sábado, 13 de junho de 2009

Alexandre Herculano – A Harpa do Crente

 

A Semana SantaVisc%20Sant004

 

I

 

Tíbio o sol entre as nuvens do ocidente,

Já lá se inclina ao mar. Grave e solene

Vai a hora da tarde! O oeste passa

Mudo nos troncos da alameda antiga,

Que à voz da Primavera os gomos brota:

O oeste passa mudo, e cruza o átrio

Pontiagudo do templo, edificado

Por mãos duras de avós, em monumento

De uma herança de fé que nos legaram,

A nós seus netos, homens de alto esforço,

Que nos rimos da herança, e que insultamos

A Cruz e o templo e a crença de outras eras;

Nós, homens fortes, servos de tiranos,

Que sabemos tão bem rojar seus ferros

Sem nos queixar, menosprezando a Pátria

E a liberdade, e o combater por ela.

Eu não! – eu rujo escravo; eu creio e espero

No Deus das almas generosas, puras,

E os déspotas maldigo. Entendimento

Bronco, lançado em séculos fundido

Na servidão de gozo ataviada,

Creio que Deus é Deus e os homens livres!

 

II

 

Oh, sim! – rude amador de antigos sonhos,

Irei pedir aos túmulos dos velhos

Religioso entusiasmo, e canto novo

Hei-de tecer, que os homens do futuro

Entenderão; um canto escarnecido

Pelos filhos desta época mesquinha,

Em que vim peregrino a ver o mundo,

E chegar a meu termo, e reclinar-me

À branda sombra de cipreste amigo.

 

III

 

Passa o vento os do pórtico da igreja

Esculpidos umbrais; correndo as naves

Sussurrou, sussurrou entre as colunas

De gótico lavor: no órgão do coro

Veio, enfim, murmurar e esvaecer-se.

 

IV

 

Mas porque soa o vento? Está deserto,

Silencioso ainda o sacro templo:

Nenhuma voz humana ainda recorda

Os hinos do Senhor. A natureza

Foi a primeira em celebrar seu nome

Neste dia de luto e de saudade!

Trevas da quarta-feira, eu vos saúdo!

Negras paredes, mudos monumentos

De todas essas orações de mágoa,

De gratidão, de susto ou de esperança,

depositadas ante vós nos dias

De fervorosa crença, a vós que enluta

A solidão e o dó, venho eu saudar-vos.

A loucura da Cruz não morreu toda

Após dezoito séculos! Quem chore

Do sofrimento o Herói existe ainda.

Eu chorarei – que as lágrimas são do homem -

Pelo Amigo do povo, assassinado

Por tiranos, e hipócritas, e turbas

Envilecidas, bárbaras, e servas.

 

V

 

Tu, Anjo do Senhor, que acenes o estro;

Que no espaço entre o abismo e os céus vagueias,

Donde mergulhas no oceano a vista;

Tu que do trovador à mente arrojas

Quando há nos céus esperançoso e belo,

Quando há no abismo tenebroso e triste,

Quando há nos mares majestoso e vago,

Hoje te evoco! – oh, vem! –, lança em minha alma

A harmonia celeste e o fogo e o génio,

Que dêem vida e vigor a um charme pio.

 

VI

 

A noite escura desce: o Sol de todo

Nos mares se afundou. A luz dos mortes,

Dos brandes o clarão, fulgura ao longe

No cruzeiro somente e em volta da ara:

E pelas naves começou ruído

De compassado andar, Fiéis acodem

À morada de Deus, a ouvir queixumes

Do vate de Sião. Em breve os monges,

Suspiros as canções aos Céus erguendo,

Sua voz unirão à voz desse órgão,

E os sons e os ecos reboarão no templo.

Mudo o coro depois, neste recinto

Dentro em bem pouco reinará silêncio,

O silêncio dos túmulos, e as trevas

Cobrirão por esta área a luz escassa

Despedida das lâmpadas, que pendem

Ante os altares, bruxuleando frouxas.

Imagem da existência! Enquanto passam

Os dias infantis, as paixões tuas,

Homem, qual então és, são débeis todas.

Cresceste: eis-a torrente. em cujo dorso

Sobre nadam a dor e o pranto e o longo

Gemido do remorso, a qual lançar-se

Vai com rouco estridor no antro da morte,

Lá, onde é tudo horror, silêncio, noite.

Da vida tua instantes florescentes

Foram dois, e não mais: as cãs e rugas,

Logo, rebate de teu fim te deram.

Tu foste apenas som, que, o ar ferindo,

Murmurou, esqueceu, passou no espaço.

 

E a casa do Senhor ergueu-se. O ferro

Cortou a penedia; e o canto enorme

Polido alveja ali no espesso pano

Do muro colossal, que era após era,

Como onda e onda ao desdobrar na areia,

Viu vir chegando e adormecer-lhe ao lado.

Ulme e  choupo no cair rangeram

Sob o machado: a trave afeiçoou-se;

Lá´no cimo pousou: se estruge ao longe

De martelos fragor, e eis ergue o templo,

Por entre as nuvens, bronzeadas grimpas.

 

Homem, do que és capaz! Tu, cujo alento

Se esvai, como da cerva a leve pista

No pó se apaga ao respirar da tarde,

Do seio dessa terra em que és estranho,

Sair fazes as moles seculares,

Que por ti, morto, falem; dás na ideia

Eterna duração às obras tuas.

Tua alma é imortal, e a prova a deste!

 

VII

 

Anoiteceu. Nos claustros ressoando

As pisadas dos monges ouço. eis entram;

Eis se curvaram para o chão, beijando

O pavimento, a pedra. Oh, sim, beijai-a!

Igual vos cobrirá a cinza um dia,

Talvez em breve – e a mim. Consolo ao morto

É a pedra do túmulo. Sê-o-ia

Mais, se do justo só a herança fora;

Mas também ao malvado é dada a campa.

 

E o criminoso dormirá quieto

Entre os bons soterrado? Oh, não! Enquanto

No templo ondeiam silenciosas turbas,

Exultarão do abismo os moradores,

Vendo o hipócrita vil, mais ímpio que eles,

Que escarnece do Eterno, e a si se engana;

Vendo o que julga que orações apagam

Vícios e crimes, e o motejo e o riso

Dado em resposta às lágrimas do pobre;

Vendo os que nunca ao infeliz disseram

De consolo palavra ou de esperança.

Sim: malvados também hão-de pisar-lhes

Os frios restos que separa a terra,

Um punhado de terra, a qual os ossos

Destes há-de cobrir em tempo breve,

Como cobrir os seus; qual vai sumindo

No segredo da campa a humana raça.

 

VIII

 

Eis que a turba rareia. Eram bem poucos

Do templo na amplidão: só lá no escuro

De afamada capela o justo as preces

Ergue pio ao Senhor, as preces puras

De um coração que espera, e não menti das

De lábios de impostor, que engana os homens

Com seu maneio hipócrita, calando

Na alma lodosa da blasfémia o grito.

Então exultarão os bons, e o ímpio,

Que passou, tremerá. Enfim, de vivos,

Da voz, do respirar o som confuso

Vem confundir-se no fervor das praças,

E pela galé só ruge o vento.

Em trevas não ficou silenciosas

O sagrado recinto. os candeeiros,

No gelada ambiente ardendo a custo,

Espalham débeis raios, que reflectem

Das pedras pela alvura; o negro mocho,

Companheiro do morto, hórrido pio

Solta lá da cornija: pelas fendas

Dos sepulcros desliza fumo espesso,

Ondeia pela nave, e esvai-se. Longo

Suspirar não se ouviu? Olhai!, lá se erguem,

Sacudindo o sudário, em peso os mortos!

Mortos, quem vos chamou? O som da tuba

Ainda do Josafat não fere os vales.

Dormi, dormi: deixai passar as eras….

 

IX

 

Mas foi uma visão: foi como cena

De imaginar febril. criou-se, acaso,

Do poeta na mente, ou desvendou-lhe

A mão de Deus o íntimo ver da alma,

Que devassa a existência misteriosa

Do mundo dos espíritos? Quem sabe?

Dos vivos já deserta, a igreja trova

Repovoou-se, para mim ao menos,

Dos extintos, que ao pé das santas aras

Leito comum na sonolência extrema

Buscaram. O terror, que arreda o homem

Do limiar do tempo às horas mortas,

Não vem de crença vã. Se fulgem astros,

Se a luz da Lua estira a sombra eterna

Da cruz gigante (que campeia erguida

No vértice do tímpano, ou no cimo

Do coruchéu do campanário) ao longo

Dos inclinados tectos, afastai-vos!

Afastai-vos daqui, onde se passam

À meia-noite insólitos mistérios,

Daqui, onde desperta a voz do arcanjo

Os dormentes da morte; onde reúne

O que foi forte e o que foi fraco, o pobre

E o opulento, o orgulhoso e o humilde,

O bom e o mau, o ignorante e o sábio,

Quantos, enfim, depositar vieram

Junto do altar o que era seu no mundo,

Um corpo nu, e corrompido e inerte.

 

XVisc%20Sant.jpg4

 

E seguia a visão. Cria ainda achar-me,

Alta noite, na igreja solitária

Entre os mortos, que, erectos sobre as campas,

Eram há pouco um fumo que ondeava

Pelas fisgas do vasto pavimento.

Olhai. D erguido tecto o pano espesso

Rareava; rareava-me ante os olhos,

Como ténue senda: mais ténue ainda,

Como o vapor de Outono em quarto de alva,

Que se libra no espaço antes que desça

A consolar as plantas conglobado

Em matutino orvalho. O firmamento

Era profundo e amplo. Envolto em glória,

Sobre vagas de nuvens, rodeado

Das legiões do Céu, o Ancião dos dias

O Santo, o Deus descia. Ao sumo aceno

Parava o tempo, a imensidade, a vida

dos mundos a escutar. Era a hora

Do julgamento desses que se alçavam,

À voz de cima, sobre as sepulturas?

 

XI

 

Era ainda a visão. Do templo em meio

Do anjo da morte a espada flamejante

Crepitando bateu. Bem como insectos,

Que à flor de pego pantanoso e triste

se balouçavam – quando a tempestade

Veio as asas molhar nas águas turvas,

Que marulhando sussurraram – surgem

Volteando, zumbindo em dança doida

E, lassos, vão pausar em longas filas

Nas margens do paul, de um lado e de outro;

Tal o murmúrio e a agitação incerta

Ciciava das sombras remoinhando

Ante o sopro de Deus. As melodias

Dos coros celestiais, longínquas, frouxas,

Com frémito infernal se misturavam

Em caos de dor e júbilo.

                           Dos mortos

Parava, enfim, o vórtice enredado;

E os grupos vagos em distintas turmas

Se enfileiravam de uma parte e de outra.

Depois, o gládio do anjo entre os dois bandos

Ficou, única luz, que se estirava

Desde o cruzeiro ao pórtico, e féria

De reflexo vermelho os largos panos

Das paredes de mármore, bem como

Mar de sangue, onde inertes flutuassem

De humanos vultos indecisas formas.

 

XII

 

E seguia a visão. Do tempo à esquerda,

Mestras as faces, inclinada a fronte,

Da noite as larvas tinham sobre o solo

Fito o espantado olhar, e as dilatadas

Baças pupilas lhes tingia o susto.

Mas, como zona lúcida de estrelas,

Nessa atmosfera crassa e afogueada

Pela espada rugem te, refulgiam

Da direita os espíritos, banhado

De inenarrável placidez seu busto.

Era inteiro o silêncio, e no silêncio

Uma voz ressoou: «Eleitos, vinde!

Ide, preditos!» Vacilava a Terra,

E ajoelhando eu me curvei tremendo.

 

XIII

 

Quando me ergui e olhai, no céu profundo

Um rastilho de luz pura e serena

Se ia embebendo nesses mares se orbes

Infinitos, perdidos no infinito,

A que chamamos o universo. Um hino

De saudade e de amor, quase inaudível,

parecia romper desde as alturas

De tempo a tempo. Vinha como envolto

Nas lufadas do vento, até perder-se

Em sossego mortal.

                               O curvo tecto

Do templo, então, se condensou de novo,

E para a Terra o meu olhar volveu-se.

Da direita os espíritos radiosos

Já não estavam lá. Chispando a espaços,

Qual o ferro na incube, a espada do anjo

O mortiço rubor mandava, apenas,

Da aurora boreal quando se extingue.

 

XIV

 

Prosseguia a visão. Da esquerda às sombras

Ansiava o seio a dor. tinham no gesto

Impressa a maldição, que lhes secara

Eternamente a seiva da esperança.

 

Como se vê, em noite estiva e negra,

Cintilar sobre as águas a ardência,

Dumas frontes às outras vagueavam

Cerúleos lumes no esquadrão dos mortos,

E ao estalar das lousas, grito imenso

Subterrâneo, abafado e delirante,

Inefável compêndio de agonias,

Misturado se ouviu com rir do Inferno,

E a visão se de fez. era ermo o templo:

E despertei do pesadelo em trevas.

 

XV

 

Era loucura ou sonho? Entre as tristezas

e os terrores e angústias, que resume

Neste dia e lugar a avita crença,

Irresistível força arrebatou-me

Da sepultura a devassar segredos,

Para dizer:«Tremei! Do altar à sombra

Também há mau dormir de sono extremo!»

