quinta-feira, 11 de junho de 2009

Almeida Garrett – Folhas Caídas

Livro Primeiro

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I

Ignoto Deo

Creio em Ti, Deus: a fé viva

De minha alma a Ti se eleva.

És: – o que és não sei. Deriva

Meu ser do Teu: Luz… E treva,

Em que – indistintas! – se envolve

Este espírito agitado,

De Ti vem, a Ti devolve.

O Nada, a que foi roubado

Pelo sopro criador

Tudo o mais, o há-de tragar.

Só vive de eterno ardor

O que está sempre a aspirar

Ao infinito donde veio.

Beleza és Tu, luz és Tu,

Verdade és Tu só. Não creio

Senão em Ti, o olho nu

Do homem não vê na Terra

Mais que a dúvida, a incerteza,

A forma que engana e erra.

Essência! a real beleza,

O puro amor – o prazer

Que não fatiga e não gasta…

Só por Ti os pode ver

O que inspirado se afasta,

Ignoto Deus, das ronceiras,

Vulgares turbas: despidos

Das coisas vãs e grosseiras

Sua alma, razão, sentido,

A Ti se dão, em Ti vida,

E por Ti vida têm. Eu, consagrado

A Teu altar, me prostro e a combatida

Existência aqui ponho, aqui votado

Fica este livro – confissão sincera

Da alma que a Ti voou e em ti só espera.

II

Adeus!

Adeus! para sempre adeus!

Vai-te, oh! vai-te, que nesta hora

Sinto a justiça dos Céus

Esmagar-me a alma que chora.

Choro porque não te amei,

Choro o amor que me tiveste;

O que eu perco, bem no sei,

Mas tu… tu nada perdeste.

Que este mau coração meu

Nos secretos escaninhos

Tem venenos tão daninhos

Que o seu poder só sei eu.

Oh! vai… para sempre adeus!

Vai, que há justiça nos Céus.

Sinto gerar na peçonha

Do ulcerado coração

Essa víbora medonha

Que por seu fatal condão

Há-de rasgar ao nascer:

Há-de sim, será vingada,

E o meu castigo há-de ser

Ciúme de ver-te amada,

Remorso de te perder.

Vai-te, oh! vai-te, longe, embora,

Que sou eu capaz agora

De te amar – Ai! se eu te amasse!

Vê se no árido pragal

Deste peito se ateasse

De amor o incêndio fatal!

Mais negro e feio no Inferno

Não chameja o fogo eterno.

Que sim? Que antes isso? – Ai, triste!

Não sabes o que pediste.

Não te bastou suportar

O cepo-rei; impaciente

Tu ousas a Deus tentar

Pedindo-lhe o rei-serpente!

E cuidas amar-me ainda?

Enganas-te: é morte, é finda,

Dissipada é a ilusão.

Do meigo azul de teus olhos

Tanta lágrima verteste,

Tanta esse orvalho celeste

Derramado o viste em vão

Nesta seara de abrolhos,

Que a fonte secou. Agora

Amarás… sim, hás-de amar,

Amar deves… Muito embora…

Oh! mas noutro hás-de sonhar

Os sonhos de oiro encantados

Que o mundo chamou amores.

E eu réprobo… eu se o verei?

Se em meus olhos encovados

Der a luz de teus ardores…

Se com ela cegarei?

Se o nada dessas mentiras

Me entrar pelo vão da vida…

Se, ao ver que feliz deliras,

Também eu sonhar… perdida,

Perdida serás – perdida.

Oh, vai-te, vai, longe, embora!

Que te lembre sempre e agora

Que não te amei nunca… ai! não;

E que pude a sangue-frio,

Cobarde, infame, vilão,

Gozar-te – mentir sem brio,

Sem alma, sem dó, sem pejo,

Cometendo em cada beijo

Um crime…Ai! triste, não chores.

Não chores, anjo do Céu,

Que o desonrado sou eu.

Perdoar-me tu'?… Não mereço.

A imundo cardo voraz

Essa pérola de preço

Não as deites: é capaz

De as desprezar na torpeza

De sua bruta natureza.

