quanto se deve

Às cinzas dos Avós, quando as lançamos

aos ventos do oceano!

II

Eu falo das ruínas do passado,

E de glórias futuras;

E meu peito está cheio de desejos

E aspirações imensas.

E solto o canto, ébrio de esperanças,

Ao ver a nova Aurora:

E ergo a face, e meus olhos são de chamas,

Por saudar a Justiça!

E ao ver a grande Lei, que vem correndo

Pela encosta dos tempos,

Como carro, e esmagado os troncos velhos,

E deslocando tudo;

Bato as mãos – porque o eixo desse carro

É o braço da Verdade!

E o motor, que o impele, é a caldeira

Gigante do Progresso!

III

Que muito que me esqueçam as tristezas,

Os ais dos que atropela

E esmaga a larga roda portentosa,

Em seu girar convulso?

Que só veja a vitória, e não os mortos?

A Obras majestosa,

E não o chão cavado, resolvido,

Onde tem alicerces?

A pele que a serpente vai largando,

E não as muitas dores!

E esses olhos que se abrem à verdade,

E não os que ela ofusca?

E, posto no convés da bela nave,

Que solta os largos panos,

Em demanda de mundos encobertos,

De misterioso rumo,

E, mergulhando o olhar nos horizontes,

Buscando nova América,

Não ouço os ais saudosos dos que deixam

A pátria, o berço, o ninho?

Nem lembre, agora que a ruína é certa,

(Revendo já na mente

Os palácios-de-fadas, que hão-de erguer-se

De sobre esses destroços)

Os corações, que estavam descansados,

E tinham travesseiro

E leito, no que vai ser revolvido

E ser despedaçado?

Os pendões que açoutavam, tremulando,

O ar, sobre os castelos,

Que a Justiça dos tempos vai agora,

Com mão rude aluindo?

As crenças, que se herdaram) e as bebidas

Das mães no seio doce?

Essas louras cabeças, que se beijam

Em sonho cada noite?

E a cruz, que com seus braços, cada dia,

Nos mostra a nossa estrada?

E o altar da nossa fé? e o berço amigo

Das ilusões antigas?

IV

Também sei o que é dor – e como as lágrimas

Saem, arando o peito;

E o que é inclinar-se um triste, às tardes,

Sobre gastas ruínas!

E ver os velhos ídolos partidos;

E os pendões de outro tempo

Lambendo agora o chão, com o mesmo tope

Onde a glória pousava!

E ver-se só no mundo e como errante…

(Crepúsculo das almas!)

Perdida a fé antiga, e ainda obscuros

O Deus e os cultos novos!

E não ter o leito de inda ontem…

E não saber já agora

Se o peito do irmão, do pai, do amigo,

Ainda tem um nome!

As almas, que como hera se enlaçavam

Ao carvalho gigante…

As vidas, flores à antiga sombra

Nascidas e medradas…

A tristeza do tempo… a dor dos séculos,

Que vão, como gemidos,

Caindo e arrastando homens e coisas…

Não se sabe a que abismo!

V

Eu sei quanto se deve ao desamparo

E às tristezas profundas,

E às saudades, que vêm, como soluços,

Do fundo da história!

se sei o que é Aurora – essa poesia

Do que à luz vem nascendo,

Também entendo o Ocaso e as longas sombras…

- Poesia de ruína! -

VI

Imensa soledade e angústia imensa!

Como Sião deserta,

Como o Povo levado em cativeiro,

Como os sós, como o exílio!

Vede o que foi, vede o que é agora!

Os Tronos, lírios belos

Nascidos e medrando à sombra vasta

Da Igreja, essa araucária!

E o solo, em volta e ao longe, perfumado

Pelos lises heráldicos,

Donde saia o aroma grato aos povos…

O aroma do Heroísmo!

E o Povo – o canavial humilde e trémulo,

Mas bom, porque era amado;

Porque as lágrimas dele eram o bálsamo

Chamado Sacrifício!

E as crenças, que brotavam aos cardumes

D’esse chão ferocíssimo,

Onde deus semeava (mão paterna!)

A Fé e a Caridade!

O Passado! – Jardim de sombras e aromas!

Cota de cavaleiro,

E véu de santa e manto de sacrário!

- Mistério e heroicidade -

O Passado! O Passado! – A nau gigante,

Firme, mas sossegada,

Porque a âncora d’ouro que a sustinha

Chamava-se Virtude!

VII

E agora… oh! agora… esta palavra chora

Nos lábios, quando os fere…

-Reflexo das grandezas que se somem

E eco das saudades -

O solo social todo alastrado

Destes grandes destroços…

Um mistério tristíssimo pairando…

- Sombras entre ruínas -

O presente disforme e cheio de iras,

E tremendo o Futuro…

O sol no ocaso… os ventos gemedores…

E os corações partidos!