 

A justiça de Deus visita os mortos,

Embora a cruz da redenção proteja

A pedra tumular; embora a hóstia

Do sacrifício o sacerdote eleve

Sobre as vizinhas aras. Quando a igreja

Rodeiam trevas, solidão e medos.

Que a resguardam com as asas a curvadas

Da vista do que vive, a mão do Eterno

Separa o joio do bom grão e arroja

Para os abismos a ruim semente.

 

XVI

 

Não! – não foi sonho vão, vago delírio

De imaginar ardente. Eu fui levado,

Galgando além do tempo, às tardas horas,

Em que se passam cenas de mistério,

Para dizer: «Tremei! Do altar à sombra

Também há mau dormir de sono extremo!»

Vejo ainda o que vi: da sepultura

Ainda o hábito frio me enregela

O suor do pavor na fronte; o sangue

Hesita ignoto nas inertes veias;

E embora os lábios murmurar não ousem,

Ainda, incessante, me repete na alma

Íntima voz:«Tremei! Do altar à sombra

Também há mau dormir de sono extremo!»

 

XVII

 

Mas troa a voz do monge, e, enfim, desperto

O coração bateu. Eia, retumbem

Pelos ecos do templo os sons dos salmos,

Que em dia de aflição ignoto vate

Teceu, Banhado em dor. Talvez foi ele

O primeiro cantor que em várias cordas,

À sombra das palmeiras da Idumeia,

Soube entoar melodiosa um hino.

Deus inspira então os trovadores

Do seu povo querido, e a Palestina,

Rica dos meigos dons da natureza,

Tinha o ceptro, também, do entusiasmo.

Virgem o génio ainda, o estro puro

Louvava Deus somente, à luz da aurora,

E ao esconder-se o Sol entre as montanhas

De Bethoron. Agora o génio é morto

Para o Senhor. e os cantos, dissolutos

De Iodos o folguedo os ares rompem,

Ou sussurram por paços de tiranos,

As selados de pútrida lisonja,

Por preço vil, como o cantor que os tece.

 

XVIII

 

O salmo

 

Quando é grande o meu Deus!… Tê onde chega

      O seu poder imenso!

Ele abaixou os céus, desceu, calcando

      Um nevoeiro denso.

Dos querubins nas asas radiosas

      Li brando-se, voou;

E sobre turbilhões de rijo vento

      O mundo rodeou.

Ante o olhar do Senhor vacila a Terra,

      E os mares assustados

Bramem ao longe, e os montes lançam fumo,

      Da sua mão tocados.

Se pensou no universo, eis-o patente

      Ante a face do Eterno:

Se o quis, o firmamento os seios abre,

      Abre os seios o Inferno.

Dos olhos do Senhor, homem, se podes,

      Esconde-te um momento:

Vê onde encontrarás lugar que fique

      Da sua vista isento:

Sobe aos Céus, transpõe mares, busca o abismo,

      Lá teu Deus hás-de achar;

Ele te guiará, e a dextra sua

      Lá te há-de sustentar:

Desce à sombra da noite, e no manto

       Envolver-te procura…

Mas as trevas para ele não são trevas,

      Nem é a noite escura.

No dia do furor, em vão buscaras

      Fugir ante o Deus forte,

Quando do arco tremendo, irado, impele

      Seta em pousa a morte.

Mas o que o teme dormirá tranquilo

      No dia extremo seu,

Quando na campa se rasgar da vida

     Das ilusões o véu.

 

XIXVisc%20Sant001

 

Calou-se monge: sepulcral silêncio

À sua voz seguiu-se. Uma toada

De órgão rompeu do coro. Assemelhava

O suspiro saudoso, e os ais de filha,

Que chora solitária o pai, que dorme

Seu último, profundo e eterno sono.

Melodias depois soltou mais doces

O severo instrumento: e ergueu-se o canto,

O doloroso canto do profeta,

Da pátria sobre o fado. Ele, que o vira,

Sentado entre ruínas, contemplando

Seu avito esplendor, seu mal presente,

A queda lhe chorou. Lá na alta noite,

Modulando o Nébel, via-se o vate

Nos derribados pórticos, abrigo

Do imundo esteio e gemedora poupa.

Extasiado – e a lua cintilando

Na sua calva fronte, onde pesavam

Anos e anos de dor. Ao venerando

Nas encovadas faces fundos regos

Tinham aberto as lágrimas. Ao longe,

Nas margens do Cédron, a rã grasnando

Quebrava a paz dos túmulos. Que túmulos

Era Sião! – o vasto cemitério

Dos fortes de Israel. Mais venturosos

Que seus irmãos, morreram pela pátria;

A pátria os sepultou dentro em seu seio.

Eles, em Babilónia, aos punhos ferros,

Passam de escravos miseranda vida,

Que Deus pesou seus crimes, e, ao pesar-os,

A dextra lhe vergou. Não mais no templo

A nuvem repousara, e os céus de bronze

Dos profetas aos rogos se amostravam.

O vate de Anatoth a voz soltara

Entre o povo infiel, de Eloha em nome:

Ameaças, promessas, tudo inútil;

De bronze os corações não se dobraram.

Vibrou-se a maldição. Bem como um sonho,

Jerusalém passou: sua grandeza

Somente existe em derrocadas pedras.

O vate de Anatoth, sobre seus restos,

Com triste canto deplorou a pátria.

Hino de morte alçou: da noite as larvas

O som lhe ouviram: esquálido esqueleto,

Rangendo os ossos, dentre a hera e musgos

Do pórtico do templo erguia um pouco,

Alvejando, a caveira.

Era-lhe alívio

Do sagrado cantor a voz suave

Desferida ao luar, triste, no meio

Da vasta solidão que o circundava.

O profeta gemeu: não era o estro,

Ou o vívido júbilo que outrora

Inspirara Moisés: o sentimento

Foi sim pungente de silêncio e morte,

Que da pátria lhe fez sobre o cadáver

A elegia da noite erguer e o pranto

Derramar da esperança e da saudade.

 

XX

 

A lamentação

 

Como assim jaz e solitária e queda

Esta cidade outrora populosa!

Qual viúva ficou e tributária

       A senhora das gentes.

Chorou durante a noite: em pranto as faces,

Sozinha, entregue à dor, nas penas suas

Ninguém a consolou: os mais queridos

       Contrários se tornaram.

Ermas as praças de Sião e as ruas,

Cobre-as a verde relva: os sacerdotes

Gemem; as virgens pálidas suspiram

       Envoltas na amargura.

Dos filhos de Israel nas cavas faces

Está pintada à macilenta fome;

Mendigos vão pedir, pedir a estranhos,

       Um pão de infâmia eivado.

O trémulo ancião, de longe, os olhos

Volve a Jerusalém, dela fugindo:

Vê-a, suspira, cai, e em breve expira

      Com seu nome nos lábios,

Que horror! – ímpias as mães os ternos filhos

Despedaçaram: bárbaras quais tigres,

Os sanguíneos membros palpitantes

No ventre sepultaram.

Deus, compassivo olhar volve a nós tristes:

Cessa de Te vingar! Vê-nos escravos,

Servos de servos em país estranho.

Tem dó de nossos males!

Acaso serás Tu sempre inflexível?

Esqueceste de todo a nação tua?

O pranto dos Hebreus não Te comove?

És surdo a seus lamentos?

 

XXI

 

Doce era a voz do velho: o som do Nablo

Sonoro: o céu sereno: clara a Terra

Pelo brando fulgor do astro da noite:

E o profeta parou. Erguidos tinha

Os olhos para o céu, onde buscava

Um raio de esperança e de conforto:

E ele calara já, e ainda os ecos,

Entre as ruínas sussurrando, ao longe

Liam os sons levar de seus queixumes.

 

XXII

 

Choro piedoso, o choro consagrado

Às desditas dos seus. Honra ao profeta!

Oh, margens do Jordão, país formoso

Que fostes e não sois, também suspiro

Condoído vos dou. Assim fenecem

Impérios, reinos, solidões tornados!…

Não: Nenhum deste modo: o peregrino

Pára em Palmira e pensa. O braço do homem

a sacudiu à Terra, e fez dormissem

o seu último sono os filhos dela -

E ele o veio dormir pouco mais longe…

Mas se chega a Sião treme, enxergando

Seus lacerados restos. Pelas pedras,

Aqui e ali dispersas, ainda escrita

Parece ver-se uma inscrição de agouros,

Bem como aquela que aterrou um ímpio,

Quando, no meio de ruidosa festa,

Blasfemava dos Céus, e mão ignota

O dia extremo lhe apontou dos crimes.

A maldição do Eterno está vibrada

Sobre Jerusalém! Quanto é terrível

A vingança de Deus! O Israelita,

Sem pátria e sem abrigo, vagabundo,

Ódio dos homens, neste mundo arrasta

Uma existência mais cruel que a morte,

E que vem terminar a morte e inferno.

Desgraçada nação! Aquele solo

Onde manava o mel, onde o carvalho,

O cedro e a palma o verde ou claro ou turvo,

Tão grato à vista, em bosques misturavam;

Onde o lírio e a cacem nos prados tinham

Crescimento espontâneo entre as roseiras,

Hoje, campo de lágrimas, só cria

Humilde musgo de escalvados cerros

 

XXIII

 

Ide vós a Mambré. Lá, bem no meio

De um vale, outrora de verdura ameno,

Erguia-se um carvalho majestoso.

Debaixo de seus ramos largos dias

Abraão repousou. Na Primavera

Vinham os moços adornar-lhe o tronco

De capelas cheirosas de boninas,

E correias gentis Traçar-lhe em roda.

Nasceu com o orbe a planta venerável,

Viu passar gerações, julgou seu dia

Final fosse o do mundo, e quando airosa

Por entre as densas nuvens se elevava,

Mandou o Nume aos aguilhões rugissem.

Eis-a por terra! As folhas, pouco a pouco,

Murcharam-se caindo, e o rei dos bosques

Serviu de pasto aos traga dores vermes.

 

Deus estendeu a mão: no mesmo instante

A vinha se mirrou: junto aos ribeiros

Da palestina os plátanos frondosos

Não mais cresceram, como dantes, belos:

O amento, em vez de relva, achou nos prados

Somente ingratas, espinhosas urzes.

No Gólgota plantada, a Cruz clamara

«Justiça!» A tal clamor hórrido espectro

No Moriá surgiu. Era seu nome

Assolação. E, despregando um grito,

Caiu com longo som de um povo a campa.

Assim a herança de Judá, outrora

Grata ao Senhor, existe só nos ecos

Do tempo que já foi, e que há passado

Como hora de prazer entre desditas.

……………………………………………………….

 

XXIV

 

Minha pátria onde existe?

                              É lá somente!

Oh, lembrança da Pátria acabrunhada

Um suspiro também tu me hás pedido;

Um suspiro também tu me hás pedido;

Um suspiro arrancado aos seios de alma

Pela ofuscada glória, e pelos crimes

Dos homens que ora são, e pelo opróbrio

da mais ilustre das nações da Terra!

 

A minha triste pátria era tão bela,

E forte, e virtuosa! e ora o guerreiro

E o sábio e o homem bom acolá dormem,

Acolá, nos sepulcros esquecidos,

Que a seus netos infames nada contam

Da antiga honra e pudor e eternos feitos.

O escravo português agrilhoado

Carcomer-se lhes deixa junto às lousas

Os decepados troncos desse arbusto,

Por mãos deles plantado à liberdade,

E por tiranos derribado em breve,

Quando pátrias virtudes se acabaram,

como um sonho da infância!…

                                O vil escravo,

Imerso em vícios, em bruteza e infâmia,

Não erguerá os macerados olhos

Para esses troncos, que destroem vermes

Sobre as cinzas de heróis, e, aceso em pejo,

Não surgirá jamais? Não há na Terra

Coração português que mande um brado

De maldição atroz, que vá cravar-se

Na vigília e no sono dos tiranos,

E envenenar-lhes o prazer por noites

De vil prostituição, e em seus banquetes

De embriaguez lançar fel e amarguras?

 

não! Bem como um cadáver já corrupto,

A Nação se dissolve: e em seu letargo

O povo, envolto na miséria, dorme.

 

XXV

 

Oh, Talvez, como o vate, ainda algum dia

terei de erguer à Pátria hino de morte,

Sobre seus mudos restos vagueando!

Sobre seus restos? Nunca! Eterno, escuta

Minhas preces e lágrimas: se em breve,

Qual jaz Sião, jazer deve Ulisses;

Se o anjo do extermínio há-de riscar-ta

Do meio das nações, que dentre os vivos

Risque também meu nome, e não me deixe

Na Terra vaguear, órfão de pátria.

 

XXVI

 

Cessou da noite a grão solenidade

Consagrada à tristeza e a memorandas

Recordações: os monges se prostraram,

A face unida à pedra. A mim, a todos,

Correm dos olhos lágrimas suaves

De compunção. Ateu, entra no templo;

Não temas esse Deus, que os lábios negam

E o coração confessa. A corda do arco

Da vingança , em que a morte se debruça,

Frouxa está; Deus é bom: entra no templo.