Despeitosa, respeitar,

Mas indulgente… Oh! o perdão

É perdido no vilão,

Que de ti há-de zombar.

Vai, vai… para sempre adeus!

Para sempre aos olhos meus

Sumido seja o clarão

De tua divina estrela.

Faltam-me olhos e razão

Para a ver, para a entender:

Alta está no firmamento

De mais e de mais é bela

Para o baixo pensamento

Com que me má hora a fitei;

Falso e vil o encantamento

Com que a luz lhe fascinei.

Que volte a sua beleza

Do azul do céu à pureza,

E que a mim me deixe aqui

Nas trevas em que nasci,

Trevas negras este aleijão

Donde me vem sangue às veias,

Este que foi coração,

Este que amar-te não sabe

Porque é só terra – e não cabe

Nele uma ideia dos céus…

Oh! vai, vai; deixa-me, adeus!

III

Quando eu sonhava

Quando eu sonhava, era assim

Que nos meus sonhos a via;

E era assim que me fugia,

Apenas eu despertava,

Essa imagem fugidia

Que nunca pude alcançar.

Agora que estou desperto,

Agora a vejo fixar…

Para quê? – Quando era vaga,

Uma ideia, um pensamento,

Um raio de estrela incerto

No imenso firmamento,

Uma quimera, um vão sonho,

Eu sonhava – mas vivia:

Prazer não sabia o que era,

Mas dor, não na conhecia…

………………………………………….

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IV

Aquela noite!

Era a noite da loucura,

Da sedução, do prazer,

Que em sua mantilha escura

Costuma tanta ventura,

tantas glórias esconder:

Os felizes… e ai! são tantos!…

- Eu por tantos os contava!

Eu que o sinal de meus prantos

Do aflito rosto lavava -

Os felizes presunçosos

Iam nos coches ruidosos

Correndo aos salões doirados

De mil fogos alumiados,

Donde em torrentes saía

A clamorosa harmonia

Que à festa, ao prazer tangia.

Eu sentia esse ruído

Como o confuso bramar

De um mar ao longe movido

Que à praia vem rebentar:

E disse comigo:«Vamos,

Os lutos d’alma dispamos,

À festa hei-de ir também eu!»

E fui: e a noite era bela,

Mas não vi a minha estrela

Que eu sempre via no céu:

Cobriu-a de espesso véu

Alguma nuvem a ela,

Ou era que já vendado

Me levava o negro fado

Onde a vida me perdeu?

Fui; meu rosto macerado,

A funda melancolia

Que todo o meu ser revia,

Qual o ataúde levado

A egípcia festim, dizia:

-Como vós fui eu também;

Folgai, que a morte aí vem!

-Dizia-o, sim, meu semblante,

Que, onde eu chegava, o prazer

Cessava no mesmo instante;

E o lábio que ia a dizer

Doçuras de amor, gelava;

E o riso que ia a nascer

Na face linda, expirava.

Era eu – e a morte em mim,

Que só ela espanta assim!

Quantas mulheres tão belas

Ébrias de amor e desejos,

Quando vi saltar-lhe os beijos

Da boca ardente e lasciva!

E eu, que ia chegar-me a elas…

Para logo a fronte esquiva

De recatos se envolvia

E, toda pudor, tremia.

Quantas o seio anel ante,

Nu, ardente e palpitante

Andavam como entregando´

À cobiça mal desperta,

Gasta já e desdenhosa,

Dos que as estavam mirando

Com vaga luneta incerta

Que diz: – «Aquela é formosa,

Não se me dava de a ter.

E esta? É só baronesa,

Vale menos que a duquesa:

Não sei a qual atender.»

E a isto chamam prazer!

A grande ventura é esta?

Vale a pena vir à festa

E vale a pena viver.

Como então quis à tristura

Do meu viver isolado!

Fique-se embora a ventura,

Que eu quero ser desgraçado.

Levantei alto a cabeça,

Senti-me crescer – e a frente

Desanuviar-se contente

Do feio negrume espesso

Que assustava aquela gente.