VIII

Quem não te havia amar, Igreja mística,

Madalena do mundo,

Bela e Piedosa em meio dos tormentos,

Ungindo os pés de Cristo?

E quem não há-de agora dar-te lágrimas,

Ó triste pecadora,

Vendo o teu manto de ouro retalhado,

E márcida a coroa?

Vendo os teus pés na borda já do abismo,

E o trono, o hino santo,

Feito um trenó de angústias e gemidos

E abafados soluços?

E o véu da virgindade agora feito

E talhado em sudário?

E a pompa feita agora saimento?

E a cruz cheia de luto?

Se eu não hei-de chorar!… Foi em teus braços

Que dormi, ainda infante,

E, infante, me embalei ao som plangente

Do teus hinos sagrados!

Tive, criança loura, por brinquedo

Jasmim dessa coroa:

Deram-me sombra aos passos inda trémulos

Os teus longos cabelos!

E, quando ao seio maternal pendido,

Um Lei soletrava

Nos olhos d’ela… eu lia nos seus olhos

Todo o teu Evangelho!

E, balbuciante ainda, me ensaiava

Dizendo uma palavra,

Ensinavam-me então os lábios dela

A tua Ave-Maria!

Oh saudades! saudades! Bem entendo,

Ó vós que estais chorando,

O que estais a chorar – são as saudades

D’essa imensa poesia!

Eu, filho de outros céus e de outros cultos,

Bem vos entendo o pranto;

e alevanto também meus olhos, húmidos

Desta grande tristeza!

Bem vejo como hão-de as vossas almas

Descendo na corrente,

Que a leva a Ela – e a vós vos vai levando

Quanto tinheis de santo!

Choro – se hei-de chorar! – porque te vejo

Tão só, tão abatida,

E,Raquel! ouço a voz que chama os filhos…

Mas eles não respondem!

IX

E vós, Tronos, ó árvores gigantes!

Dormi, à vossa sombra,

Das crenças infantis o sono amigo…

Cobristes-me a inocência!

Houve um tempo em que que o céu destes meus olhos

Era o dossel de púrpura!

Em Que os brilhantes das coroas régias

Me pareciam astros!

E, agora, vejo as pérolas manchadas!

E está tudo partido!

E há uma voz, que branda a tudo isto:

“Deu a hora; sumi-vos!”

E eles vão – vai-se a árvore gigante…

Mas as raízes dela

‘Stavam fundas, e arrancam, levantando-se,

Corações gotejantes!

Ó corações fiéis! filhos da honra!

Vestais do fogo santo!

Eu bem entendo o vosso sacrifício

E o vosso desespero!

Porque é triste, bem triste essa ruína

- Ruína de dez séculos -

E vós tinheis ali a vossa vida,

E todo o vosso sangue!

X

Paladinos! – espada de aço buído,

Corações de ouro fino! -

Que eu vi, em volta de outro Carlos-Magno,

Outros Pares-de-França!

Ó lenda de Beleza e de Heroísmo,

Onde li, ajoelhado,

As crónicas e os feitos de outra idade,

E soletrei as Glórias!

Ó Valentes! Tapai as vossas lágrimas

Com o punho das espadas!

Cai, como se cai sempre na pugna,

Dando um sorriso à morte!

Venceu-vos, no torneio, espectro estranho!

Cai… erguendo os olhos

À vossa Dama e ao vosso Deus… Beijando

A cruz da antiga crença!

Da trompa de marfim, como Rolando,

Tirei um som… o último…

Que desperte as saudades d’esses ecos.

No chão de Roncesvalles!

E, agora, acompanhai o saimento,

- Vossos velhos amigos -

Servi de guarde d’honra, ó Paladinos,

E de escolta ao passado!

XI

Passado! – Eu sei dar pranto a estas tristezas,

A estes restos saudosos

Do mundo velho. Vós, que estais chorando,

São belas essas dores!

Porque vós por altar, e fé, e crença,

E sangue, e vida, e tudo…

Tinheis tudo nos olhos d’esse enfermo

E ele está condenado!

XII

Nós damos à saudade o que é do tempo…

E às cinzas esfriadas

Dos Avós damos honra e saimento…

- O funeral das lágrimas! -

Depois, avante! Os astros não se extinguem!

Há céus e espaços novos!

Enterre-se o Passado com Piedade…

Mas o Olhar… no Futuro!

XIII

Se já desaba o tecto das Igrejas

E o dossel d’esses Tronos,

É porque um outro céu maior nos cubra…

O céu da Liberdade!

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