Tu, para quem a morte ou vida é forma,

Forma somente de mais puro barro,

Que nada crês, e em nada esperas, olha,

olha o conforto do cristão. Se o cálix

Da amargura a provar os Céus lhe deram,

Ele se consolou. bálsamo santo

Piedosa fé no coração lhe verte.

«Deus compaixão terá!» Eis seu gemido:

Porque esperança lhe sussurra em torno:

«Aqui, ou lá… a Providência é justa.»

Ateu, a quem o mal fizera escravo,

Teu futuro qual é? Quais são teus sonhos?

No dia da aflição emudeceste

Ante o espectro do mal. E a quem alçaras

O gemente clamor? Ao mar, que as ondas

Não altera por ti? Ao ar, que some

Pela sua amplidão as queixas tuas?

Aos rochedos alpestres, que não sentem,

Nem sentir podem teu gemido inútil?

Tua dor, teu prazer, existem, passam,

Sem  porvir, sem passado e sem sentido.

Nas angústias da vida, o teu consolo

O suicídio é só, que te promete

Rica messe  de gozo, a paz do nada!

E ai de ti, se buscaste, enfim, repouso,

No limiar da morte indo assentar-te!

Ali grita uma voz no último instante

Do lassamente: a voz aterradora

Da consciência é ela. E hás-de escutar-ta

Mau grado teu: e tremerás em sustos,

Desesperado aos Céus, cujo caminho a Eternidade

Com a vagarosa mão te vai cerrando,

Para guiar-te à solidão das dores,

Onde maldigas teu extremo arranco,

Onde maldigas a existência e a morte.

 

XXVII

 

Calou tudo no templo: o céu é puro,

A tempestade ameaçadora dorme.

No espaço imenso os astros cintilantes

O rei da criação louvam com hinos,

Não ouvidos por nós nas profundezas

Do nosso abismo. E aos cantos do universo,

Ante milhões de estrelas, que reclamam

O firmamento, ajuntará seu canto

Mesquinho trovador? Que vale uma harpa

Mortal no meio da harmonia etérea,

No concerto da noite? Oh, no silêncio,

Eu pequenino verme irei sentar-me

Aos pés da Cruz nas trevas do meu nada.

Assim se apaga a lâmpada nocturna

ao despontar do Sol o alvor primeiro:

Por entre a escuridão deu claridade;

Mas do dia ao nascer, que já rutila,

As torrentes de luz vertendo ao longe,

Da lâmpada o clarão sumiu-se, inútil,

Nesse fúlgido mar, que inunda a Terra.

A VozFlores%20no%20rio

 

É tão suave essa hora,

Em que nos foge o dia,

E em que suscita a Lua

Das ondas a ardência,

 

Se em alcantis marinhos,

Nas rochas assentado,

O trovador medita

Em sonhos enleado!

 

O mar azul se encrespa

Com a vespertina brisa,

E no casal da serra

A luz já se divisa.

 

E tudo em roda cala

Na praia sinuosa,

Salvo o som do remanso

Quebrando em furna algo usa.

 

Ali folga o poeta

Nos desvarios seus,

E nessa paz que o cerca

Bendiz a mão de Deus.

 

Mas despregou seu grito

A alcíone gemente,

E nuvem pequenina

Ergueu-se no ocidente:

 

E sobe, e cresce, e imensa

Nos céus negra flutua,

E o vento das procelas

Já varre a fraga nua.

 

Turba-se o vasto oceano,

Com hórrido clamor;

Dos vagalhões nas ribas

Expira o vão furor

 

E do poeta a fronte

Cobriu véu de tristeza;

Calou, à luz do raio,

Seu hino à natureza.

 

Pela alma lhe vagava

Um negro pensamento,

Da alcíone ao gemido,

Ao sibilar do vento.

 

Era blasfema ideia,

Que triunfava enfim;

Mas voz soou ignota,

Que lhe dizia assim:

 

«Cantor, esse queixume

Da núncia das procelas,

E as nuvens, que te roubam

miríades de estrelas,

 

E o frémito dos euros,

E o estourar da vaga,

Na praia, que revolve,

Na rocha, onde se esmaga,

Onde espalhava a brisa

Sussurro harmonioso,

Enquanto do éter puro

Descia o Sol radioso,

 

Tipo da vida do homem,

É do universo a vida:

Depois do afã repouso,

Depois da paz a lida.

 

Se ergueste a Deus um hino

Em dias de amargura;

Se te amostraste grato

Nos dias de ventura,

 

Seu nome não maldigas

Quando se turba o mar:

No Deus, que é pai, confia,

Do raio ao cintilar.

 

Ele o mandou: a causa

Disso o universo ignora,

E mudo está. O nume,

Como o universo, adora!»

 

 

oh, sim, trova blasfémia

Não manchará seu canto!

Brama a procela embora;

Pese sobre ele o espanto;

 

Que de sua harpa os hinos

Derramará contente

Aos pés de Deus, qual óleo

Do nardo reacendeste.

 

A Arrábida

 

I

 

Salve, ó vale do sul, saudoso e belo!

Salve, ó pátria da paz, deserto santo,

Onde não ruge a grande voz das turbas!

Solo sagrado a Deus, pudesse ao mundo

O poeta fugir, cingir-se ao ermo,

Qual ao freixo robusto a frágil hera,

e a romagem do túmulo cumprindo,

Só conhecer, ao despertar na morte,

Essa vida sem mal, sem dor, sem termo,

Que íntima voz contínuo nos promete

no trânsito chamado o viver do homem.

 

II

 

Suspira o vento no álamo frondoso;

as aves soltam matutino canto;

Late o lebréu na encosta, e o mar sussurra

Dos alcantis na base carcomida:

Eis o ruído de ermo! Ao longe o negro

Insondado oceano, e o céu cerúleo

Se abraçam no horizonte. Imensa imagem

Da eternidade e do infinito, salve!

 

III

 

Oh, como surge majestosa e bela,

Com viço da criação, a natureza

No solitário vale! E o leve insecto

E a relva e os matos e a fragrância pura

Das boninas da encosta estão contando

Mil saudades de Deus, que os há lançado,

Com mão profusa, no regaço ameno

Da solidão, onde se esconde o justo.

E lá campeiam no alto das montanhas

Os escalvados píncaros, severos,

Quais guardadores de um lugar que é santo,

Atalaias que ao longe o mundo observam,

Cerrando até o mar o último abrigo

Da crença viva, da oração piedosa,

Que se ergue a Deus de lábios inocentes.

 

Sobre esta cena o Sol verte em torrentes

Da manhã o fulgor; a brisa esvai-se

Pelos rosmaninhais, e inclina os topos

Do zimbro e alecrim eiró, ao rés sentados

Desses tronos de fragas sobrepostas,

Que alpestres matas de medronhos vestem;

O rocio da noite à branca rosa

No seio derramou frescor suave,

E inda existência lhe dará um dia.

 

Formoso ermo do sul, outra vez, salve!

 

IV

 

Negro, estéril rochedo, que contrastas,

Na mudez tua, o plácido sussurro

Das árvores do vale, que, vicejam

Ricas de encantos, com a estação propícia;

Suavíssimo aroma, que, manando

Das variegadas flores, derramadas

na sinuosa encosta da montanha,

Do altar da solidão subindo aos ares,

És digno incenso ao Criador erguido;

Livres aves, vós filhas da espessura,

Que só teceis da natureza os hinos,

O que crê, o cantor, que foi lançado,

Estranho ao mundo, no bulício dele,

Vem saudar-vos, sentir um gozo puro,

Dos homens esquecer paixões e opróbrio,

E ver, sem ver-lhe a luz prestar a crimes,

O Sol, e uma só vez pura saudar-lha.

 

Convosco eu sou maior; mais longe a mente

Pelos seios dos Céus se imerge livre,

E se desprende de mortais memórias

Na solidão solene, onde, incessante,

Em  cada pedra, em cada flor, se escuta

Do Sempiterno a voz, e vê-se impressa

A dextra sua em multiforme quadro.

 

V

 

Escalvado penedo, que repousas

Lá no cimo do monte, ameaçando

Ruína ao roble secular da encosta,

Que sonolento move a coma estiva

Ante a aragem do mar, foste formoso;

Já te cobriram crespares vi rentes;

Mas o tempo voou, e nele envolta

A formosura tua. Despedidos

Das negras nuvens o chuveiro espesso

E o granizo, que o solo fustigando

Tritura a tenra lanceolada relva,

Durante largos séculos, no inverno,

Dos vendavais no dorso a ti desceram,

Qual amplo ex-o brutal de ardor grosseiro,

Que,  maculando virginal pureza,

Do pudor varre a auréola celeste,

E deixa, em vez de um serafim na Terra,

Queimada flor que devorou o raio.

 

VI

 

Caveira da montanha, ossada imensa,

É tua campa o céu: sepulcro o vale

Um dia te será. Quando sentires

Rugir com som medonho a Terra ao longe,

Na expansão dos vulcões, e o mar, bramido,

Lançar à praia vagalhões cruzados;

Tremer-te a larga base, e sacudir-te

De sobre si, o fundo deste vale

Te vai servir de túmulo; e os carvalhos

do mundo primogénitos, e os sobres,

Arrastados por ti lá da colina,

Contigo hás-de jazer. De novo a terra

Te cobrirá o dorso sinuoso:

Outra vez sobre ti nascendo os lírios,

Do seu puro candor hás-de-te adornar;

E tu, ora medonho e nu e triste,

Ainda belo serás, vestido e alegre.

 

VII

 

Mais que o homem feliz! Quando eu no vale

Dos túmulos cair; quando uma pedra

Os ossos me esconder, se me for dada,

Não mais reviverei; não mais meus olhos

Verão, ao pôr-se, o Sol em dia estivo,

Se em Turbilhões de púrpura, que ondeiam

Pelo extremo dos céus sobre o ocidente,

Vai provar que um Deus há a estranhos povos

E além das ondas trémulo sumir-se;

Nem, quando, lá do cimo das montanhas,

Com torrentes de luz inunda as veigas:

Não mais verei o refulgir da Lua

No irrequieto mar, na paz da noite,

Por horas em que vela o criminoso,

A quem íntima voz rouba o sossego,

E em que o justo descansa, ou, solitário,

Ergue ao Senhor um hino harmonioso.

 

VIIIDeus

 

Ontem, Sentado num penhasco, e perto

Das águas, então quedas, do oceano,

eu também o louvei sem ser um justo:

E meditei, e a mente extasiada

Deixei correr pela amplidão das ondas.

 

Como abraço materno era suave

A aragem fresca do cair das trevas,

Enquanto, envolta em glória, a clara Lua

Sumia em seu fulgor milhões de estrelas.

 

Tudo calado  estava: o mar somente

As harmonias da criação soltava

Em  seu rugido; e o ulmeiro do  deserto

Se agitava, gemendo e murmurando,

Ante o sopro de oeste: ali dos olhos

O pranto me correu, sem que o sentisse,

E aos pés de Deus se derramou minha alma.

 

IX

 

OH, que viesse o que não crê, comigo

À vice jante Arrábida de noite,

E se assentasse aqui sobre estas fragas,

Escutando o sussurro incerto e triste

Das  movediças ramas, que povoa

De saudade e de amor nocturna brisa;

Que visse a Lua, o espaço opresso de astros,

E ouvisse o mar soando: ele chorara,

Qual eu chorei, as lágrimas do gozo,

E, adorando o Senhor, detestaria

De uma ciência vã seu vão orgulho.

 

X

 

É aqui neste vale, ao qual não chega

Humana voz e o tumultuar das turbas,

Onde o nada da vida sonda livre

O coração, que busca ir abrigar-se

No futuro, e debaixo do amplo manto

Da piedade de Deus: aqui, solene,

Brado a montanha, memorando a morte.

 

Essas penhas, que, lá no alto das serras

Nuas, cestadas, solitárias dormem,

Parecem imitar da sepultura

O aspecto melancólico e o repouso

Tão desejado do que em Deus confia.

Bem semelhante à paz, que se há sentado

Por séculos, ali, nas cordilheiras

É o silencio do adro, onde reúnem

Os ciprestes e a Cruz, o Céu e a Terra.

 

Como tu vens cercado de esperança,

Para o inocente, ó plácido sepulcro!

Junto das tuas bordas pavorosas

O perverso recua horrorizado:

Após si volve os olhos: na existência

Deserto árido só descobre ao longe,

Onde a virtude não deixou um trilho.

Mas o justo, chegando à meta extrema,

Que separa de nós a eternidade,

Transpõe-na sem temor, e em Deus exulta.

O infeliz e o feliz lá dormem ambos,

Tranquilamente: e o trovador mesquinho,

Que peregrino vagueou na Terra,

Sem encontrar um coração ardente

Que o entendesse, a pátria de seus sonhos,

Ignota, por lá buscar; e quando as eras

Vierem junto às cinzas colocar-lhe

Tardios louros, que escondera a inveja,

Ele não erguerá a mão mirrada,

Para os cingir na regelada fronte.

Justiça, glória, amor, saudade, tudo,

Ao pé da sepultura, é som perdido

De harpa eólia esquecida em brenha ou selva:

O despertar um pai, que saboreia

Entre os braços da morte o extremo sono,

Já não é dado ao filial suspiro;

Em vão o amante, ali, da amada sua

De rosas sobre a coroa debruçado,

Rega de amargo pranto as murchas flores

E a fria pedra: a pedra é sempre fria,

E para sempre as flores se murcharam.