Logo os sorrisos caíam

Para o meu lado também;

Já como um dos seus me viam,

Que em mim não viam ninguém.

Eu, de olhos desencantados,

A elas, como as eu via!

Meus entusiasmos passados,

Oh! como eu deles me ria!

Frio o sarcasmo saía

DE meus lábios descorados,

E sem dó e sem pudor

A todas falei de amor…

Do amor bruto, degradante,

Que no seio palpitante,

Na espátula nua acende…

Amor lascivo que ofende,

Que faz corar… Elas riam

E oh que não, não se ofendiam!

Mas a orquestra bradou alta.

«Festa, festa! e salta, salta!»

Os seus guizos delirantes

Sacode louca a Folia…

Adeus, requebros de amantes!

Suspiros, quem nos ouvia?

As palavras meias ditas,

Meias nos olhos escritas,

Voavam todas perdidos

Dispersas, rotas no ar;

Que se foram almas, vidas,

Tudo se foi a valsar.

Quem é esta que mais voltas

Gira, gira sem cessar?

Como as roupas leves, soltas,

Aéreas leva a ondular

Em torno à forma graciosa,

Tão flexível, tão airosa,

Tão fina1 – Agora parou,

E tranquila se assentou.

Que rosto! Em linhas severos

Se lhe desenha o perfil;

E a cabeça, tão gentil,

Como se fora deveras

a rainha dessa gente,

Como a levanta insolente!

Vive Deus! que é ela… aquela,

A que eu vi na tal janela,

E que triste me sorria

Quando passando me via

Tão pasmado a olhar para ela.

A mesma melancolia

Nos olhos tristes – de luz

Oblíqua, viva mas fria;

A mesma alta inteligência

Que da face lhe transluz;

E a mesma altiva impaciência

Que de tudo, tudo cansa,

De tudo o que foi, que é,

E na ermo vida só vê

O raio da vaga esperança.

«Pois isto sim que é mulher»,

Disse eu – «e aqui há que ver.»

Já vinha a pálida aurora

Anunciando a manhã fria,

E eu falava e eu ouvia

O que até àquela hora

Nunca disse, nunca ouvi…

Toda a memória perdi

Das palavras preferidas…

Não eram destas sabidas,

Nem quais eram não no sei…

Sei que a vida era outra em mim,

Que era outro ser o meu ser,

Que uma alma nova me achei

Que eu bem sabia não ter.

E daí’ – Dai, a história

Não deixou outra memória

Dessa noite de loucura,

De sedução, de prazer…

Que os segredos da ventura

Não são para se dizer.

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V

O anjo caído

Era um anjo de Deus

Que se perdera dos Céus

E terra a terra voava.

A seta que lhe acertava

Partira de arco traidor,

Porque as penas que levava

Não eram penas de amor.

O anjo caiu ferido,

E se viu aos pés rendido

Do tirano caçador.

De asa morta e sem esplendor

O triste, peregrinando

Por estes vales de dor,

Andou gemendo e chorando.

Vi-o eu, anjo dos Céus,

O abandonado de Deus,

Vi-o, nessa tropelia

Que o mundo chama alegria,

Vi-o a taça do prazer

Pôr ao lábio que tremia…

E só lágrimas beber.

Ninguém mais na Terra o via,

Era eu só que o conhecia…

Eu que já não posso amar!

Quem no havia de salvar?

Eu, que numa sepultura

Me fora vivo enterrar?

Loucura! ai, cega loucura!

Mas entre os anjos dos Céus

Faltava um anjo ao seu Deus,

E remir-lho e resgata-loa,

Daquela infâmia salvar-lho

Só força de amor podia.

Quem desse amor há-de amar-lhe,

Se ninguém o conhecia?

Eu só. – E eu morto, eu descrido,

Eu tive o arrojo atrevido

De amar um anjo sem luz.

Cravei-a eu nessa cruz

Minha alma que renascia,

Que toda em sua alma pus.

e o meu ser se dividia,

Porque ele outra alma não tinha,

Outra alma senão a minha…

Tarde, ai! tarde o conheci,

Porque eu o meu ser perdi,

E ele à vida não volveu…

Mas da morte que eu morri

Também o infeliz morreu.