 

XI

 

Belo ermo! eu hei-de amar-te enquanto esta alma,

Aspirando o futuro além da vida

E um hálito dos Céus, gemer atada´

À coluna do exílio, a que se chama

Em língua vil e mentirosa o mundo.

Eu hei-de amar-te, ó vale, como um filho

Dos sonhos meus. A imagem do deserto

Guardarei-a no coração, bem junto

Com minha fé, meu único tesouro.

 

Qual pomposo jardim de verme ilustre,

Chamado rei ou nobre, há-de contigo

Comparar-se, ó deserto? Aqui não cresce

Em vaso de alabastro a flor cativa,

Ou árvore educada por mão de homem,

Que lhe diga: «És escrava», e erga um ferro

E lhe decepe os troncos. Como é livre

A vaga do oceano, é livre no ermo

A bonina rasteiro ou freixo altivo!

Não lhe diz: «nasce aqui, ou lá não cresças»

Humana voz. Se baqueou o freixo,

 

Deus mandou: se a flor pendida murcha,

É que o rocio não desceu de noite,

E da vida o Senhor lhe nega a vida.

 

Céu livre, Terra livre, e livre a mente,

Paz íntima, e saudade, mas saudade

Que não dói, que não mirra, e que consola,

São as riquezas do ermo, onde sorriem

Das procelas do mundo os que o deixaram.

 

XII

 

Ali naquela encosta, ontem de noite,

Alvejava por entre os medronheiros

Do solitário a habitação tranquila:

E eu vagueei por lá. Patente estava

O pobre albergue do eremita humilde,

Onde jazia o filho da esperança

Sob as asas de Deus, à luz dos astros,

Em leito, duro sim, não de remorsos.

Oh, com quanto sossego o bom do velho

Dormia! A leve aragem lhe ondeava

As raras cãs na fronte, onde se lia

A bela história de passados anos.

De alto choupo através passava um raio

Da Lua – astro de paz, astro que chama

Os olhos para o céu, e a Deus a mente -

E em luz pálida as faces lhe banhava:

E talvez neste raio o Pai celeste

Da pátria eterna lhe enviava a imagem,

Que o sorriso dos lábios lhe fugia,

Como se um sonho de ventura e glória

Na Terra de antemão o consolasse.

e eu comparei o solitário obscuro

Ao inquieto filho das cidades:

Comparei o deserto silencioso

Ao perpétuo ruído que sussurra

Pelos palácios do abastado e nobre,

Pelos paços dos reis; e condoí-me

Do  cortesão soberbo, que só cura

De honras, haveres, glória, que se compram

Com maldições e perene remorso.

Glória! a sua qual é? Pelas campinas,

Cobertas de cadáveres, regadas

De negro sangue, ele sugou seus louros;

Louros que vão cingir-lhe a fronte altiva

Ao som do choro da viúva e do órfão;

Ou, dos sustos senhor, em seu delírio

Os homens, seus irmãos, flagela e oprime.

Lá o filho do pó se julga um nume,

Porque a Terra o adorou; o desgraçado

Pensa, talvez, que o verme dos sepulcros

Nunca se há-se chegar para tragar-o

Ao banquete da morte, imaginando

Que uma laje a de mármore, que esconde

O cadáver do grande, é mais durável

Do que esse chão sem inscrição, sem nome,

Por onde o opresso, o mísero, procura

O repouso, e se atira aos pés do trono

Do Omnipotente, a demandar justiça

Contra os fortes do mundo, os seus tiranos.

 

XIII

 

Ó cidade, cidade, que transbordas

De vícios, de paixões e de amarguras!

Tu lá estás, na tua pompa envolta,

Soberba prostituta, alardeando

Os teatros, e os paços, e o ruído

Das carroças dos nobres reclamadas

De ouro e prata, e os prazeres de uma vida

Tempestuosa, e o tropear continuo

Dos férvidos ginetes, que a levantam

O pó e o lodo cortesão das praças;

E as gerações corruptas de teus filhos

Lá se revoltam, qual montão de vermes

Sobre um cadáver pútrido! Cidade,

Branqueado sepulcro, que misturas

A opulência, a miséria, a dor e o gozo,

Honra e infâmia, pudor e impudicícia,

Céu e Inferno, que és tu? Escárnio ou glória

Da humanidade? O que o souber que o diga!

 

Bem negra avulta aqui, na paz do vale,

A imagem desse povo, que reflui

Das moradas à rua, à praça, ao templo;

Que adora Deus, e que o pragueja, e o teme;

Absurdo misto de baixeza extrema

E de extrema ousadia; vulto enorme,

Ora aos pés de um vil déspota estendido,

Ora surgindo, e arremessando ao nada

As memórias dos séculos que foram,

E depois sobre o nada adormecendo.

 

Vê-o, rico de opróbrio, ir assentar-se

Em joelhos nos átrios dos tiranos,

Onde, entre o lampejar de armas de servos,

O servo popular adora um tigre?

Esse tigre é o ídolo do povo!

Saudai-o; que ele o manda: abençoai-lhe

Ó férreo ceptro: ide folgar em roda

De cadafalsos, povoados sempre

De vítimas ilustres, cujo arranco

Seja como harmonia, que adormente

Em seus terrores o senhor das turbas.

Passai depois. Se a mão da Providência

Esmigalhou a fronte à tirania;

Se o déspotas caiu, e está deitado

No lodaçal da sua infâmia, a turba

Lá vai buscar o ceptro dos terrores,

E diz: «É meu»; e assenta-se na praça,

E envolta em roto manto, e julga, e reina.

Se um ímpio, então, na afogueada boca

De vulcão popular sacode um facho,

Eis o incêndio que muge, e a lava sobe,

E referve, e transborda, e se derrama

Pelas ruas além: clamor retumba

De anarquia impudente, e o brilho de armas

Pelo escuro transluz, como um presságio

De assolação, e se amontoam vagas

Desse mar de abjecção, chamado o vulgo;

Desse vulgo, que ao som de infernais hinos

Cava fundo da Pátria a sepultura,

Onde, abraçando a glória do passado

E do futuro a última esperança,

As esmaga consigo, e ri morrendo.

 

Tal és, cidade, licenciosa ou serva!

Outros louvem teus paços sumptuosos,

Teu ouro, teu poder: senti na impura

De corrupções, teus não serão meus hinos!

 

XIVf932004

 

Cantor da solidão, vim assentar-me

Junto do verde Cepeda do vale,

E a paz de Deus do mundo me consola.

 

Avulta aqui, e alveja entre o arvoredo,

Um pobre conventículo. Homem piedoso

O a levantou há séculos, passando,

Como orvalho do céu, por este sítio,

De virtudes depois tão rico e fértil.

Como um pai se seus filhos rodeado,

Pelos matos do outeiro o vão cercando

Os tugúrios de humildes eremitas,

Onde o cilício e a compunção apagaram

Da lembrança de Deus passados erros

Do pecador, que reclinou a fronte

Penitente no. O sacerdote

Dos remorsos lhe ouviu as amarguras;

E perdoou-lhe, e consolou-o em nome

Do que expirando perdoava, o Justo,

Que entre os humanos não achou piedade.

 

XV

 

Religião! do mísero conforto,

Abrigo extremo de alma, que há mirrado

O longo agonizar de uma saudade,

Da desonra, do exílio, ou da injustiça,

Tu consolas aquele, que ouve o Verbo,

Que renovou o corrompido mundo,

E que mil povos pouco a pouco ouviram.

Nobre, plebeu, dominador, ou servo,

O rico, o pobre, o valoroso, o fraco,

Da desgraça no dia ajoelharam

No limiar do solitário templo.

Ao pé desse portal, que veste o musgo,

Encontrou-os chorando o sacerdote,

Que da serra descia à meia-noite,

Pelo sino das preces  convocado:

Aí os viu ao despontar do dia,

Sob os raios do Sol, ainda chorando,

Passados meses, o burel grosseiro,

O leito de cortiça, e a fervorosa

E continua oração foram cerrando

Nos corações dos míseros as chagas,

Que o mundo sabe abrir, mas que não cura.

Aqui, depois, qual hálito suave.

Da primavera, lhes correu a vida,

Até sumir-se no adro do convento,

Debaixo de uma laje a tosca e humilde,

Sem nome, nem palavra, que recorde

O que a terra abrigou no sono extremo.

 

Eremitério antigo, oh, se pudesses

Dos anos que lá vão contar a história;

Se ora, à voz do cantor, possível fosse

transudar desse chão, gelado e mudo,

O mudo pranto, em noites dolorosas,

Por náufragos do mundo derramado

Sobre ele, e aos pés da Cruz!… Se vós pudésseis,

Broncas pedras, falar, o que diríeis!

 

Quantos nomes mimosos da ventura

Convertidos em fábulas das gentes,

Despertariam o eco das montanhas,

Se os negros troncos do sobreiro antigo

Mandasse o Eterno sussurrar a história

Dos que vieram desnudar-lhe o cepo,

Para um leito formar, onde velasse

da mágoa, ou do remorso, as longas noites!

Aqui veio, talvez, buscar asilo

Um poderoso, outrora anjo da Terra

Despenhado nas trevas do infortúnio;

Aqui gemeu, talvez, o amor traído,

Ou pela morte convertido em cancro

De infernal desespero; aqui soaram

Do arrependimento os últimos gemidos,

Depois da vida derramados em gozos,

Depois do gozo convertido em tédio.

Mas quem foram? Nenhum, depondo em terra

Vestidura mortal, deixou vestígios

De seu breve passar. E isso que importa,

Se Deus o viu; se as lágrimas do triste

Ele contou, para as pagar com glória?

 

XVI

 

Ainda em curvo outeiro, ao fim da senda

Que serpe ia do monte ao fundo vale,

Como um farol de vida em mar de escolhos:

Ao cristão infeliz acolhe no ermo,

E consolando-o, diz-lhe:«A pátria tua

É lá no Céu: abraça-te comigo.»

Junto dela esses homens, que passaram

A curvados na dor, as mãos ergueram

Para o Deus, que perdoa, e que é conforto

Dos que aos pés deste símbolo da esperança

Vêm derramar seu coração aflito:

É do deserto a história, a cruz e a campa;

E sobre tudo o mais pousa o silêncio.

 

XVII

 

Feliz da Terra, os monges não maldigas;

Do que em Deus confiou não escarneças!

Folgando segue a trilha, que há juncado,

Para teus pés, de flores a fortuna,

E sobre a morta crença em paz descansa.

Que mal te faz, que gozo vai roubar-te

O que ensanguenta os pés no tojo agreste,

E sobre a fria pedra encosta a fronte?

Que mal te faz, uma oração erguida,

Nas solidões, por voz sumida e frouxa,

E que, subindo aos Céus, só Deus escuta?

Oh, não insultes lágrimas alheias,

E deixa a fé ao que não tem mais nada!…

 

E se estes versos te contristam, rasga-os.

Teus menestréis te venderão seus hinos,

Nos banquetes opíparos, enquanto

O negro pão repartirá comigo,

Seu trovador, o pobre anacoreta,

Que não te inveja as ditas, como as coroas

do prazer ao cantor eu não invejo:

Tristes coroas, sob as quais às vezes

Está gravada uma inscrição de infâmia.

 

 

Mocidade e Morte

 

Só levantado o corpo, os olhos fitos,

As magras mãos cruzadas sobre o peito,

Vede-o, tão moço, velador de angústias,

Pela alta noite em solitário leito.

 

Por essas faces pálidas, cavadas,

Olhai, em fio as lágrimas deslizam;

E com o pulso, que apressado bate,

Do coração os estios harmonizam.

 

É que nas veias lhe circula a febre;

É que a fronte lhe alaga o suor frio;

É que lá dentro à dor, que o vai roendo,

Responde horrível íntimo cicio.

 

Encostando na mão o rosto aceso,

Fitou os olhos húmidos de pranto

Na lâmpada mortal ali pendente,

E lá consigo modulou um canto.

 

é um hino de amor e de esperança?

Resignado na dor, saúda a morte,

Ou vibra aos céus Blasfémia de impiedade?

 

É isso tudo, tumultuando incerto

No delírio febril daquela mente,

Que, balouçada à borda do sepulcro,

Volve após si a vista longamente.

 

É a poesia a murmurar~lhe na alma

Última nota de quebrada lira;

É o gemido do tombar do cedro;

É triste adeus do trovador que expira.

 

Desesperança

 

Meia-noite bateu, volvendo ao nada

Um dia mais, e caminhando eu sigo!

Vejo-te bem, ó campa misteriosa…

Eu vou, eu vou! breve serei contigo!

 

Qual tufão, que ao passar agita o pego,

Meu plácido existir turvou a sorte.

Hábito impuro de pulmões ralados

Me diz que neles se assentou a morte:

Enquanto mil e mil no largo mundo

Dormem em paz sorrindo, eu velo e penso,

E julgo ouvir as preces por finados,

E ver a tumba e o fumegar do incenso.

 

Se dormito um momento , acordo em susto;

Pulos me dá o coração no peito,

E abraço e beijo de uma vida extinta

O último sócio, o doloroso leito.

 

De um abismo insondado às agras bordas

Insanável doença me há guiado,

E disse-me. «No fundo o esquecimento.

Desce; mas desce com andar pausado.»

 

E eu lento vou descendo, e sondo as trevas:

Busco parar; parar um estante!

Mas a cruel, travando-me da dextra,

Me faz cair mais fundo, e grita. «Avante!»

 

Porque escutar o trânsito das horas?

Algumas delas traz-me-a conforto?

Não! Esses golpes, que no bronze ferem,

São para mim como dobrar por morto.

 

«Morto!, morto!» me clama a consciência:

Diz-mo este respirar rouco e profundo.

Ai!, porque fremes, coração de fogo,

Dentro de um seio corrompido e imundo?

 

Beber um ar diáfano e suave,

Que renovou da tarde o brando vento,

E converter-o, no aspirar contínuo,

Em bafo apodrecido e peçonhento!

 

Estender para o amigo a mão mirrada,

E ele  negar a mão ao pobre amigo;

Querer unir ao seio descarnado,

E ele fugir, temendo o seu perigo!

 

E ver após um dia ainda cem dias,

Nus de esperança, férteis de amargura;

Socorrer-me ao provir, e acha-o um ermo,

E só, bem lá no extremo, a sepultura!

 

Agora!… Quando a vida me sorria:

Agora!… que meu estro se acendera,

Que eu me enlaçava a um mundo de esperanças,

Como se enlaça pelo choupo a hera,

 

Deixar tudo, e partir, sozinho e mudo;

Varrer-me o nome escuro esquecimento:

Não ter um eco de louvor, que afague

Do desgraçado o humilde monumento!

 

Ó tu, sede de um nome glorioso,

Que tão fagueiros sonhos me tecias,

Fugiste, e só me resta a pobre herança

De ver a luz do sol mais alguns dias.

 

Vestem-se os campos do ver dor primeiro:

Já das aves canções no bosque ecoam:

Não para mim, que só escuto atento

Funéreos dobres que no templo soam!

 

Eu  que existo, e que penso, e falo, e vivo,

Irei tão cedo repousar na terra?!

Oh, meu Deus, oh,meu Deus!, um ano ao menos;

Um louro só… e meu sepulcro cerra!

 

É tão bom respirar, e a luz brilhante

Do sol oriental saudar no outeiro!

Ai, na manhã saudar-a posso ainda;

Mas será este Inverno o derradeiro!

 

Quando de pomos o ver gel for cheio;

Quando ondear o trigo na planura;

Quando pender com áureo fruto a vide

Eu também penderei na sepultura.

 

Dos que me cercam no turba do aspecto,

Na voz que prende desusado enleio,

No pranto a furto. no fingido riso

Fatal sentença de morrer eu leio.

 

Vistes vós criminoso, que hão lançado

seus juízes nos transis da agonia,

Em oratório estreito, onde não entra

Suavíssima luz do claro dia;

 

Diante a cruz, ao lado o sacerdote,

O cadafalso, o crime, o algoz na mente,

O povo tumultuando, o extremo arranco,

E Céu, e Inferno, e as maldições da gente?

 

Se adormece, lá surge um pesadelo,

Com os martírios da sua alma acorde;

Desperta logo, e à terra se arremessa,

E os punhos cerra, e delirante os morde.

 

Sobre as laje as do duro pavimento

De vergões e de sangue o rosto cobre.

Ergue-se e escuta com cabelos hirtos

Do sino ao longe o compassado dobre.

 

Sem esperança!…

                   Não! Do cadafalso

Sobe as escadas o perdão às vezes;

Porém a mim… Não me dirão:«És salvo!»

E o suplício durará por meses.

 

Dizer posso:«Existe: que a dor conheço!»

Do gozo a taça só provei por horas:

E serei teu, calado cemitério,

Que engenho, glória, amor, tudo devoras.

 

Se o furacão rugir, e o débil tronco

De árvore tenra despedaçou passado,

Quem se doeu de a ver jazendo em terra?

Tal é o meu destino miserando!

 

Númen de santo amor mulher querida,

Anjo do Céu, encanto da existência,

Ora por ti me salve a mão da providência.

 

Vem: aperta-me a dextra… Oh, foge, foge!

Um beijo ardente aos lábios teus voara:

E neste beijo venenoso a morte

Talvez este infeliz só te entregara!

 

Se eu pudesse viver… como teus dias

Cercaria de amor suave e puro!

Como te fora plácido o presente;

Quando risonho o aspecto do futuro!

 

Porém, medonho espectro ante meus olhos,

Como sombras infernal perpétuo ondeia,

Bradando-me que vai partir-se o fio

Com que da minha vida se urde a teia.

 

Entregue à sedução enquanto eu durmo,

No turbilhão do mundo hei-de deixar-te!

Quem velará por ti, pomba inocente?

Quem do perjúrio poderá salvar-te?

 

Quando eu serrar os olhos moribundos

Tu verterás por mim pranto saudoso;

Mas quem me diz que não virá o riso

Banhar teu rosto triste e lacrimoso?

 

Ai, o extinto só herda o esquecimento!

Um novo amor te agitará o peito:

E a dura laje a cobrirá meus ossos

Frios, despidos sobre térreo leito!…

 

Ó Deus, porque este cálix de agonia

Até as bordas de amargor me encheste?

Se eu devia acabar na juventude,

Porque entre nós a campo há-de assentar-se?

Tua suprema paz com gozo ou dores

Do mortal, que em ti crê, pode  turvar-se?

 

Não haver quem me salve! e vir um dia

Em que de minha o nome ainda lhe desse!

Então, Senhor, o umbral da eternidade,

Talvez sem um queixume, transpusesse.

 

Mas, qual flor em botão pendida e murcha,

Sem fragrâncias perfumar a brisa,

Eu poeta, eu amante, ir esconder-me

Sob uma lousa desprezada e lisa!

 

Porquê? Qual foi meu crime, ó Deus terrível?

Em te adorar que fui, senão insano?…

O teu fatal poder hoje maldigo!

O que te chama pai, mente: és tirano.

 

E se aos pés de teu trono os ais não chegam;

Se os gemidos da terra os ares somem;

Se a Providência é crença vã, menti da,

Porque geraste a inteligência do homem?

 

 

Porque da virgem no sorrir pudeste

Santo presságio de suprema dita,

E apontaste ao poeta a imensidade

Na ânsia de glória que em sua alma habita?

 

a imensidade!… E que me importa herdar-a,

Se na Terra passei sem ser sentido?

Que vale eterno vaguear no espaço,

Se nosso nome se afundou no olvido?

 

O Anjo-da-guardaAnjosdaHumanidade

 

Ímpio, silêncio! A tua voz blasfema

Da noite a paz perturba.

Verme, que te rebelas

Sob a mão do Senhor,

Vês os milhões de estrelas

De nítido fulgor,

Que, em ordenada turba,

a Deus entoam incessantes hinos?

Quantas vezes apaga

Do livro da existência

Um orbe a mão do Eterno!

E o belo astro que expira

Maldiz a mão que o esmaga?

Acaso pára o cântico superno?

Ou apenas suspira

O moribundo,

que se chamava um mundo?

Quem vai pôr uma campa sobre os restos

Desse inerte planeta,

Que o destrutor comenta

Incinerou na rápida passagem?

e tu, átomo obscuro,

Que varre à tarde a aragem,

Soltas do seio impuro

Maldição insensata,

Porque o teu Deus te evoca à eternidade?

Que é o viver? O umbral, a que um momento

O espírito, surgindo

Das solidões do nada

À voz do Criador, se encosta, e atento

Contempla a luz e o céu; donde desata

seu voo à imensidade.

Germe acaso o passarinho

De saudade,

Quando as asas expande, e deixa o ninho

A vez primeira, a mergulhar nos ares?

Volve olhos lacrimosos

aos mares tormentosos

O navegante, quando aproa às planjas

Da pátria suspirada?

Porque morres?! Pergunta à Providência

Porque te fez nascer.

Qual era o teu direito a ver o mundo

Teu jus à existência?

Olha no Outono o ulmeiro

Que o vendaval agita,

E cujas ténues folhas

Aos centos precipita.

São a folha do ulmeiro o nome e a fama,

E o amor dos humanos:

Ao nada do que foi assim se atiram

No vórtice dos anos.

Que é a glória na terra? Um eco frouxo,

Que somem mil ruídos.

E a voz da Terra o que é, na voz imensa

Das orbes reunidos?

Amor! amor terreno!…Ai, se pudesses

Compreender a amargura,

Com que te choro, ó alma transviada!

Eu, que te amei do berço, e qual doçura

Há no afecto que liga o anjo ao homem,

Rindo despiras esse corpo enfermo,

Para te unir a mim, para aspirares

O gozo celestial de amor sem termo!

Alma triste, que mesquinha

Te debruças sobre o Inferno,

Ouve o anjo, pobrezinha,

Vem ao gozo sempiterno.

Resigna-te e espera, e os dias de prova

Serão para o crente quais breves instantes.

Tomar-te-ai nos braços no transe da morte,

Fendendo o infinito com as asas radiantes.

Depois, das alturas teu térreo vestido

Sorrindo veremos na terra guardar

E o hino de hossana nos coros celestes

A voz de um remido iremos juntar.

 

A Graça

 

Que harmonia suave

É esta, que na mente

Eu sinto murmurar,

Ora profunda e grave,

Ora meiga e cadente,

Ora que faz chorar?

Porque da morte a sombra,

Que para mim em tudo

Negra se reproduz,

Se aclara, e desassombra

Seu gesto carrancudo,

Banhada em branda luz?

Porque no coração

Não sinto pesar tanto

O férreo pé da dor,

E o hino da oração,

Em vez de irado canto,

Me pede íntimo ardor?

 

És tu, meu anjo, cuja voz divina

Vem consolar a solidão do enfermo,

E a contemplar com placidez o ensina

De curta vida o derradeiro termo?

 

Oh, sim! és tu, que na infantil idade,

Da aurora à frouxa luz,

Me dizias; «Acorda, inocentinho,

Fazei o sinal da Cruz.»

És tu, que eu via em sonhos, nesses anos

Da inda puro sonhar,

Em nuvem de ouro e púrpura descendo

Com as roupas a alvejar.

És tu, és tu!, que ao pôr do Sol, na veiga,

Junto ao bosque fremente,

Me contavas mistérios, harmonias

Dos Céus, do mar dormente.

És tu, és tu!, que, lá, nesta alma absorta

Modulavas o canto,

Que de noite, ao luar, sozinho erguias

Ao Deus três vezes santo,

És tu, que eu esqueci na idade ardente

Das paixões juvenis,

E que voltas a mim, sincero amigo,

Quando sou infeliz.

Sinto a tua voz de novo,

Que me reevoca a Deus:

Inspira-me a esperança,

Que te seguiu dos Céus|…

Resignação

 

No teu seio, reclinado

Dormirei, Senhor, um dia,

Quando for na terra fria

Meu repouso procurar;

 

Quando a lousa do sepulcro

Sobre mim tiver caído,

e este espírito afligido

Vir a tua luz brilhar!

 

No teu seio, de pesares

O existir não se entretece;

Lá eterno o amor floresce;

Lá floresce eterna paz;

 

Lá bramir junto ao poeta

Não irão paixões e dores,

Vãos desejos, vãos temores

Do desterro em que ele jaz.

 

Hora extrema, eu te saúdo!

Salve, ó trevas da jazida,

Donde espera erguer-se à vida

Meu espírito imortal!

 

Anjo bom, não me abandones

Neste transe dilatado;

Que contrito, resignado,

Me acharás na hora fatal.

 

E depois… perdoa, ó anjo,

Ao amor do moribundo,

Que só deixa neste mundo

Pouco pó, muito gemer.

 

Oh… depois… dizei à mesquinha

Um segredo de doçura:

Que na pátria o amor se apura,

Que o desterro viu nascer.

 

Que é o Céu a pátria nossa;

Que é o mundo exílio breve;

Que o morrer é causa leve;

Que é princípio, não é fim:

 

Que duas almas que se amaram

Vão lá ter nova existência,

Confundidas numa essência,

A de um novo querubim.

 

Deus

 

Nas horas do silêncio, à meia-noite,

        Eu louvarei o Eterno!

Ouçam-me a Terra, e os mares rugidores,

        E os abismos do Inferno.

Pela amplidão dos Céus meus cantos soem,

        E a Lua resplendente

Pare em seu giro, ao ressoar nesta harpa

       O hino do Omnipotente.

 

Antes de tempo haver, quando o infinito

       Media a eternidade,

E só do vácuo as solidões enchia

       De Deus a imensidade,

Ele existia, em sua essência envolto,

        E fora dele o nada:

No seio do Criador a vida do homem

        Estava ainda guardada:

Ainda então do mundo os fundamentos

        Na mente se escondiam

De Jeová, e os astros fulgurantes

        Nos céus não se volviam.

 

Eis o Tempo, o Universo, o Movimento

       Das mãos solta o Senhor:

Surge o Sol, banha a Terra, e desabrocha

        Nesta a primeira flor:

Sobre o invisível eixo range o globo:

       O vento o bosque ondeia:

Retumba ao longe o mar: da vida a força

       A natureza anseia!