VI

O álbum

Minha Júlia, um conselho de amigo,

Deixa em branco este livro gentil:

Uma só das memórias da vida

Vale a pena guardar, entre mil.

E essa n’alma em silêncio gravada

pelas mãos do mistério há-de ser;

Que não tem língua humana palavra,

Não tem letra que a possa escrever.

Por mais bela e variado que seja

De uma vida o tecido matiz,

Um só fio da tela bordada,

Um só fio há-de ser feliz.

Tudo o mais é ilusão, é mentira,

Brilho falso que um tempo seduz,

Que se apaga, que morre, que é nada

Quando o sol verdadeiro reluz.

De que serve guardar monumentos

Dos enganos que a esperança forjou?

Vão reflexos de um Sol que tardava

Ou vão sombras de um Sol que passou!

Crê-me, Júlia: mil vezes na vida

Eu com a minha ventura sonhe,

E uma só, dentre tantas, o juro,

Uma só com verdade a encontrei.

Essa entrou-me pela alma tão firme,

Tão segura por dentro a fechou,

Que o passado fugiu da memória,

Do provir nem desejo ficou.

Toma pois, Júlia bela, o conselho.

Deixa em branco este livro gentil,

Que as memórias da vida são nada,

e uma só se conserva entre mil.

VII

Saudade

Leva este ramo, Pepita,

De saudades portuguesas;

É flor nossa, e tão bonita

Não na há noutras deves as,

seu perfume não seduz,

Não tem variado matiz,

Vive à sombra, foge à luz,

As glórias de amor não diz;

mas na modesta beleza

De sua melancolia

É tão suave a tristeza,

Inspira tal simpatia!…

E tem um dote esta flor

Que de outra igual se não diz.

Não perde viço ou frescor

Quando a tiram da raiz.

Antes mais e mais floresce

Com tudo o que as outras mata,

Até às vezes mais cresce

Na terra que é mais ingrata.

Só tem um cruel senão,

Que te não devo esconder:

Plantada no coração,

Toda outra flor faz morrer.

E, se o quebra e despedaça

Com as raízes mofinas,

Mais ela tem brilho e graça,

É como a flor das ruínas.

Não, Pepita, não ta dou…

Fiz mal em dar-te essa flor,

Que eu sei o que me custou

Tratar-a com tanto amor.

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VIII

Este inferno de amar

Este inferno de amar – como eu amo!

Quem mo pôs aqui n’alma… quem foi?

Esta chama que alenta e consome,

Que é a vida – e que destrói -

Como é que se veio a atear,

Quando – ai quando se há-de ela apagar?

Eu não sei, não me lembra: o passado,

A outra vida que dantes vivi

Era um sonho talvez… – foi um sonho -

Em que paz tão serena a dormir!

Oh! que doce era aquele sonhar…

Quem me veio, ai de mim! despertar?

Sá me lembra que um dia formoso

Eu passei… dava o Sol tanta luz!

E os meus olhos, que vagos giravam,

Em seus olhos ardentes os pus.

Que fez ela? eu que fiz? – Não no sei;

Mas nessa hora a viver comecei…

IX

Destino

Quem disse à estrela o caminho

Que ela há-de seguir no céu?

A fabricar o seu ninho

Como é que a ave aprendeu?

Quem diz à planta: – Floresce!

E ao mudo verme que tece

Sua mortalha de seda

Os fios quem lhos enreda?

Ensinou alguém à abelha

Que no prado anda a zumbir

Se à flor branca ou se à vermelha

O seu mel há-de ir pedir?

Que eras tu meu ser, querida,

Teus olhos a minha vida,

Teu amor todo o meu bem…

Ai, não mo disse ninguém.

Como a abelha corre ao prado,

Como no céu gira a estrela,

Como a todo o ente o seu fado

Por instinto se revela,

Eu no teu seio divino

Vim cumprir o meu destino…

Vim, que em ti só sei viver,

Só por ti posso morrer.

X

Gozo e dor

Se estou contente, querida,

Com esta imensa ternura

De que me enche o teu amor?