 

Quem, dignamente, ó Deus, há-de louvar-Te,

       Ou cantar Teu poder?

Quem dirá de Teu braço as maravilhas,

       Fonte de todo o ser,

No dia da Criação; quando os tesouros

       Da neve amontoaste;

Quando da Terra nos mais fundos vales

       As águas encerraste?!

 

E eu onde estava, quando o Eterno os mundos.

       Com dextra poderosa,

Fez, por lei imutável, se liberassem

       Na mole ponderosa?

Onde existia então? No tipo imenso

       Das gerações futuras;

Na mente do meu Deus. Louvor a Ele

       Na Terra e nas alturas!

Oh, quanto é grande o rei das tempestades,

      Do raio, e do trovão!

Quão grande o Deus, que manda, em seco estio,

      Da tarde a vi ração!

Por Sua providência nunca, em balde,

      Zumbiu mínimo insecto;

Nem Volveu o elefante em campo estéril,

      Os olhos inquieto.

Não deu Ele à avezinha o grão da espiga,

      Que ao ceifa dor esquece;

Do norte ao urso o sol da Primavera,

      Que o reanima e aquece?

Não deu Ele à gazela amplos desertos,

      Ao certo a amena selva,

Ao flamingo os pauis, ao tigre o antro,

      No prado ao touro a relva?

Não mandou Ele ao mundo, em luto e trevas,

      Consolação e luz?

Acaso em vão algum desventurado

      Curvou-se aos pés da Cruz?

A quem não ouve Deus? Somente ao ímpio

      No dia da aflição,

Quando pesa sobre ele, por seus crimes,

      Do crime a punição.

 

Homem, ente imortal, que és tu perante

      A face do Senhor?

És a junca do brejo, harpa quebrada

      Nas mãos do trovador!

Olha o velho pinheiro, campeando

      Entre as neves alpinas:

Quem irá derribar o rei dos bosques

      Do trono das colinas?

Ninguém! Mas ai do abeto, se o seu dia

      Extremo Deus mandou!

Lá correu o aguilhão: fundas raízes

      Aos ares lhe assoprou.

Soberbo, sem temor, saiu na margem

      Do caudaloso Nilo,

O corpo monstruoso ao sol voltado

      Medonho crocodilo.

De seus dentes em roda o susto habita;

      Vê-se a morte assentada

Dentro em sua garganta, se descerra

      A boca afogueada:

Qual duro arnês de um moribundo

      Seu grito lamentoso:

Fumo e fogo respira quando irado;

      Porém, se Deus mandou,

Qual do norte impelida a nuvem passa,

      Assim ele passou!

Teu nome ousei cantor! Perdoa, ó Nume;

      Perdoa ao teu cantor!

Dignos de ti não são meus frouxos hinos

      Mas são hinos de amor.

Embora vis hipócritas te pintam

      Qual bárbaro tirano:

Mentem, por dominar com férreo ceptro

      O vulgo cego e insano.

Quem os crê é um ímpio! Recear-te

      É maldizer-te, ó Deus;

É o trono dos déspotas da Terra

      Ir colocar nos Céus.

Eu, por mim, passarei entre os abrolhos

      Dos males da existência

Tranquilo, e sem temor, à sombra posto

      Da Tua Providência.

 

A TempestadeAdao

 

Sibila o vento: os torreões de nuvens

       Pesam nos densos ares:

Ruge ao largo a procela, e encurva as ondas

       Pela extensão dos mares:

A imensa vaga ao longe vem correndo,

       Em seu terror envolta;

E, dentre as sombras, rápidas centelhas

       A tempestade solta.

Do Sol no ocaso um raio derradeiro,

       Que, apenas fulge, morre,

Escapa à nuvem, que, apressada e espessa,

       Para o apagar corre.

Tal nos afaga em sonhos a esperança,

       Ao despontar, lá vem a consciência

Mas, no acordar, lá vem a consciência

       Dizer que ela mentia!

 

As ondas negro-azuis se conglobaram,

       Serras tornadas são

Contra as quais outras serras, que se arqueiam,

       Bater, partir-se vão.

Ó tempestade! Eu te saúdo, ó nume,

       Da natureza açoite!

Tu guias os balcões, do mar princesa,

       E é teu vestido a noite!

Quando pelos pinhais, entre o granizo,

       Ao sussurrar das ramas,

Vibrando sustos, pavorosa ruges

          E assolação derramas,

Quem porfiar contigo, então, ousara

          De glória e poderio;

Tu que fazes gemer pendido o cedro,

         Turvar-se o claro rio?

 

Quem me dera ser tu, por balouçar-me

         Das nuvens nos castelos,

E ver dos ferros meus, enfim, quebrados

         Os rebatidos elos.

Eu rodeara, então, o globo inteiro;

         Eu sublevara as águas;

Eu dos vulcões com raios acendera

         Amortecidas fragas

Do robusto carvalho e sobro antigo

         A curvaria as frontes;

Com furacões, os areais da Líbia

         Converteria em montes;

Pelo fulgor da Lua, lá do Norte

         No Pólo me assentara

E vira prolongar-se o gelo eterno,

         Que o tempo amontoara.

Ali, eu solitário, eu rei da morte,

         Erguera meu clamor,

E dissera: «Sou livre, e tenho império;

         Aqui, sou eu senhor!»

 

Quem se pudera erguer, como estas vagas

         Em turbilhões incertos,

E correr, troando ao longe,

        Nos líquidos desertos!

Mas entre membros de Lodoso barro

        A mente presa está!…

Ergue-se em vão aos céus: precipitada,

        Rápido, em baixo dá.

Ó morte, amiga morte!, é sobre as vagas,

        Entre escarcéus erguidos,

Que eu te invoco, pedindo-te feneçam

        Meus dias aborridos:

Quebra duras prisões, que a natureza

        Lançou a esta alma ardente;

Que ela possa voar, por entre os orbes,

        Aos pés do Omnipotente.

Sobre a nau, que me estreita, a prenhe nuvem

        Desça, e estourando a esmague,

E a grossa proa, dos tufões ludíbrio,

        Solta, sem rumo vague!

 

Porém, não!… Dormir deixa os que me cercam

        O sono do existir;

Deixa-os, vãos sonhadores de esperanças

        Nas trevas do porvir.

Doce mãe do repouso, extremo abrigo

        De um coração opresso,

Que ao ligeiro prazer, à dor cansada

        Negas no seio acesso,

Não despertes, oh, não! os que abominam

       Teu amoroso aspei to;

Febricitantes, que se abraçam, loucos,

       Com seu dorido leito!

Tu, que ao mísero ris com rir tão meigo,

       Caluniada morte;

Tu, que entre os braços teus lhe dás asilo

       Contra o furor da sorte;

Tu, que esperas às portas dos senhores,

       Do servo ao limiar,

E eterno corres, peregrina, a Terra

       E as solidões do mar,

Deixa, deixa sonhar ventura os homens,

       Já filhos teus nasceram:

Um dia acordarão desses delírios,

       Que tão gratos lhes eram.

e eu que velo na vida, e já não sonho

       Nem glória, nem ventura;

eu, que esgotei tão cedo, até as fezes,

       O cálix da amargura:

Eu, vagabundo e pobre, e aos pés calcado

       De quando há vil no mundo,

Santas inspirações morrer sentindo

       Do coração no fundo,

Sem achar no desterro uma harmonia

       De alma, que a minha entenda,

Porque seguir, curvado ante a desgraça,

       Esta espinhosa senda?

Trovo o oceano vai! Qual dobre, soa

       Fragor da Tempestade,

Salmo de mortos, que retumba ao longe,

       Grito da eternidade!…

 

Pensamento infernal! Fugir covarde

       Ante o destino irado?

Lançar-me, envolto em maldições celestes,

       No abismo tormentos?

Nunca! Deus pôs-me aqui para apurar-me

       Nas lágrimas da Terra;

Guardarei minha estância atribulada,

       Com meu desejo em guerra.

O fiel guardador terá seu prémio,

       o seu repouso, enfim,

E atalaias o sol de um dia extremo

       Virá outro após mim.

Herdarei o morrer! Como é suave

       Bênção de pai querido.

Será o despertar, ver meu cadáver,

        Ver o grilhão partido.

 

Um consolo, entretanto, resta ainda

        Ao pobre velador:

Deus lhe deixou, nas trevas da existência,

        Doce amizade e amor.

Tudo o mais é sepulcro branqueado

       Por embusteira mão;

 

Tudo o mais vãos prazeres que só trazem

        Remorso ao coração.

Passarei minha noite a luz tão meiga,

        Até o amanhecer;

Até que suba à pátria do repouso,

       Onde não há morrer.

 

O Soldado

 

I

 

Veia tranquila e pura

Do meu paterno rio,

Dos campos, que ele rega,

Mansíssimo argênteo.

 

Rocio matutino,

Prados tão deleitosos,

Vales, que assombravam selvas

De azinheirais frondosos,

 

Terra da minha infância,

Tecto de meus maiores,

Meu breve jardinzinho,

Minhas pendidas flores

,

 

harmonioso e santo

Sino do presbitério,

Cruzeiro venerando

Do humilde cemitério.

 

Onde os avós dormiram,

E dormirão os pais;

Onde eu talvez não durma,

Nem reze, talvez, mais,

 

eu vos saúdo!, e o longo

suspiro amargurado

Vos mando. É quanto pode

Mandar pobre soldado.

 

Sobre as cavadas ondas

Dos mares prosélitos,

Por vós já fiz soar

Meus cantos dolorosos.

 

Na proa ressonante

Eu me assentava mudo,

E aspirava ansioso

O vento frio e agudo;

 

Porque em meu sangue ardia

A febre da saudade,

Febre que só minora

Sopro de tempestade;

 

Mas que se irrita, e dura

Quando é tranquilo o mar;

Quando da pátria o céu

Céu puro vem lembrar,

 

Quando, no extremo ocaso,

A nuvem vaporosa,

À frouxa luz da tarde

Na cor imita a rosa,

 

Quando, do Sol vermelho

O disco ardente cresce,

E paira sobre as águas,

E enfim desaparece;

 

Quando no mar se estende

Manto de negro dó;

Quando, ao quebrar do vento,

Noite e silêncio é só;

 

Quando sussurram meigas

Ondas que a nau separa,

E a rápida argêntea

Em torno a sombra aclara.

 

II

 

Eu já ouvi, de noite,

entre o pinhal fechado,

Um frémito soturno

Passando o vento irado:

 

Assim o murmúrio


Do mar, fervendo à proa,

Com o gemer do aflito,

Sumindo, acorde soa;

 

E o cintilar das águas

Gera amargura e dor,

Qual lâmpada, que pende

No templo do Senhor,

 

Lá pela madrugada,

Se o óleo lhe escasseia,

E a espaços expirando,

afrouxa e bruxuleia.

III

 

Bem abundante messe

De pranto e de saudade

O foragido errante

Colhe na sol idade!

 

Para o que a pátria perde

É o universo mudo;

Nada lhe ri na vida;

Mora o fastio em tudo;

 

No meio das por celas,

Na calma do oceano,

No sopro  do gale ergo,

Que enfuna o largo pano.

 

E no ente estar com a terra

Por abrigado esteiro,

e no pousar à sombra

Do tecto do estrangeiro.

 

IV

 

E essas memórias tristes

Minha alma laceraram,

E a senda da existência

Bem agra me tornaram:

 

porém nem sempre férreo

Foi meu destino escuro;

Sulcou de luz um raio

As trevas do futuro.

 

Do meu país querido

a praia ainda beijei,

e o velho e amigo cedro

No vale ainda abracei1

 

Nesta alma regelada

Surgiu ainda o gozo,

E um sonho lhe sorriu

Fugaz, mas amoroso.

 

Oh, foi sonho da infância

Desse momento o sonho!

Paz e esperança vinham

Ao coração tristonho.

 

Mas o sonhar que monta,

Se passa, e não conforta?

Minha alma deu em terra,

Como se fosse morta.

 

Foi a esperança nuvem,

Que o vento some à tarde:

Facho de guerra aceso

Em labaredas arde!

 

Do fratricídio a luva

Irmão a irmão lançara,

E o grito: ai do vencido!

Nos montes retumbara.

 

As armas se hão cruzado:

O pó morder o forte;

Caiu: dorme tranquilo:

Deu-lhe repouso a morte.

 

Ao menos, nestes campos

sepulcro conquistou,

E o adro dos estranhos

Seus ossos não guardou.

 

Ele herdará, ao menos,

Aos seus honrado nome,

Paga de curta vida

Ser-lhe-a largo renome.

 

E a bala sibilando,

e o troar da artilharia,

E a tuba clamorosa,

Que os peitos acendia,

 

E as ameaças trovas,

e os gritos de furor,

e desses que expiravam

Som cavo de estertor,

 

E as pragas do vencido,

Do vencedor o insulto,

E a palidez do morte,

Nu, sangrento, insepulto,

 

eram um caos de dores

Em convulsão horrível,

Sonho de acesa febre,

Cena tremenda e incrível!

 

e suspirei: nos olhos

Me borbulhava o pranto,

E a dor, que transbordava

Pediu-me infernal canto.