- Não. Ai! não, falta-me a vida,

Sucumbe-me a alma à ventura:

O excesso do gozo é dor.

Dói-me alma, sim: e a tristeza

Vaga, inerte e sem motivo,

No coração me poisou.

Absorto em tua beleza,

Não sei se morro ou se vivo,

Porque a vida me parou.

É que não há ser bastante

Para este gozar sem fim

Que me inunda o coração.

Tremo dele, e delirante

Sinto que se exaure em mim

Ou a vida – ou a razão.

XI

Perfume da rosa

Quem bebe, rosa, o perfume

Que de teu seio respira?

Um anjo, um silfo? Ou que nume

Com esse aroma delira?

Qual é o deus que, namorado,

De seu trono te ajoelha,

E esse néctar encantado

Bebe oculto, humilde abelha?

- Ninguém? – Mentiste. essa frente

Em languidez inclinada,

Quem ta pôs assim pendente?

Dizei, rosa namorada.

E a cor de púrpura viva

Como assim te desmaiou?

E essa palidez lasciva

Nas folhas quem ta pintou?

Os espinhos que tão duros

Tinhas na rama lustrosa,

Com que magos esconjuros

Tos desarmaram, ó rosa?

E porque, na hás tia sentida

Tremes tanto ao pôr-do-Sol?

Porque escutas tão rendida

O canto do rouxinol?

Que eu não ouvi um suspiro

Sussurrar-te na folhagem?

Nas águas deste retiro

Não espreitei a tua imagem?

Não a vi aflita, ansiado…

- Era de prazer ou dor?

- Mentiste, rosa, és amada,

E também tu amas, flor.

Mas ai! se não for um nume

O que em teu seio delira,

Há-de matar-lhe o perfume

Que nesse aroma respira.

XII

Rosa sem espinhos

Para todos tens carinhos,

A ninguém mostras rigor!

Que rosa és tu sem espinhos?

Ai, que não te entendo, flor!

Se a borboleta vaidosa

A desdém te vai beijar,

O mais que lhe fazes, rosa,

É sorrir e é corar.

E quando a sonsa da abelha

Tão modesta em seu zumbir,

Te diz: «Ó rosa vermelha

Bem me podes acudir:

Deixei do cálix divino

Uma gota só libar…

Deixa, é néctar peregrino,

Mel que eu não sei fabricar…»

Tu de lástima rendida,

De maldita compaixão,

Tu à súplica atrevida

Sabes tu dizer que não?

Tanta lástima e carinhos,

Tanto dó, nenhum rigor!

És rosa e não tens espinhos!

Ai! que não te entendo, flor.

Rosa pálida, em meu seio

Vem, querida,sem receio

Esconder a aflita cor.

Ai! a minha pobre rosa!

Cuida que é menos formosa

Porque desbotou de amor.

Pois sim… quando livre, ao vento,

Solta de alma e pensamento,

Forte de tua isenção,

Tinhas na folha incendiada

O sangue, o calor e a vida

Que ora tens no coração.

Mas não eras, não, mais bela,

Coitada, coitada dela,

A minha rosa gentil!

Coravam-na então desejos,

Desmaiam-na agora os beijos…

vales mais mil vezes, mil.

Inveja das outras flores!

Inveja de quê, amores?

Tu, que vieste dos Céus,

Comparar tua beleza

Às filhas da natureza!

Rosa, não tentes a Deus.

E vergonha!… de quê, vida?

Vergonha de ser querida,

Vergonha de ser feliz!

Porquê?… porque em teu semblante

A pálida cor da amante

A minha ventura diz?

Pois quando eras tão vermelho

Não vinhas zangão e abelha

Em torno de ti zumbir?

Não ouvias entre as flores

Histórias dos mil amores

Que não tinhas, repetir?

Que hão-de eles dizer agora?

Que pendente e de quem chora

É o teu lânguido olhar?

Que a tez fina e delicada

Foi, de ser muito beijada,

Que te veio a desbotar?

Deixa-os: pálida ou corada,

Ou isenta ou namorada,

Que brilhe no prado flor,

Que fulja no céu estrela,

Ainda é ditosa e bela

Se lhe dão só um amor.

Ai! deixa-os, e no meu seio

Vem, querida, sem receio

Vem a frente reclinar.

Que pálida estás, que linda!

Oh! quanto mais te amo ainda

Dês que te fiz desbotar.

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XIV

Flor de ventura

A flor de ventura

Que amor me entregou,

Tão bela e tão pura

Jamais a criou:

Não brota na salva

De inculto vigor,

Não cresce entre a relva

De virgem frescor,

Jardins de cultura

Não pode habitar

A flor de ventura

Que amor me quis dar.

Semente é divina

Que veio dos Céus;

Só n’alma germina

Ao sopro de Deus.

Tão alva e mimosa

Não há outra flor;

Uns longes de rosa

Lhe avivam a cor;

E o aroma… Ai! delírio

Suave e sem fim!

É a rosa, é o lírio,

É o nardo, o jasmim;

É um filtro que apura,

Que exalta o viver,

E em doce tortura

Faz de ânsias morrer.

Ai! morrer… que sorte

Bendita de amor!

Que me leve a morte

Beijando-te, flor.

XV

Bela de amor

Pois essa luz cintilante

Que brilha no teu semblante

Donde lhe vem o esplendor?

Não sentes no peito a chama

Que aos meus suspiros se inflama

E toda reluz de amor?

Pois a celeste fragrância

Que te sentes exalar,

Pois, dizei, a ingénua elegância

Com que te vês ondular

Como se baloiça a flor

Na Primavera em verde dor,

Dizei, dizei: a natureza

Pode dar tal gentileza?

Quem ta deu senão amor?

Vê-te a esse espelho, querida,

Ai! vê-te por tua vida,

E diz se há no céu estrela,

Diz-me se há no prado flor

Que Deus fizesse tão bela

Como te faz meu amor.

XVI

Os cinco sentidos

São belas – bem o sei, essas estrelas,

Mil cores – divinais têm essas flores;

Mas eu não tenho, amor, olhos para elas:

Em toda a natureza

Não vejo outra beleza

Senão a ti – a ti!

Divina – ai! sim, será a voz que afina

Saudosa – na ramagem densa, umbros a,

Será; mas eu do rouxinol que trina

Não oiço a melodia,

Nem sinto outra harmonia

Senão a ti – a ti!

Respira – n’aura que entre as flores gira,

Celeste – não sinto: minha alma não aspira,

Não percebe, não toma

Senão o doce aroma

Que vem de ti – de ti!

Formosos – são os pomos saborosos,

É um mimo – de néctar o Racine:

E eu tenho fome e sede… sequiosos,

Famintos meus desejos

Estão… mas é de beijos,

É só de ti – de ti!

Macia – deve a relva luzidia

Do leito – ser por certo em que me deito.

Mas quem, ao pé de ti, quem poderia

Sentir outras carícias,

Tocar noutras delícias

Senão em ti – em ti!

A ti! ai, a ti só os meus sentidos

Todos num confundidos,

Sentem, ouvem, respiram,

Em ti, ouvem, respiram,

Em ti a minha sorte,

A minha vida em ti;

E quando venha a morte,

Será morrer por ti.

XVII

Rosa e lírio

a rosa

É formosa;

Bem sei.

Porque lhe chamam – flor

De amor,

Não sei

A flor,

Bem de amor

É o lírio;

Tem mel no aroma - dor

Na cor

O lírio.

Se o cheiro

É fagueiro

Na rosa;

Se é de beleza - mor

Primor

A rosa:

No lírio

O martírio

Que é meu

Pintado vejo: - cor

E ardor

É o meu.

A rosa

É formosa,

Bem sei…

E será de outros flor

De amor…

Não sei.

XVIII

Coquete dos prados

Coquete dos prados,

A rosa é uma flor

Que inspira e não sente

o encanto de amor.

De púrpura a vestem

Os raios do Sol:

Suspiram por ela

Ais do rouxinol:

E as galas que traja

Não as agradece,

E o amor que acende

Não o reconhece.