 

Oh, sim!, maldisse o instante,

Em que buscar viera,

Por entre as tempestades,

a terra em que nascera.

 

Que é, em fraternas lides

Um  canto de vitória?

É  delirar maldito,

É triunfar sem glória.

 

Maldito era o triunfo,

Que rodeava o horror,

Que me tingia tudo

De sangue aquosa cor!

 

Então olhei saudoso

Para o sonoro mar;

Da nau do vagabundo

Meigo me riu o arfar.

 

De desespero um brando

Soltou, ímpio, o poeta,

Perdão! Chegara o mísero

Da desventura à meta.

 

VI

 

Terra infame! – de servos apre isco,

Mais chamar-me teu filho não sei;

Desterrado, mendigo serei;

De outra terra meus ossos serão!

 

Mas a escravo, que pugna por ferros,

Que herdará desonrada memória,

Renegando da terra sem glória,

Nunca mais darei nome de irmão!

 

Onde é livre tem pátria o poeta,

Que ao exílio condena ímpia sorte.

Sobre os Plains gelados do norte

Luz do Sol também desce do céu,

 

Também lá se erguem montes, e o prado

De boninas, em Maio, se veste;

Também lá se maneia o cipreste

Sobre o corpo que à terra desceu.

 

Que me importa o loureiro da encosta?

Que me importa da fonte o ruído?

Que me importa o saudoso gemido

Da rolaria sedenta de amor?

 

Que me importa outeiros cobertos

Da verdura da vinha, no Estio?

Que me importa o remanso do rio,

E, na calma, da selva o frescor?

 

 

que me importa? Pergunta insensata!

É meu berço: a minha alma está lá…

Que me importa… Esta boca o dirá?!

Minha pátria, estou louco…menti!

 

Eia, servos! O ferro se cruze,

Assobie o pelouro nos ares,

Estes campos convertam-se em mares,

Onde o sangue se possa beber!

 

Larga a vala!, que, após a peleja,

Todos nós dormiremos unidos!

Lá, vingados, e do ódio esquecidos,

Paz faremos… depois do morrer!

 

VII

 

assim, entre amarguras,

Me delirava a mente;

E o Sol ia fugindo

No termo do Ocidente.

 

E os fortes lá jaziam

Com a face ao céu voltada;

Sorria a noite aos mortos,

Passando sossegada.

 

Porém, a noite deles

Não era a que passava!

Na eternidade a sua

Corria, e não findava.

 

Contrários ainda há pouco,

Irmãos, enfim, lá eram!

O seu tesouro de ódio,

Mordendo o pó, cederam.

 

No limiar da morte

Assim tudo fenece:

Inimizades calam,

E até o amor esquece!

 

Meus dias rodeados

Foram de amor outrora,

e nem um vão suspiro

Terei, morrendo, agora,

 

Nem o apertar da dextra

Ao desprender da vida,

Nem lágrimas fraterna

Sobre a fere ala jazida!

 

meu derradeiro alento

Não colherão os meus.

Por minha alma aterrada

Quem pedirá a Deus?

 

Ninguém! Aos pés o servo

Meus restos calcará,

E o riso ímpio, odiento,

Mofando soltará.

 

O sino lutuoso

Não lembrará meu fim:

Preces, que o morto afagam,

Não se erguerão por mim!

 

o filho dos desertos,

O lobo carniceiro,

Há-de escutar alegre

Meu grito derradeiro!

 

Ó morte, o sono teu

Só é sono  mais largo;

Porém, na juventude,

É  dormir o amargo;

 

Quando na vida nasce

Essa mimosa flor,

Como a cacem suave,

Delicioso amor;

 

Quando a mente acendida

Crê na ventura e glória;

Quando o presente é tudo.

E inda nada a memória!

 

Deixar a cara vida,

Então é doloroso,

E o moribundo à Terra

Lança um olhar saudoso.

 

A taça da existência

No fundo fezes tem;

Mas os primeiros tragos

Doces, bem doces, vem.

 

E eu morrerei agora

Sem abraçar os meus,

Sem jubiloso um hino

A levantar aos Céus?

 

Morrer, morrer, que importa?

Final suspiro, ouvi-o

Há-de a pátria. Na terra

Irei dormir tranquilo.

 

Dormir? Só dorme o frio

Cadáver, que não sente;

A alma voa a abrigar-se

Aos pés do Omnipotente.

 

Reclinar-me-ia à sombra

Do amplo perdão do Eterno;

Que não conheço o crime,

E erros não pune o Inferno.

 

E vós, entes queridos,

Entes que tanto amei,

Dando-vos liberdade

Contente acabarei.

 

Por mim livres chorar

Vós podereis um dia,

E às cinzas do soldado

Erguer memória pia.

 

D.Pedro38

 

Pela encosta do Líbano, rugindo,

       O noto furioso

Passou um dia, arremessando à terra

       O cedro mais frondoso;

Assim te sacudiu da morte o sopro

       Do carro da vitória,

Quando, ébrio de esperanças, tu sorrias,

       Filho caro da glória.

Se, depois de por cela em mar de escolhos,

       A combatida nave

Vê terra e vento abranda, o porto aferra,

       Com júbilo suave.

também tu demandaste o Céu sereno,

       Depois de uma árdua lida:

Deus te chamou. o prémio recebeste

       Dos méritos da vida.

Que é esta? Um ermo de espinhais cortado,

       Donde foge o prazer.

Para o justo ela existe além da campa.

       Teme o ímpio o morrer.

Plante-se a acácia, o símbolo do livre,

       Junto às cinzas do forte:

Ele foi rei – e combateu tiranos -

       Chorai, chorai-lhe a morte!

 

Regada pelas lágrimas de um povo,

       A planta crescerá;

E à sombra dela a fronte do guerreiro

       Plácida pousará.

Essa fronte das balas respeitada,

       Agora a trago o pó:

Do valente, do bom, do nosso Amigo

       Restam memórias só,

Mas estas, entre nós, com a saudade

       Perenes viverão,

Enquanto, à voz de pátria e liberdade,

       Ansiar um coração.

Nas orgias de Roma, a prostituta,

       Folga, vil opressor:

Folga com os hipócritas do Tigre,

       Morreu teu vencedor.

Envolto em maldições, em susto, em crimes

       Fugiste, desgraçado:

Ele, subindo ao Céu, ouviu só queixas,

       E um choro não comprado:

Encostado na borda do sepulcro,

      O olhar atrás volveu,

As suas obras contemplou passadas,

      E em paz adormeceu:

Os teus dias também serão contados,

      Covarde foragido;

Mas será de remorso tardo e inútil

      Teu último gemido:

Do passam ente o cálix lhe adoçaram

      Uma filha, uma esposa:

Quem, tigre cru, te cercará o leito,

      Nessa hora pavorosa?

Deus, tu és bom: e o virtuoso em breve

      Chamas ao gozo eterno,

E o ímpio deixas saciar de crimes,

      Para o sumir no Inferno?

Alma gentil, que assim nos hás deixado,

      Entregues à alta dor,

Anjo das preces nos serás, perante

      O trono do Senhor:

E quando, cá na Terra, o poderoso

      As Leis aos pés calcar,

Junto do teu sepulcro irá o opresso

      Seus males deplorar:

Assim, no Oriente, de Albuquerque às cinzas

      O desvalido indiano

Mais de uma vez foi demandar vingança

      De um déspota inumano.

Mas quem ousará à pátria tua e nossa

      Curvar nobre cerviz?

Quem roubará ao lusitano povo

       Um povo ser feliz?

Ninguém! Por tua glória os teus soldados

       Juram livres viver.

Ai do tirano que primeiro ousasse

       Do voto escarnecer!

Nesse abraço final, que nos legaste,

       Legaste o génio teu:

Aqui – no coração – nós o guardámos;

        Teu génio não morreu.

Jaz em paz: essa terra, que te esconde,

        O monstro abominado

Só pisará ao baquear sobre ela

        Teu último soldado.

 

Eu também combati: nas pátrias lides

        Também colhi um louro:

O prantear o Companheiro extinto

        Não me será dez douro.

Para o Sol do Oriente outros se volvem,

        Calor e luz buscando:

Que eu belo Sol, Que jaz no ocaso,

        Cá ficarei chorando.

 

A Vitória e a Piedade

 

I

 

Eu nunca fiz soar meus pobres cantos

       Nos paços dos senhores!

Eu jamais consagrei hino mentido

       Da Terra aos opressores.

Mal haja o trovador que vai sentar-se

       À porta do abastado,

O qual com ouro paga a própria infâmia,

       Louvor que foi comprado.

Desonra àquele, que ao poder e ao ouro

       Prostitui o alaúde!

Deus à poesia deu por alvo a pátria,

       Deu a gloria e a virtude.

Feliz ou infeliz, triste ou contente,

       Livre o poeta seja,

E em hino isento a inspiração transforme

       Que na alma adeja.

 

II

 

No despontar da vida, do infortúnio

        Murchou-me o sopro ardente:

E saudades curti em longes terras

        Da minha terra ausente.

O solo do desterro, ai, quando ingrato

        É para o foragido,

Enevoado o céu, árido o prado,

        O rio adormecido!

E lá chorei, na idade da esperança,

        Da Pátria a dura sorte:

Esta alma encaneceu; e antes de tempo

        Ergueu hinos à morte:

Que a morte é para o mísero risonha,

        Santa da campa a imagem…

Ali é que se aferra o porto amigo,

        Depois de árdua viagem.

 

III

 

Mas quando o pranto me sulcava as faces,

       Pranto de atroz saudade,

Deus escutou do vagabundo as preces,

       Dele teve piedade.

«Armas!», bradaram no desterro os fortes,

       Como bradar de um só:

Erguem-se, voam, cingem ferros; cinge-os

       Indissolúvel nó.

Com seus irmãos as sacrossantas juras,

       Beijando a cruz da espada,

Repetiu o poeta: «Eia, partamos!

        Ao mar!» Partia a armada

Pelas ondas azuis correndo afoitos,

        As praias demandamos

Do velho Portugal, e o balsão negro

       Da guerra despregámos;

Da guerra em que era infâmia o ser piedoso,

         Nobreza o ser cruel,

E em que o golpe mortal descia envolto

         Das maldições no fel.

 

IV

 

Fanatismo brutal, ódio fraterno,

           De fogo céus toldados,

a fome, a peste, o mar avaro, as turbas

           De inúmeros soldados;

Comprar com sangue o pão, com sangue o lume

          Em regelado Inverno;

Eis contra o que, por dias de amargura,

          Nos fez lutar o Inferno.

Mas de fera vitória, enfim, colhemos

          A coroa de cipreste;

Que a fronte ao vencedor em ímpia luta

          Só essa coroa veste.

Como ela trovo, soltarei um hino

          Depois do triunfar.

Oh, meus irmãos, da embriaguez da guerra

          Bem triste é o acordar!

Nessa alta encosta sobranceira aos campos,

          De sangue ainda impuros,

Onde o canhão troou por mais de um ano

          Contra invencíveis muros,

Eu, tomando o alaúde, irei sentar-me,

          Pedir inspirações

À noite queda, ao génio que me ensina

         Segredos das canções.

 

V

 

Reina em silêncio a Lua; o mar não brame,

        Os ventos nem bafejam:

Rasas com a terra, só nocturnas aves

        Em giros mil adejam.

No Planjo pardacento, junto ao marco

        Tombado, ou roto sebe,

Aqui e ali, de ossadas insepultas

        O alvejar se percebe.

 

É que essa veiga, tão festiva outrora,

         Da paz tranquilo império,

Onde ao carvalho a vide se enlaçava,

        É hoje um cemitério!

 

VI

 

Eis de esforçados mil inglórios restos,

         Depois de brava lide:

De longo combater atroz memento

         Em guerra fratricida.

Nenhum padrão recordará aos homens

         Seus feitos derradeiros.

Nem dirá: «Aqui dormem portugueses;

         Aqui dormem guerreiros.»

Nenhum padrão, que peça aos que passarem

         Reza fervente e pia,

E junto ao qual entre queridos vertam

         O pranto da agonia!

Nem hasteada cruz, consolo ao morto;

        Nem laje a que os proteja

Do ardente sol, da noite húmida e fria,

        Que passa e que ronreja!

Não! Lá hão-de jazer no esquecimento

        De desonrada morte,

Enquanto, pelo tempo em pó desfeitos,

        Não os dispersa o norte.

 

VII

 

Quem, pois, consolará gementes sombras.

         Que ondeiam junto a mim?

Quem seu perdão da Pátria implorar ousa,

         Seu perdão de Eloim?

Eu, o cristão, o trovador do exílio,

        Contrário em guerra crua,

Mas que não sei verter o fel da afronta

        Sobre uma ossada nua.

 

VIIIaae

 

Lavradores, zagais, descem dos montes,

        Deixando terras, gados,

Para as armas vestir, dos céus em nome,

        Por fariseus chamados.

De um Deus de paz hipócritas ministros

         Os tristes enganaram:

Foram eles, não nós, que estas caveiras

         Aos vermes consagraram.

Maldito sejas tu, monstro do Inferno,

        Que do Senhor no templo,

Junto da eterna Cruz, ao crime incitas,

        Dás do furor o exemplo!