Coquete dos prados

Rosa, linda flor,

Porquê, se o não sentes,

Inspiras amor?

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XIX

Cascais

Acabava ali a Terra

Nos derradeiros rochedos;

A deserta árida serra

Por entre os negros penedos

Só deixa viver mesquinho

Triste pinheiro maninho.

E os ventos despregados

Sopravam rijos na rama,

E os céus turvos, anuviados,

O mar que incessante brama…

Tudo ali era braveza

De selvagem natureza.

Ai , na quebra do monte,

Entre uns juncos mal medra dos,

Seco o rio, seca a fonte,

Ervas e matos queimados,

Aí nessa bruta serra,

Aí foi um Céu na Terra.

Ali sós no mundo, sós,

Santo Deus! como vivemos!

Como éramos tudo nós

E de nada mais soubemos!

Como nos folgava a vida

De tudo o mais esquecida!

Que longos beijos sem fim,

Que falar dos olhos mudo!

Como ela vivia em mim,

Como eu tinha nela tudo,

Minha alma em sua razão,

Meu sangue em seu coração!

Os anjos aqueles dias

Contaram na eternidade:

Que essas horas fugidias,

Séculos na intensidade,

Por milénios marca Deus

Quando as dá aos que são seus.

Ai! sim foi a tragos largos,

Longos, fundos, que a bebi

Do prazer a taça. – amargos

Depois… depois os senti

Os travos que ela deixou…

Mas como eu ninguém gozou.

Ninguém: que é preciso amar

Como eu amei – ser amado

Como eu fui, dar, e tomar

do outro ser a quem se há dado,

Toda a razão, toda a vida

Que em nós se anula perdida.

Ai, ai! que pesados anos

Tardios depois vieram!

Oh! que fatais desenganos,

Ramo a ramo, a desfizeram

A minha choça na serra,

Lá onde se acaba a terra!

Se o visse… não quero ver-lho

Aquele sítio encantado.

Certo estou não conhecer-lho,

Tão outro estará mudado,

Mudado como eu, como ela,

Que a vejo sem conhecer-lha!

Ainda ali acabou a Terra,

Mas já o céu não começa:

Que aquela visão da serra

Sumiu-se na treva espessa,

E deixou nua a bruteza

Dessa agreste natureza.

XX

Estes sítios!

Olha bem estes sítios queridos,

Vê-os bem neste olhar derradeiro…

Ai! o negro dos montes erguidos,

Ai! o verde do triste pinheiro!

Que saudades que deles teremos…

Que saudade! ai, amor, que saudade!

Pois não sentes, neste ar que bebemos,

No acre cheiro da agreste ramagem,

Estar-se alma a tragar liberdade

E a crescer de inocência e vigor!

Oh! aqui, aqui só se engrinalda

Da pureza da rosa selvagem,

E contente aqui só se vive Amor.

O ar queimado das salas lhe escalda

De suas asas o níveo candor,

E na frente arrogada lhe cresta

a inocência infantil do Pudor.

E oh! deixar tais delícias como esta!

E trocar este céu de ventura

Pelo inferno da escrava cidade!

Vender alma e razão à impostura,

Ir saudar a mentira em sua corte,

Ajoelhar em seu trono à vaidade,

Ter de rir nas angústias da morte,

Chamar vida ao terror da verdade…

Ai! não, não… nossa vida acabou,

Nossa vida aqui toda ficou.

Diz-lhe adeus neste olhar derradeiro,

Diz à sombra dos montes erguidos,

Diz-lho ao verde do triste pinheiro,

Diz-lho a todos os sítios queridos

Desta rude, feroz solenidade,

Paraíso onde livres vivemos…

Oh! saudades que dele teremos,

Que saudade! ai, amor, que saudade!

XXI

Não te amo

Não te amo, quero-te: o amor vem d’alma.

E eu n’alma – tenho a calma,

A calma – do jazigo.

Ai! não te amo, não.

Não te amo, quero –te: o amor é vida.

E a vida – nem sentida

A traga eu já comigo.

Ai! não te amo, não!

Ai! não te amo, não; e só te quero

De um querer bruto e fero

Que o sangue me devora,

Não chega ao coração.

Não te amo. És bela. e eu não te amo, ó bela.

Quem ama a aziaga estrela

Que lhe luz na má hora

Da sua perdição?

E quero-te, e não te amo, que é forçado,

De mau feitiço azado

Este indigno furor.

Mas oh! não te amo, não.

E infame sou, porque te quero; e tanto

Que de mim tenho espanto,

De ti medo e terror…

Mas amar!… Não te amo, Não.

XXII

Não és tu

Era assim, tinha esse olhar,

A mesma graça, o mesmo ar,

Corava da mesma cor,

Aquela visão que eu vi

Quando eu sonhava de amor,

Quando em sonhos me perdi.

Toda assim: o porte altivo,

O semblante pensativo,

E uma suave tristeza

Que por toda ela descia

Como um véu que lhe envolvia,

Que lhe adoçava a beleza.

Era assim; o seu falar,

Ingénuo e quase vulgar,

Tinha o poder da razão

Que penetra, não seduz;

Não era fogo, era luz

Que mandava ao coração.

Nos olhos tinha esse lume,

No seio o mesmo perfume,

Um cheiro a rosas celestes,

Rosas brancas, puras, finas,

Viçosas como boninas,

Singelas sem ser agrestes.

Mas não és tu…ai! não és:

Toda a ilusão se desfez.

Não és aquela que eu vi,

Não és a mesma visão,

Que essa tinha coração,

Tinha, que eu bem lho senti.

XXIII

Beleza

Vem do amor a Beleza,

Como a luz vem da chama.

É lei da Natureza:

Queres ser bela? – ama.

Formas de encantar

Na tela o pincel

As pode pintar;

No bronze o buril

As sabe gravar;

E estátua gentil

Fazer o cinzel

Da pedra mais dura…

Mas beleza é isso? – Não; só formosura.

Sorrindo entre dores

Ao filho que adora

Ainda antes de o ver,

- Qual sorri a aurora

Chorando nas flores

Que estão por nascer -

A mãe é a mais bela das obras de Deus.

Se ela ama! – O mais puro do fogo dos céus

Lhe ateia essa chama de luz cristalina:

E a luz divina

Que nunca mudou,

É luz… é a Beleza

Em toda a pureza

Que Deus a criou.

XXIV

Anjo és

Anjo és tu, que esse poder

Jamais o teve mulher,

Jamais o há-de ter em mim.

Anjo és, que me domina

Teu ser o meu ser sem fim;

Minha razão insolente

Ao teu capricho se inclina,

E minha alma forte, ardente,

Que nenhum jugo respeita,

Cobardemente sujeita

Anda humilde a teu poder,

Anjo és tu, não és mulher.

Anjo és. mas que anjo és tu?

Em tua frente anuviada

Não vejo a coroa nevada

Das alvas rosas do céu.

Em teu seio ardente e nu

Não vejo ondear o véu

Com que o sôfrego pudor

Vela os mistérios de amor.

Teus olhos têm negra a cor;

Cor de noite sem estrelas;

A chama é vivaz e é bela,

Mas luz não tem. – Que anjo és tu?

Em nome de quem vieste?

Paz ou guerra me trouxeste

De Jeová ou Belzebu?

Não respondes – e em teus braços

Com frenéticos abraços

Me tens apertado, estreito!…

Isto que me cai no peito

Que foi?… Lágrimas? – Escaldou-me…

Queima, abrasa, ulcera… Dou-me,

Dou-me a ti, anjo maldito,

Que este ardor que me devora

É já fogo de preceito,

Fogo eterno, que em má hora

Trouxeste de lá… De donde?

Em que mistérios se esconde

Teu fatal, estranho ser!

Anjo és tu ou és mulher?

XXV

Víbora

Como a víbora gerado,

No coração se formou

Este amor amaldiçoado

Que à nascença o despedaçou.

Para ele nascer morri;

E em meu cadáver nutrido,

Foi a vida que eu perdi

A vida que tem vivido.

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