Sobre as cinzas da Pátria, ímpio, pensaste

        Folgar de nosso mal,

E, entre as ruínas de cidade ilustre,

        Soltar riso infernal.

Tu, no teu coração incipiente,

       Disseste:«Deus não há!»

Ele existe, malvado; e nós vencemos:

       Treme; que tempo é já!

 

IX

 

Mas esses, cujos ossos espalhados

       No campo da peleja

Jazem, exoneram a piedade nossa;

       Piedoso o livre seja!

Eu pedirei a paz dos inimigos,

       Mortos como valentes,

Ao Deus nosso juiz, ao que distingue

       Culpados de inocentes.

 

X

 

Perdoou, expirando, o Filho do Homem

       Aos seus perseguidores;

Perdão, também, às cinzas de infelizes;

       Perdão, ó vencedores!

Não insulteis o morto. Ele há comprado

       Bem caro o esquecimento,

Vencido adormecendo em morte ignóbil,

       Sem dobre ou monumento.

 

É tempo de olvidar ódios profundos

       De guerra deplorável.

O forte é generoso, e deixa ao fraco

       O ser inexorável.

Oh, perdão para aquele a quem a morte

       No seio agasalhou!

Ele é mudo: pedir-o já não pode;

       O da-o a nós deixou.

Além do limiar da eternidade

       O mundo não tem réus,

O que legou à terra o pó da terra

        Julgar-o cabe a Deus.

E vós, meus companheiros, que não vistes

        Nossa triste vitória,

Não precisais do trovador o canto;

       Vosso nome é da História.

 

XI

 

Assim, foi do infeliz sobre a jazida

      Que um hino murmurei,

E, do vencido consolando a sombra,

       Por vós eu perdoei.

A Cruz Mutilada

 

Amo-te, ó cruz, no vértice firmada

      De esplêndidas igrejas;

Amo-te quando à noite, sobre a campa,

      Junto ao cipreste alvejas;

Amo-te sobre o altar, onde, entre incensos,

      As preces te rodeiam;

Amo-te quando em préstito festivo

      As multidões te hasteiam;

Amo-te erguida no cruzeiro antigo,

      No adro do presbitério,

Ou quando o morto, impressa no ataúde,

      Guias ao cemitério;

Amo-te, ó cruz, até, quando no vale

       Negra ajas triste e só,

Núncia do crime, a que deveu a terra

      Do assassinado o pó:

 

Porém quando mais te amo,

Ó cruz do meu senhor,

É, sete encontro à tarde,

Antes de o Sol se pôr,

 

Na clareira da serra,

Que o arvoredo assombra,

Quando à luz que fenece

Se estira a tua sombra,

 

E o dia últimos raios

Com o luar mistura,

E o seu hino da tarde

O pinheiral murmura.

 

 

E eu te encontrei, num alcantil agreste,

Meia quebrada, ó cruz. Sozinha estavas

ao pôr do Sol, e ao elevar-se a lua

detrás do calvo cerro. A solenidade

Não te pôde valer contra a mão ímpia,

Que te feriu sem dó. As linhas puras

De teu perfil, falhadas, tortuosas,

Ó mutilada cruz, falam de um crime

Sacrílego, brutal e ao ímpio inútil!

A tua sombra estampa-se no solo,

Como a sombra de antigo monumento,

Que o tempo quase derrocou, truncada.

No pedestal musgoso, em que te ergueram

Nossos avós, eu me assentei. Ao longe,

do presbitério rústico mandava

O sino os simples sons pelas quebradas

Da cordilheira, anunciando o instante

Da ave-Maria; da oração singela,

Mas solene, mas santa, em que a voz do homem

Se mistura nos cânticos saudosos,

Que a natureza envia ao Céu no extremo

Raio de sol, passando fugitivo

Na tangente deste orbe, ao qual trouxeste

Liberdade e progresso, e que te paga

Com a injúria e o desprezo, e que te inveja

Até, na solidão, o esquecimento!

 

 

Foi da ciência incrédula o sectário,

Acaso, ó cruz da serra, o que na face

Afrontas te gravou com mão profusa?

Não! Foi o homem do povo,  a quem consolo

Na miséria e na dor constante hás sido

Por bem dezoito séculos: foi esse

Por cujo amor surgias qual remorso

Nos sonhos do abastado ou do tirano,

Bradando – esmola! a um; piedade! ao outro.

 

Ó cruz, se desde o Gólgota não foras

Símbolo eterno de uma crença eterna;

Se a nossa fé em ti fosse mantida,

Dos opressos de outrora os livres netos

Por sua ingratidão dignos de opróbrio,

Se não te amassem, ainda assim seriam.

Mas és núncia do Céu, e eles te insultam,

Esquecidos das lágrimas perenes

Por trinta gerações, que guarda a campa,

Vertidas a teus pés nos dias turvos

Do seu viver de escravidão! Deslumbram-se

 

De que, se a paz doméstica, a pureza

Do leito conjugal bruta violência

Não vai contaminar, se a filha virgem

Do humilde camponês não é ludíbrio

Do opulento, do nobre, ó Cruz, to devem;

Que por ti o cultor de férteis campos

Colhe tranquilo da fadiga o prémio,

Sem que a voz de um senhor, qual dantes, dura

Lhe diga: «É meu, e és meu! A mim deleites,

Liberdade, abundância: a ti, escravo,

O trabalho, a miséria unido à terra,

Que o suor dessa fronte fertiliza,

Enquanto, em dia de furor ou tédio,

Não me apraz com teus restos fecundar-na.»

 

Quando calada a humanidade ouvia

Este atroz blasfemar, tu te elevaste

Lá do Oriente, ó Cruz, envolta em glória,

E bradaste, tremenda, ao forte, ao rico:

«Mentira!», e o servo a levantou os olhos,

Onde a esperança cintilava, a medo,

E viu as faces do senhor retintas

Em palidez mortal, e errar-lhe a vista

Tépida, vaga. A cruz no céu do Oriente

Da liberdade anunciara a vinda.

 

Cansado, o ancião guerreiro, que a existência

Desgastou no volver de cem combates,

Ao ver que, enfim, o seu país querido

Já não ousam calcar os pés de estranhos,

Vem assentar-se à luz meiga da tarde,

Na tarde do viver, junto do teixo

Da montanha natal. na fronte calva,

Que o sol tostou e que enrugaram anos,

Há um como fulgor sereno e santo.

Da aldeia semideus, devem-lhe todos

O tecto, a liberdade, e a honra e vida.

Ao perpassar do veterano, os velhos

A mão que os protegeu apertam gratos;

Com amorosa timidez os moços

Saúdam-no qual pai. Nas largas noites

da gelada estação, sobre a lareira

Nunca lhe falta o cepo incendiado;

Sobre a mesa frugal nunca, no estio,

Refrigerante pomo. Assim do velho

Peleja dor os derradeiros dias

Derivam para o túmulo suaves,

Rodeados de afecto, e quando à terra

A mão do tempo gastador o guia,

Sobre a lousa a saudade ainda lhe esparze

Flores, lágrimas, bênçãos, que consolem

Do defensor do fraco as cinzas frias.

 

Pobre cruz! Pelejaste mil combates,

Os gigantes combates dos tiranas,

E venceste. No solo libertado,

Que pediste? Um retiro no deserto,

Um píncaro granítico, açoutado

Pelas asas do vento e enegrecido

Por chuvas e por sóis. Para ameigar-te

Este ar húmido e gélido a segure

Não foi ferir do bosque o rei. Do Estio

No ardor canicular nunca disseste:

«Dai-me, sequer, do bravo medronheiro

O desprezado fruto!» O teu vestido

Era o musgo, que tece a mão do Inverno

E Deus criou para trajar as rochas.

Filha do céu, o céu era o seu tecto,

Teu escabelo o dorso da montanha.

Tempo houve em que esses braços te adornava64458ACD

coroa viçosa de gentis boninas,

E o pedestal te rodeavam preces.

Ficaste em breve só, e a voz humana

Fez, pouco a pouco, junto a ti silêncio.

Que te importava? As árvores da encosta

Curvavam-se a saudar-te, e reboando

As aves vinham circundar-te de hinos.

Afagava-te o raio derradeiro,

Frouxo do Sol ao mergulhar nos mares,

E esperavas o túmulo. O teu túmulo

Devera ser o seio destas serras,

Quando, em génesis novo, à voz do Eterno

Do orbe ao núcleo fervente, que as gerara,

Elas nas fauces dos vulcões descessem.

Então para essa campa flores, bênçãos

Ou é saudade lágrimas vertidas,

Qual do velho soldado a lousa pede,

Não pediras à ingrata raça humana,

Ao pé de ti no seu sudário envolta.

 

Este longo esperar do dia extremo

No esquecimento do ermo abandonada,

Foi duro de sofrer aos teus remidos,

Ó redentora cruz. Eras, acaso,

Como um remorso e acusação perene

No teu rochedo alpestre, onde te viam

Pousar tristonha e só? Acaso. à noite,

Quando a por cela no pinhal rugia,

Criam ouvir-te a voz acusadora

Sobre elevar à voz da Tempestade?

Que lhes dizias tu? De Deus falavas,

E do seu Cristo, do divino mártir,

Que a ti, suplício e afronta, a ti maldita

Ergueu, purificou, clamando ao servo,

No seu transe: «Ergue-te, escravo!

És livre, como é para a cruz da infâmia.

Ela vil e tu vil, santos, sublimes

Sereis ante meu Pai. Ergue-te escravo!

abraça tua irmã: segue-a sem susto

No caminho dos séculos. Da Terra

Pertence-lhe o provir, e o seu triunfo

Trará da tua liberdade o dia.»

 

Eis porque teus irmãos te arrojam pedras,

Ao perpassar, ó cruz! Pensam ouvir-te

Nos rumores da noite, a antiga história

Recontando do Gólgata, lembrando-lhes

Que só ao Cristo a liberdade devem,

E que ímpio o povo ser é ser infame.

mutilado por ele, a pouco e pouco,

Tu em fragmentos tombarás do cerro,

Símbolo sacrossanto. Hás-de os humanos

Aos pés pisar-te; e esquecerás no mundo.

Da gratidão a dívida não paga

Ficará, ó tremenda acusadora,

Sem que as faces lhes tinja a cor do pejo;

Sem que o remorso os corações lhes rasgue.

Do Cristo o nome passará na Terra.

 

Não! Quando, em pó desfeita, a cruz divina

Deixar de ser perene testemunho

da avita crença, os montes, a espessura,

O mar, a Lua, o murmurar da fonte,

Da natureza as vagas harmonias,

Da cruz em nome, falarão do Verbo.

 

Dela no pedestal, então deserto,

Do deserto no seio, ainda o poeta

Virá, talvez, ao pôr do Sol sentar-se;

E a vez da selva lhe dirá que é santo

Este rochedo nu, e um hino pio

A solidão lhe ensinará e a noite.

 

Do cântico futuro uma toada

Não sentes vir, ó cruz, de além dos tempos

Da brisa do crepúsculo nas asas?

É o provir que te proclama eterna;

É a voz do poeta a saudar-te.

 

Montanha do Oriente,

Que, sobre as nuvens elevando o cume,

Divisas logo o Sol, surgindo a aurora,

E que, lá no Ocidente,

Última vez seu radioso lume,

Em ti minha alma a eterna cruz adora.

 

Sobro, robles frondentes,

Cuja sombra procura o viandante,

Fugindo ao Sol a prumo que o devora,

Nesses dias ardentes

Em que o Leão nos céus passa radiante,

Em ti minha alma a eterna cruz adora.

 

Ó mato variado,

De rosmaninho e murta entretecido,

De cujos ténue flores se evapora

Aroma delicado,

Quando és por leve aragem sacudido,

Em ti minha alma a eterna cruz adora.

 

Ó mar, que vais quebrando

Rolo após rolo pela praia fria,

E fremes som de paz consoladora,

Dormente murmurando

Na caverna marítima sombria,

Em ti minha alma a eterna cruz adora.

 

Ó Lua silenciosa,

Que em perpétuo volver, seguindo a Terra,

Esparzes tua luz ameigados

Pela serra formosa,

E pelos lagos que em seu seio encerra,

Em ti minha alma a eterna cruz adora.

 

Debalde o servo ingrato

No pó te derribou

E os restos te insultou,

Ó veneranda cruz:

 

Embora eu te não veja

Neste ermo pedestal;

És santa, és imortal;

Tu és a minha luz!

 

Nas almas generosas

Gravou-te a mão de ~deus,

E, à noite, fez nos céus

Teu vulto cintilar.

 

Os raios das estrelas

Cruzam o seu fulgor;

Nas horas do furor

As vagas cruza o mar.

 

Os ramos enlaçados

Do roble, choupo e til

Cruzando em modos mil,

Se vão entretecer.

 

Ferido, abre o guerreiro

Os braços, solta um ai,

Pára, vacila, e cai

Para não mais se erguer.

 

Cruzado aperta ao seio

A mãe o filho seu,

Que busca mal nasceu,

Fontes da vida e amor.

 

Surges, símbolo eterno,

No Céu, na Terra e mar,

Do forte no expirar,

E do viver no alvor!

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